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Carta #05
Orquídea que dona Márcia nos deu quando nasceu Fé. E que floriu no seu aniversário de um ano. (Foto Rafa Carvalho/Arquivo Pessoal)

Carta #05

Por Rafa Carvalho

À sua bença. Sempre.

Passou, este domingo, o dia destinado a vocês. Cê sabe que eu sou péssimo com esse negócio de datas. Sabe também que discordo delas; quer dizer… acho importância nos marcos, penso que ainda é preciso, muitas vezes; mas ao mesmo tempo, utópico absurdo, sinto que deveríamos fazer de todo dia: dia. Ainda que eu me sinta, em pessoa, tão distante disso… dessa habilidade pra viver como se deve.

Devo minha vida a você. E, não sei se já sabe – sei que é difícil entender o que eu faço pra sobreviver, este ofício, a maluquice – mas, estou escrevendo uma série de cartas. Pensei em terminá-la, a série, semana passada quando escrevi uma carta de amor, que me faz lembrar de mulheres muito importantes pra mim, a quem sou muito grato, para sempre. Mas não faria sentido não escrever também a você, desde sempre: minha rainha. Embora seja impossível… a música que o Milton Nascimento fez à sua mãe, Lília, não tem letra, sabia? São só sensações… é o mais perto que dá pra chegar deste infinito. Palavras não cabem, mas… cê sabe a minha teimosia.

Se você soubesse do tanto que me arrependo de ter lhe dito tanta coisa… Neste ponto, seria bom não ser teimoso, ter ficado quieto e não deixado palavras mancharem nossa história. Mas me arrependo também de coisas que não disse e quis dizer… devia. De coisas que fiz, que não fiz; que pensei. Como a gente erra, né? Sou feliz que pudemos já falar de tudo isso, pelo menos por cima. Você sempre foi maravilhosa em limpar tudo, tirar manchas… ainda não chego aos seus pés. Mas sei que já quaramos todos os nossos anos numa luz imensa. Ficamos curados. E hoje, temos a cada dia, uma chance do nosso melhor momento.

Eu fico triste às vezes… com o mundo; com como me sinto nele. Com como sinto que o mundo me sente… ou: não sente. Mas aí eu penso no que poderia ser mesmo essencial para alguém e… eu só posso agradecer. Ainda tem tanto que não me alcança; que não alcanço… Mas puxa… cada gemada sua. Cada colo, carinho, cada banho de tanque. Cada geladinho, os sucos de vinho; nossas rodas de abacate com limão e açúcar. Seu despertar calmo nas manhãs de escola, suas ninas, cada noite desperta por minhas febres, pesadelos. As romãs do quintal da tia Maria, que você pacientemente ajeitava numa tigelinha pra eu comer de colher. Seus bolos… gelado, de cenoura; seu pudim. O macarrão com salsicha. O cheiro de seu café… doce, doce. Chás de hortelã, xaropes de guaco. Seu véu de cabelos, sua pele ancestral. As cantigas…

Cada história que me contava. Minha dor de saber da fome em sua infância. Meu choro com seu trabalho infantil. E tudo em que você protegeu, a mim, pra que não repetissem comigo. Sua paciência ao meu sonambulismo, minhas ameaças de fuga, meus argumentos presunçosos, minha língua sem papas, minha arrogância de criança birrenta, depois de adolescente infundado, depois de jovem convencido, depois de adulto ainda capenga… sua paciência infinita até hoje.

Todas as noites que perdeu por eu não estar em casa. Ah, como eu não queria ter brigado quando ligou pra saber se eu estava bem, na estrada, naquela chuva, naquele acampamento. Você tinha todo o direito, mãe. Eu: tenho todo o dever. Pensar que eu saía dizendo: “Mãe, bença! Vou ali no Ceasa pegar uma carona num caminhão não sei pra onde. Volto não sei quando, tô sem telefone, mas vou ficar bem, tá? E um dia vou voltar, prometo…”. Quanto cê sofreu comigo, hã? Quanta coisa deve ter vivido quieta, chorado quieta, suportando quieta todo este fardo… de ser mulher, ser pobre, preta, índia… mãe. De ser assim, tão fundamental… num mundo tão sem fundamento.

Olho pra sua mãe, lembro da mãe da sua mãe… E como são mulheres fortes, vocês todas. Que linhagem. E que semelhança há entre tantas linhagens outras, que encontrei. Mães que também me receberam, por aí… que me cuidaram neste grande círculo sagrado. A Terra é mãe, o mar é mãe… E até Deus: só pode ser Deus, se tiver uma mãe… se for: uma mãe.

Ser bastante feminino desde a infância, usar seus saltos, passar seu batom, ter uma delicadeza rara pra quebrada em que vivemos, pro tempo onde eu cresci à homarada desse mundo… ter usado saia no colégio, beijado outros homens como o Gilberto Gil… nada disso me livrou de meus erros. Nada disso me tirou os privilégios. Hoje rememoro tudo. Penso em você em nossa casa, com três homens. Penso em mim, na Terra com tantas mulheres conviventes. No quanto errei, até entender que errava. No quanto ainda falta errar, mesmo que não queira.

Você me ensinou a ler, a escrever… me ensinou a cantar… amar as artes. Uma mestra entre minhas maiores; sem cadeira, nem cátedra, chancelas, crachás… com todos os clichês da gente simples. Do populacho de onde viemos. Uma doméstica, lavadeira, passadeira, cozinheira, filha e neta de mulheres tais. Uma Carolina Maria de Jesus. Tenho até hoje aquela caixinha de música que você trouxe do lixo pra mim. É meu amuleto, patuá; um talismã. Não lhe vi conversar com as plantas, como via a vó… mas testemunhei você ressuscitando várias delas… trazidas também dos lixos, enchendo seu quintal verde de mais verde. Minha referência de cristã, cigana, bruxa, erveira, benzedeira, de força, fé e esperança. E resistência.

É um fato… como a bisa acabou seus dias por aqui. É um fato também como a vó encaminha esse mesmo fim. São os fatos, das histórias que se repetem, dos padrões… o sofrimento que transparece lá na frente, revelando finalmente as suas marcas nos sulcos da memória. Eu rezo todo santo dia, mãe, pra você ser a primeira… a primeira geração a quebrar o encanto. E eu sei que você vai. Assim, se lhe der uma neta, ela já nascerá livre… graças a você. Carregará todo o legado seu e das mais velhas numa mão; mas na outra: toda a chave que elas não tinham… e que você tá achando, mãe… nesse mundo que me dá mais jeito pra sonhar: porque você tá nele.

Cê ressuscita flores, mãe. Você… tem o poder de se ressuscitar. Todas as santas no meu altar intercedem por si, mãezinha. Todo o seu trajeto de vida é um altar para mim… rainha. Sem sua bença eu nunca pude nada. Sorte minha ter sua bença em tudo.

Onde eu vou mãezinha, cê tá junto. Onde eu chego, minha mãe, eu chego graças ao seu fubá. Que não tive nada fácil até aqui, cê sabe… mas não faltou sustância, mãe. Não faltou guarda, de tanto anjo que cê me ensinou a pedir perto, o tempo todo. E também não faltou exemplo, mãe.

Posso terminar aqui, posso escrever mais duzentas páginas… nunca vai caber você, mãezinha. Um metro e sessenta de pura galáxia. Sou só um pontinho disso. E não sou o final…

A verdade é que nem todos os dias lhe seria o bastante, mãe. Como não seria a qualquer mãe, que seja mesmo: mãe. O lugar de vocês é na eternidade, no infinito. E o que é digno dizê-las… simplesmente não pertence aos idiomas conhecidos.

Quem sabe eu faça uma canção como aquela, do Bituca. Já a voz sobre-humana dele, mãe, sinto muito mas… não sei se posso um dia dar conta. De cantar assim tão lindo pra você. Mas eu sim sei que pra mãe isso não importa. Que você nunca se importou com meus tons impróprios, desafinos. Sei o que mãe costuma sentir… vendo sempre o melhor da gente, né? Não importa o quanto sejamos ruins. Se pelo menos esse mundo, humano, soubesse honrar as mães que tem…

Se pudéssemos ver com seus olhos, mãe. E aguentar com seu peito. Retribuir à vida com um colo como o seu. Aí, eu sei, não haveria um dia só no ano. E muito provavelmente sequer esta carta deveria haver.

Amo você como tudo que brota.

Debaixo do seu manto,

Rafa

 

Sobre Rafa Carvalho

Rafa Carvalho é poeta apesar de tudo. Em 15 anos de carreira, são 21 países, por quase todos continentes, trabalhando com Arte, Educação e fazendo de tudo, porque tudo é o que a Poesia pode ser. E, para quem acha que Poesia não é profissão, ele já trabalhou de garçom em inúmeros estabelecimentos, na demolição civil escandinava como imigrante parcialmente legal e, atualmente, está desempregado.