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PROTEGER A ESPERANÇA
O céu que dá esperança (Foto Rafa Carvalho)

PROTEGER A ESPERANÇA

Por Rafa Carvalho

Depois de uma série de cartas escritas aqui, para nomes populares de vivos quase inalcançáveis como o Papa Francisco e Lula, de mortos importantes como Hilda Hilst e Friedrich Nietzsche, de anônimos mais ou menos tangíveis como sua mãe, todos seus amores dessa vida reunidos ou um bebê polonês de apenas um ano que assiste de lá, nas margens do Báltico, aos vídeos musicais de Rafa, nosso colunista retorna hoje aos seus quase ensaios; um tipo de texto difícil de definir em que nos fala de tempo, pressa, dificuldades… e da urgência de, neste momento e sempre: protegermos a esperança. Neste tipo de texto de Rafa que, pensando bem: é sempre um pouco uma carta pra si mesmo; ao mesmo tempo em que é uma carta a cada uma das pessoas leitoras.

A sexta-feira desperta sem calças sob as cobertas; como quem conseguiu fazer amor na madrugada mas não teve forças pra se revestir. O relógio faz com o que levantar seja abrupto – pra não acordar o bebê; enquanto lá fora o Sol ainda vai se levantando de um modo muito mais lógico e coerente que esse meu. No entanto, parece não será um dia fácil para o Sol… tão pouco. Não dá tempo de fazer um chá. E preciso vestir branco. É sexta-feira. Há liturgias importantes atrasando na semana. Devo regar a horta, o jardim. Precisamos colher essas verduras pra comermos. Precisamos da beleza da colônia e do crisântemo; da flor e do sumo do boldo. E ainda hoje, sem falta, plantar este agrião; mexer na compostagem; checar o que anda carcomendo o basilicão.

Trato com vinagre os caquis que ganhamos ontem, quando fomos doar agasalhos. Trouxemos também mudas de mirra; e de malva. O filho ainda dorme: pausa para admirar sua ternura. Aquilo é o café da manhã que ainda não pude. Tenho fome. É que ando jejuando às segundas e quintas: faço isto para pôr-me à prova, treinar o foco, a disciplina; e também economizar o alimento da dispensa. Acordo faminto nas terças e sextas depois. É preciso dominar o exagero. De fome, tristeza; e do desespero.

É dia de minha coluna na ASN. Não tenho nada pronto nem pensado. Estas últimas semanas voaram depressa. Às dez preciso levar cuidados à minha mãe. Precisamos passar nos correios antes, dedicar e embalar os livros. Escrever impresso normal registro módico fechamento autorizado pode ser aberto pela ECT uns pares de vezes. Concentrar no CEP que erro tanto.

A criança acorda.

Agora devo preparar o leite, abraçá-lo muito – é corriqueiro acordar cheio de saudades, mesmo que durmamos lado a lado. Quero debulhar a romã que colhi pra ele, mas demora. Penso em Miguel. Escreveria uma carta pra ele, nesta série – que talvez se interrompa hoje, pois: não consigo. De um tempo pra cá, comecei a dizer o nome dos mortos recentes… Olga, Aldir, João Pedro, George e tantos outros… como acabei de pronunciá-lo por último: Miguel. Não tinha este costume: acho que, se os chamamos, eles ficam confusos entre o olhar pra trás, pra nós; e o seguir em frente… para seja lá o que for que, espero, seja melhor que isso aqui.

Mas estas mortes têm me pego de surpresa. Não que o fascismo me surpreenda ainda existindo e tão multiplicado; não que o panorama político atual do país apresente qualquer novidade; nem que o sistema econômico que nos rege cause ainda algum susto quanto à crueldade – nossa – que ele atiça. Só que estou cansado… Desse joelho na garganta, dessas balas; dessa queda nada livre a que constantemente alguns humanos submetem os humanos.

Escreverei então uma carta à Sarí Gaspar Côrte Real, assassina de Miguel e representante de uma classe responsável por milhões de assassinatos pelo mundo – para não dizer que, direta ou indiretamente: todos. Mas também não. Por mais que nos despertem raiva, ainda sinto pena dessa gente que ainda por cima não ouve. Não há fiança que liberte alguém de apoiar a cabeça em qualquer travesseiro, com a certeza de se ter matado uma criança. De propósito; por pouco caso e distrato. Tenho pena do futuro dessas almas nesse mundo que dá voltas. E de como somos tão facilmente enganados; por ganâncias, falsos méritos e a ilusão de não sermos uma raça e família únicas. De, no limite: sermos parte de uma única Vida.

Ainda essas mortes incontáveis, a esta altura fatalmente mais de 35 mil. Lembrando que esse número oficial não chega perto do que devam ser os reais números de um país em tanto desgoverno. Mortes inomináveis pela quantidade absurda, mas não por cada uma dessas pessoas mortas não terem nome, história e família. Escreveria uma carta a cada uma delas, cada parente, cada amigo. Mas também não. Não posso. Não dá.

E se eu fizer então silêncio, como o do #blackouttueday, e não postar nada na coluna hoje? Também não; prometi pra mim mesmo não perder mais uma sexta e, ainda: precisamos seguir posicionados. Mesmo que ninguém veja; que não haja tempo para ler.

Meu filho chora. Ele quer presença. Que passeemos juntos pela quadra; ver o galo, os gatos, passarinhos. Quer ver as flores e cheirar a pimenta-da-jamaica. Ele quer tomar a bença da santa no quadro ao corredor, botando a mãozinha no coração dela como sempre faz. Quer bater comigo o tambor, cantar o xirê que ainda não cantamos hoje.

Também eu quero tudo isso. Vê-lo crescendo antes que seja tarde demais – vai tudo tão rápido. Quero ver os filmes de minha lista com Sa; ler os livros duma pilha empacada que tenho das próximas leituras tantas. Tenho que fazer exercícios a manter minha lombar sadia, limpar a caixa d’água; comprar uma resistência reserva pro chuveiro – é péssimo quando a resistência queima nessas épocas.

Falta tratar aquelas fotos, cortas as pontas dos cabelos, ajeitar a barba. Mandar o conto pra revista, responder a umas 60 mensagens de whatsapp, atualizar uns 15 grupos, mais sei lá quantos e-mails importantes e o messenger do Facebook. Tem que manter as redes ativas, aprovar o vídeo, retomar aquele projeto de identidade, encaminhar o disco, o CADúnico da mãe, o benefício do irmão; fazer as contas para o mês – recalcular as médias e saber quantos meses ainda temos de sobrevida. Torcer pras abóboras crescerem antes. Insistir na venda dos livros. Escapar daquele golpe pelo celular.

As roupas no varal: dizem que pode chover. Mais fraldas pra lavar, ligar pra tia, lembrar do aniversário de Toinho. Responder o pai, acompanhar as pessoas da comunidade, lembrar de manter a postura, beber água, ler as matérias pendentes, dar aquele feedback pro Will, ver a live sobre curadoria de arte contemporânea e umas três outras de artistas queridos que passaram com pressa demais: fazer carinho na barriga da mulher; cantar para a nova criança.

Não assistir o jornal. Não ler as matérias. Não ler as postagens. Sair por um tempo das redes sociais. Mas tem que arranjar algum trabalho. Seguir com os planos, o desenvolvimento das coisas, da carreira. Encomendar a cesta dos pequenos produtores, as compras para retirar no mercado. Meu Deus tá tudo tão caro e não tem dinheiro entrando. Desvendar como fazer que a partilha chegue, atingir as pessoas; sentir que este papel social de artista, educador, pensante: faz qualquer sentido… que possa fazer a diferença. Ainda crer que vale a pena, lembrar de Orionas, das mensagens que às vezes chegam; das pessoas a quem estes caminhos se fazem importantes. Das cartas – bem poucas – que chegam ao seus destinos; daquelas – bem menos ainda – que voltam com o mesmo amor.

E não desistir. Enquanto vivo, não desistir. E mesmo morto, seguir resistindo: reexistência. Não abandonar o mundo. Proteger a esperança, Rafa: não deixe nunca de proteger a esperança. É hipocrisia gerar mais essa criança se sua fé acabar. Olhe pro Fé aí, nascido, acordado… com sede de mundo. Lembre de quem você era, com um ano. Lembre de quem veio antes de si, do que foram; do que você vem tentando ser: e de tudo que seu filho pode ainda. De tudo o que podem as crianças. Que precisamos proteger. Pra que não sejam mortas, assassinadas. Pra que não seja morta e assassinada a esperança.

Os ipês não desistiram de nós. Não desistamos ainda. Queiramos justiça sim. Uma justiça profunda, sobre-humana. E dos humanos desejemos consciência; vamos sonhar com sermos coerentes e, pela coerência, vamos trazer nossos sonhos às práticas… com tentativas, com erros: mas sem mentiras.

Volta e meia me ocupo em casa do que vamos comer daqui um tempo. E ainda hoje me dói o pensamento – sem solução completa – naqueles que já agora não têm do que se alimentar, ou agasalho, teto, toda forma mínima de sustento, direito humano a decência; e a dignidade. Muito também me angustia pensar na saúde mental de todas nós. Um nós total: que envolva quem de nós sofre com o assassinato da criança; e quem de nós a assassina. Quem entra com o pescoço; e quem entra com o joelho. Quem aperta o gatilho. E quem explode o coração… nesta destorcida e turva história humana até então.

Somos tantos cegos, tantos surdos; tantos mudos. Tantos impedidos de sentir o sabor das coisas; o tato: tantos mortos. Tantos… que vivos, têm aberto mão da Vida. Tantas vezes em troca de coisas tão vis…

Meu filho chora. Não faz mas sentido eu sentar aqui para escrever. Não posso me concentrar. É sexta-feira e há muito pra fazer. Meu filho chora. Visto branco. Meu papel de artista precisa começar com meu esforço para ser no mundo. Com coerência, consciente e: protegendo a esperança.

Há beleza no mundo, gente. Nós podemos.

Talvez o texto não tenha ficado bom, talvez contenha erros; não vai dar pra revisar… de novo. Mas prefiro assim: que seja um texto real, feito por humano real, num dia real de um tempo real que mais se parece a um surrealismo terrível… desse mundo real que ainda pode estar grávido de outro, tão real quanto, mas… que como Fé, meu filho: tenha o dom de carregar consigo todos os idealismos e utopias… até muito mais que um poeta muito dedicado pôde imaginar.

Falta a foto. Vou pro quintal agora e bater uma do céu como ele está. Talvez não saia o Sol. Mas, nesta sexta, fundamental também será não esquecer: há de brilhar mais uma vez.

 

Sobre Rafa Carvalho

Rafa Carvalho é poeta apesar de tudo. Em 15 anos de carreira, são 21 países, por quase todos continentes, trabalhando com Arte, Educação e fazendo de tudo, porque tudo é o que a Poesia pode ser. E, para quem acha que Poesia não é profissão, ele já trabalhou de garçom em inúmeros estabelecimentos, na demolição civil escandinava como imigrante parcialmente legal e, atualmente, está desempregado.