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GALÁXIAS | 400 mil projetos #01
Constelação de Âncora (Foto Rafa Carvalho)

GALÁXIAS | 400 mil projetos #01

Nesta sessão de sua coluna, Rafa Carvalho cria um singelo inventário dos projetos artísticos que o perpassam, sempre pelo seu viés de considerar o artista como um simples meio. Ao longo de sua carreira, o poeta vai criando inúmeros projetos que, ao mesmo tempo, vão criando sua própria vida. Assim, indescritivelmente, vida e arte inteiras se misturam. Tudo passa a ser sua obra; trabalho: um emprego da energia ao existir. E deste mesmo modo: tudo passa a ser processo. Sempre em curso. Assim, o que temos aqui é nosso colunista mais uma vez querendo juntar o segregado, fluir o que se entrava; ousando falar do indizível. Sejam bem-vindos e aproveitem, pois a lista é longa.

Por Rafa Carvalho

Vou inaugurar esta lista com um projeto que começa a ganhar forma apenas bem recentemente. Embora a ideia seja das mais antigas em minha curta carreira, datando lá de 2004. Natural, para um projeto nomeado assim… o tempo cósmico é outro além do nosso. Galáxias se formam: de vagar.

Por isso o escolho a esse início: pessoas são galáxias. Esta é a premissa deste meu projeto.

Digo meu, mas vocês sabem, né? Tenho tentado converter a minha – nossa – ganância, em algo mais prestável. Tudo está aí, no universo. E estamos a postos… mais ou menos conscientes. Mais ou menos atentos às antenas. Mas todas estamos. Eu não acredito em patente, chancela… nada que se protocole com carimbos oficiais ou firma reconhecida. A burocracia serve, sobretudo, pra normalizar a injustiça. Eu não preciso de um documento grilado em chão amazônico, nas gavetas de algum coronel e seu bando, pra saber, por exemplo, de quem é a terra realmente. Entendem? O que precisamos, de verdade, nesse mundo: é dignidade. E isso não se assina; não tem rubrica nem palavra que garanta. Nem é algo fácil de se decifrar entre nós. Quem tem sabe na hora de dormir. Quem não, pode enganar a todo mundo. Mas nunca ao cosmos em seu tempo. E nem a si mesmo; quando se tange esse núcleo de consciência que todas contemos, dentro.

Mas sem me alongar hoje nessa complexidade e seguindo à proposta honesta dum vagabundear o mais íntegro possível pela minha vida: Galáxias é um projeto inicialmente sobre pintas. Que depois virou um projeto sobre pele, manchas e marcas corporais; cicatrizes, rugas e sinais do tempo. E que daí já era um trabalho sobre pessoas e humanidade. Um tratado da astronomia humana. Astrologia pessoal de cada um. Algo sobre o nosso corpo físico metafísico. Valendo-se de uma linguagem que é também metalinguística. Desafiando as fronteiras do que é ficção ou documental, como quem desafia a terceira dimensão; ou ainda a cisão – e talvez a linearidade – do tempo em passado, presente e futuro. Um projeto que assusta as certezas com a alusão dos mundos paralelos. Das alternativas negadas aqui, que simultaneamente concorrem toda a nossa existência… aceitas num outro aqui, por outros de nós.

Sei que pode parecer um papo de maluco. E não deixa de ser. Mas eu vou contar de onde a idéia vem. Sempre tive um lance com pintas. Que bem dizer: é um lance com as peles e as marcas no geral. Mas às pintas, ao mesmo tempo, sempre houve um quê mais específico; um afeto diferente. Quando comecei com os amores mais nus, tinha o hábito de contar as pintas nos corpos que o meu encontrava. Um dia adivinhei antes mesmo de contar: 91.

Eu também tinha alguma coisa com estrelas. Fui uma das milhões de crianças que querem ser astrônomas na infância. Mas até que levei isso a sério. Estudei pra valer nos livros que arranjava. Apontava pra elas no alto sem medo das verrugas. De astrologia eu não me aproximava muito, pois havia o preconceito da família. O mais perto que cheguei foi sendo um superfã dos Cavaleiros do Zodíaco. Mas depois, como se já estivesse escrito, cheguei nisso também. Aliás, uma astróloga misteriosa que foi parar na festa surpresa de um amigo uma vez, só pra me dizer umas coisas que eu devia ouvir, tornou-se chave em toda essa minha caminhada. Mas esta é “outra” história.

Fato é que essas coisas me impressionavam muito. Nós… sermos feitos de pó de estrelas… contermos os minérios essenciais, os elementos químicos, os mesmos átomos dos astros. Tudo isso era divino maravilhoso. E agitavam minhas viagens e imaginação de adolescente periférico; meio nerd.

Essa paixão é extensa. E eu poderia falar textos e textos só dela. De como usei negativos de fotos antigas para ver um eclipse solar no meio da quebrada na infância. De como acordei às 3 e pouco da manhã sozinho pra ver uma chuva de meteoros daquele mesmo ponto anos depois. De como nasci na beira do Halley no último periélio. Da minha relação com a nossa Lua e de como vê-la vermelha de sangue me fez arrepiar na Dinamarca. De como ganhei amor contando estrelas cadentes. Em tapetes sobre a grama úmida do campo. Ou por praias vazias sem energia elétrica cantando Los Hermanos. E de como quase fiquei cego de um olho depois de perseguir um rabicho de aurora boreal numa montanha lá da Noruega. No silêncio mais profundo que eu já não ouvi.

No entanto, voltando pro Galáxias – mesmo sem não ter saído dele: seu estalo veio quando cheguei com o circo na Argentina. Era minha primeira saída do Brasil e o ano, como já disse, era 2004. Apontei a pinta no braço de uma moça e ela me perguntou se eu gostava dos lunares. Saber como chamavam as pintas no espanhol foi o elo que faltava. Ali aumentava um pouco mais o meu fascínio pelas línguas, por como nos ensinam nas suas nuances, das coisas que, em suma, não se pode dizer em nenhuma delas. Ali também aumentava esse meu lance com as pintas… pois logo depois descobri que, em francês, elas eram grãos de beleza… e daí pra frente foi só mais e mais mergulhar nelas.

E ali, ainda: nascia Galáxias.

Galáxia RMC 1985 (foto: Rafa Carvalho)

Galáxia RMC 1985 (foto: Rafa Carvalho)

Lembro que fiz nessa viagem de 2004 as minhas primeiras considerações sobre o projeto, seus métodos, alguns rabiscos iniciais… tudo ainda muito disperso. 7 anos depois, quando vagabundeava a Europa pela terceira vez, me achei na praia da Ursa em Portugal uma tarde, onde tudo é tão Atlântico, contando os lunares de uma bailarina da Espanha, que me levava até lá. Ali foi como um novo pulso ou explosão nesse processo: estabeleci conexões entre os céus e as navegações dos corpos; ensaiei primeiros mapas… e fui seguindo, cada vez mais me orientando. Até que outros 7 anos mais tarde, esperava já o meu primeiro filho. Eu tinha 33 anos. Um ciclo inteiro se cumpria aqui em nosso Sistema Solar. Ele nasceu e, pouco tempo depois, uma pinta quase invisível apontou em sua bochecha esquerda. Um tantinho mais tarde, uma outra – essa bem forte e escura – surgiu em seu sovaco; também o esquerdo. Era como assistir ao nascimento de uma galáxia. Um quê de supernova. Uma pele lisinha sem marcas; quase páginas em branco. Um céu ainda puro, começando com o caos, a dinâmica e as explosões.

Lembrei de ver anos antes o braço de minha vó, ainda lúcida. A minha vó galáxia explodida esta semana… Seu braço tão cheio de pintas e manchas e marcas. Todo de vincos, sulcado de rugas, estrias, estradas. Todo o contraste da maturidade. Cada sinal acendia uma história… E então pensei em como eu – nesse meio entre minha vó e o meu filho – tenho acompanhado a minha própria pele envelhecendo; feito um céu que vai crescendo em espaço.

Fui considerando tudo isso. E eu gosto sempre de lembrar que considerar é: fazer-se um, com o espaço sideral.

Tenho, vocês sabem, uma história com o mar. O mar que tem uma história com as pessoas. Que tem uma história com as estrelas. O mar que é um universo. E isso de sentir-me marinheiro, nas saudades, pra mim, tem muito mais a ver com o universo, que com esse mar daqui. O marinheiro tá sempre com saudade de casa. Se no mar, da casa-terra. Se na terra; da casa-mar. Eu, que nasci longe da praia e que nem sequer a conhecia. Que cresci numa quebrada e que mal saía dela, a não ser imaginando. Tinha saudades sempre também. Como se além da casa-Terra, houvesse outra, por acaso… alguma casa-lá.

Não à toa, a primeira constelação que descobri em mim foi essa, da foto: a constelação de Âncora.

Para nomear as galáxias que somos, tenho dois métodos: um, mais técnico formal, incide nas inciais de nossos nomes seguidas por um traço (ou não) e os dígitos do nosso ano de nascimento (todos ou os últimos dois, três… dependendo do gosto). Por exemplo, eu sou a galáxia RMC 1985; meu filho: FSC-19. Isso nos deixa na categoria de nomes como NGC 253 ou IC 5152. O outro modo é mais lírico e livre, criando-se uma nomeação por qualquer razão ou referência que seja: como Via Láctea, Sombreiro; ou Andrômeda. Como sempre na vida, devemos encontrar assim as reincidências. Daí, é só irmos desambiguando quando necessário; e quando possível.

Dentro de cada galáxia, porém, tudo é singular. Nelas, sempre procurei por histórias. De pronto, buscava essas constelações de pintas. Tentava encontrar as formas que formavam, bem como suas características astrais. Depois tudo se expandiu: planetas e outros corpos celestes de nossos corpos, nuvens, buracos negros, supernovas, qualquer tipo de paisagem espacial em nós. Cada sinal em qualquer tipo de pele, com cores, saúdes e idades bem distintas. Com psoríases, hematomas e impinges. Acnes, cravos; poros. Tudo passou a interessar. Ao ver-nos como galáxias, seguimos todas ligadas umas às outras ao mesmo tempo em que formamos cada qual um conjunto único de estruturas, signos e significações próprias.

A metodologia para tudo isso é ancestral: sinto, acho e intuo; como nossas avós. Arrisco o palpite como os povos antigos. Acredito que, ainda em 2020, quando nos pomos diante de nós mesmos: estamos de frente a um mistério tão insondado, quanto o céu para os gregos 2200 anos atrás. Por tanto, para viajar assim, é preciso abandonar as presunções. Viajo só; deixo que minha imaginação responda. Faço isso sobre o meu e outros corpos. Mas também converso com pessoas, sobre os seus – e o meu – corpos. Trago perguntas, peço coisas, anoto, registro. E os modos de se partilhar esses efeitos, também são muitos. Fotografias, como essa da capa e de outras maneiras; composições gráficas e cartográficas; vídeos; áudios; instalações; performances; e texto.

Sobre o texto, neste projeto, as palavras flutuam sempre entre o que chamamos realidade e o que dizemos ficção. Para mim, este é um tema constante. Desafio este limite – sobretudo no que diz respeito à predefinição das elites que querem determinar a História e o presente do mundo – como desafio a linha imaginária – mesmo quando transformada em cerca, bomba ou muro – que separa os países econômica e politicamente. Além disso, elas também se alternam entre textos bem técnicos, que podem explicar o surgimento ou desaparecimento de fenômenos, por exemplo; e a criação dos mitos e lendas mais aparentemente descontrolada. O tempo todo sagrado e profano. Nossos signos conformando cadeias multidimensionais de sentido.

É importante dizer aqui da minha idéia de liturgia pessoal. Já contei dela antes. E ainda devo falar mais em outros projetos e textos desta coluna… Mas em síntese: minhas questões filosóficas existenciais se fundem com espiritualidade desde a infância. Sou um andarilho neste sentido, partindo de um seio familiar com suas crenças e preconceitos, mas passando daí a muitos lugares distintos. Fui ministro de louvor e missionário cristão; monge tântrico; vivi coisas como a espiritualidade indígena do xamanismo à pajelança e o zenbudismo oriental tudo in loco; o encontro da fé negra e vermelha – e um tanto da branca – em Cuba e aqui; a espiritualidade das artes marciais japonesas, da capoeira angola; tornei-me ogan de terreiro. E nunca neguei um ciclo para iniciar o outro. Fui criando a minha própria liturgia, muito respeitosamente. Pois no fim, nós somos a única “coisa” que teremos pra sempre por perto, enquanto vivos. Além de pessoa e galáxia, nosso corpo também é um templo. Assim vamos criando nossa própria ritualística de vida. Nosso jeito de rezar, de se comprometer. Nossos marcos, os salmos; provérbios. E eventualmente nossos dogmas, enganos e proibições.

Digo isso pois Galáxias compõe este universo. O céu e as estrelas estão profundamente ligados à fé humana, aos nossos mistérios, religiões e espiritualidade. Mitos. Lendas. E ao nos orientarmos por nossas próprias estrelas, estamos criando essas rotas litúrgicas. É um outro jeito de estarmos imagem e semelhança com o universo e às forças criadoras da vida.

Lembrando de novo da minha vó que partiu, quando criança, na casa dela, eu gostava de imaginar as vidas minúsculas que podiam viver nas frestinhas das paredes, buracos de muro, rachados no chão. Um dia conto melhor tudo isso, mas… é quase como pensar que, assim como nós olhamos esse céu imenso, nossos corpos poderiam ser o céu imenso de alguém: como talvez seja, esse céu ainda, o que olhamos, o corpo infinito de um outro que, por fim, nos imagina possíveis ou não, pelo viés de uma brechinha.

Bem, acho que isso basta pra firmar o Galáxias neste inventário. Naturalmente, ainda há muito pra falar dele. E além do mais, tudo pode mudar. Lembro aqui que sempre vejo meus projetos como constantes… vivos e dinâmicos como eu. Eles nunca acabaram, mesmo quando foram ações pontuais realizadas há anos atrás. Do mesmo jeito: eles nunca começam. São energias que estiveram e estarão aí o tempo todo. Assim, os projetos assumem mesmo essa existência cósmica… e ficam com um tempo mais parecido com o meu – com esse velho que tenho na cabeça: que não se parece em nada com este tempo pós-moderno em que vivemos.

E se vocês ficaram com vontade de ver mais do Galáxias, saibam que não deve demorar – embora isto seja sempre relativo. Mas estou preparando ações dele para breve. São ações variadas, online e offline; no Brasil e em outros países. Recentemente eu encontrei, no meio de caixas com livros e revistas que fui herdando por aí, uma série de reportagens sobre o cometa Halley datando de outubro de 85, meu mês de nascimento. Junto com isso, achei mapas de constelações, revistas de astronomia, apostilas, fotos analógicas de um eclipse feitas com uma lente telescópica… e tudo isso tem se incorporado aqui, nas criações.

Enquanto isso, me despeço com um trecho do texto sobre Âncora, a constelação da foto:

“Há milhares de anos, humanos se deixam guiar pelas estrelas. Há pelo menos centenas de anos, estas estrelas orientam as grandes viagens, movimentos migratórios, circuitos de intercâmbio, descobertas, fugas, conquistas, aventuras… pelo âmbito das navegações. As estrelas também sugerem destino, com os ventos internos… o prumo da escolha, o leme do espírito; às correntes. Em tudo isso sempre houve dinamismo, fluxo; movimento. Quando o marinheiro descobriu, no céu de si mesmo, a constelação de Âncora, decidiu o inaceitável: aquelas estrelas apontariam o caminho da paragem. O horário em que as pernas descansam. Era o hiato do voo. O silêncio da pausa, sem a qual não pode haver a música.

E de repente, marinheiros de todos os mundos passaram a buscar por Âncora e sua inusitada guia. Uma constelação que questionava todas as outras com suas conquistas; todos os rumos e os supostos alcances. Quando ancorava um marujo, qual era o saldo de tudo? Quando cessava o zunido, a ilusão da pressa e o movimento, o que sobrava no coração de uma pessoa? Andava-se, corria-se tanto, para chegar-se aonde mesmo?

Dizem que também a chamavam constelação do caminho que não se caminha. Que se iluminavam com ela por toda Ameríndia, África, até a Indochina. No entanto guiar-se por ela fosse perigoso. Não era à toa que alguns piratas prefeririam andar em perna de pau, que conviver ao próprio membro… num instante imóvel.”

Sobre Rafa Carvalho

Rafa Carvalho é poeta apesar de tudo. Em 15 anos de carreira, são 21 países, por quase todos continentes, trabalhando com Arte, Educação e fazendo de tudo, porque tudo é o que a Poesia pode ser. E, para quem acha que Poesia não é profissão, ele já trabalhou de garçom em inúmeros estabelecimentos, na demolição civil escandinava como imigrante parcialmente legal e, atualmente, está desempregado.