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O carro dorminhoco

O carro dorminhoco

Cacalo Fernandes

Adilsom acordava toda manhã com um pensamento grudado na cabeça. Engolia o lanche matutino e partia à luta. Lá fora o carro o esperava tristemente. Isso mesmo: o carro aguardava o despertar do dono com lágrimas nos olhos.

Ele levantava a tampa do motor e passava a vasculhar. O carro só olhava. Ele mexia em peça por peça. As que precisavam de óleo ele quase encharcava. Batia as mãos. Ligar.

O motor nem se mexia. Só gargalhava. Parecia o fim da linha.

”Eu queria ir além, muito além”. O carro só olhava. Lá fora, agora desprendido do motor, aguardava que ele se manifestasse. Era qualquer ruído, só para que eu seguisse viagem. Um tossido apenas.

A certa hora, sem mais nem menos, a tampa do motor se desprendeu e o jogou para dentro do motor. Assim, assim! Lá estava ele agora. Sozinho e dentro de uma escuridão silenciosa. Pensou em gritar. Isso!!! Seria como se o motor tivesse acordado.

Mas com sua mulher o vigiando pelo vitrô da cozinha – sumiu um minutinho para tomas café quando o motor o engoliu – concluiu que seria trágico. Agora seus movimentos estavam muito mais limitados.

Foi movimentar um braço e arrancou uma tampa. Estava muito escuro para achar a tampa agora desaparecida. Seus movimentos estavam contidos. Mexeu a cabeça. Destampou outra peça. “O que está acontecendo?”

Em certo momento, ao tentar se levantar, mexeu-se só um pouquinho, movimento mínimo, percebeu que seu braço esquerdo poderia se mexer. Enfim, estava meio solto. Vamos concluir que estava livre pela metade.

Conseguiu levantar a tampa do motor. Ele se meteu a levantar a maldita tampa. A luz fez seus olhos tremerem, estavam vendo mais ou menos, estavam turvos. Enfim estava solto. Poderia levantar voo.

No início pensou que seus movimentos deveriam ser cautelosos. Mas nada. Foram grosseiros. Ele foi se levantando às turras, estava pouco ligando. Fios e tampas que se danassem.

Cacalo_carro-ilustração

Notou que sua mulher estava atenta a tudo o que acontecia, ela acompanhava qualquer coisa sem sair da janela. Ele sim, saiu depressa. Lá fora, a primeira coisa que fez foi se olhar, de cabo a rabo. Era óleo para todos os lados.

Resolveu se movimentar. Sua mulher estava no mesmo lugar, no sábio vitrô. Sentou no banco dianteiro do carro adormecido, no seu lugar de motorista que já perambulou por muitas terras.

Agora estava ali. Resolveu tocar na chave. Não servia mais pra nada. Antes de dar adeus ao maldito carro, resolveu tentar a última partida. Queria saber a cor do demônio.

Não é que o maldito funcionou. Era começo ou fim de linha. Funcionou o carro. Maldito!!!!

Sobre Cacalo Fernandes

Ser paulistano foi o início de uma história de quem certo dia decidiu ser um escrevinhador. Mas quando a calça deixou de ser curta, lá no início, ajudou a construir esse lado que um dia pareceu esquisito. E hoje acho que não poderia ser outro.