Por Rafa Carvalho
Não há arte sem pessoa. Nem pessoa, sem história.
É isto. Todas temos as nossas histórias pessoais, as histórias de nossos antepassados, histórias ancestrais. Nós temos a história do mundo. E a história do mundo… são várias. Isto. E mistério.
Admiro muito da obra do Chico César. Sei pouco dele hoje. Mas já soube menos. Quando eu era só mais um moleque na quebrada, ele era o cara do cabelo ótimo e da roupa linda que eu via no Faustão ou no Gugu, com meia melancia no colo e uma colher nas mãos, admirando-o no fim de semana de meu sofá. Era a voz cantante noventista da novela que mamãe não perdia por nada. Era pop, como tudo e todas que navegavam por esses streams da época, até chegarem às nossas casas. As casas da massa.
Os anos passaram pra mim. A vida andou. Um governo trouxe um tanto mais de chance e de atenção junto com os anos dois mil, apesar de seus também tantos pesares. E deu que um dia fui vê-lo, o Chico, falar poesia num espaço da cidade, tocando um instrumento esquisito que ele havia feito. Eram seus cantáteis, lindos… um deles surpreendentemente nos falando da lagoa do Taquaral. O lugar que o foi o meu quintal bonito, da infância, a algumas pedaladas da favela.
De repente, foi como a poesia pudesse caber em minha verdade. Ou então, se a nossa realidade ainda coubesse à poesia.
Eu que não tinha comido nada, bebido nada, juntei as moedas com notas amassadas de um real, pra comprar um disco. Tirei uma foto de tiete com uma câmera digital da amiga. E o Chico me escreveu assim: Rafa, poesia como pão. E sexo.
Nunca negarei o quanto tudo isto foi especial pra mim. Outra vez um amigo encontrou com o Chico em Cabo Verde. Suas narrações de como tudo aconteceu foram tão próximas e boas, que me iludi e vi ao Chico como sendo já também um meu amigo. Amigos dos amigos… aquela coisa. Procurei o Chico César pelas redes. Escrevi-lhe uma mensagem todo utópico e ingênuo. Agradecia seus poemas, falava de amizade, propus parcerias. Um abuso de gente pequena. Mamãe sempre me alertava de minha ingenuidade, de eu ser sonhador demais… Enfim, de viver num mundo que não era este.
Mais uma vez, Chico me disse algo importante: Rafa, somos contemporâneos. E fazemos arte. Isto já é um jeito bonito de estarmos juntos. Disse também que não tinha tempo pra nós, de um certo modo. Claro, quem eu era na fila do pão? E não só, mas: que raio é esse, de a gente achar que as amizades nascem assim, online, tão espontaneamente… como se o amor pudesse ser uma maria sem vergonha que flore e não tá nem aí? Que se não tem terra aparente, sai não sei de onde e brota no meio do chão acimentado de uma casa? Deve ser difícil pros artistas grandes… Quando fiz um pequeno trabalho com Gil, o Gilberto, em 2010, pude sentir o quanto pode ser estranho pra eles, isso tudo. Esse assédio. Mas também vi ao Gil dando uma bronca amorosa, de mestre, nos músicos jovens que não perceberam de pronto o valor de um senhor anônimo e caolho que tocava seu pife de mão trocada sem saber fazer um lá maior se lhe pedissem. Gil transmitiu a lição tranquilo, pedindo ao homem: então só vamo junto! E aquele pife brilhou como pouca coisa brilha nessa Terra, pegado naquele violão. Ambos mestríssimos. Embora um famoso, assediado. E o outro… nadinha.
Depois fui apresentado ao Chico pessoalmente duas vezes. Uma por Siba, que ainda convidou o amigo pruma pitu com caldinho de sururu qualquer dia, no Estrela Dalva. Outra num encontro com Valter Hugo Mãe em São Paulo. Pois bem, se agora já nos conhecemos mutuamente? A resposta é provavelmente não. E vejam, esta é minha história pessoal com a obra e a pessoa do Chico César até hoje. Uma história de admiração, frustração, aprendizagem. Que eu escolhi contar aqui por uma única razão. Eu sempre pensei nas possíveis diferenças entre a pessoa e o artista, na arte. A obra artística e a vida pessoal. Costumei ser ingênuo demais e, por muitas vezes e várias razões, intrometido demais. Ensimesmado demais. Ainda tenho muito pra aprender e acho que vim aprendendo um tanto com Chico. Ainda admiro a obra. Entendi que nada há entre nossas pessoas… e que nada poderia haver. É natural. Mas não é por nada disso que lhes conto esta história. Minha única razão, então? Para repararmos, no quanto cada história deve ser complexa, por só existir a partir de várias outras. E também o quanto tudo é sempre um tanto pessoal mesmo. Afinal, somos pessoas e, tudo o que fazemos, passa por isso.
Para chegar neste texto, também uma forma de arte, não perdi minha admiração. E nem a frustração me movimenta. É só uma tentativa de partilha. E de seguir aprendendo.
Minha última mensagem pro Chico foi uma: foi bonito ontem, irmão. Falava de um recente show seu aqui em Campinas, na Estação Cultura. Não esperava resposta. E não tive. Mesmo assim, minha mensagem ali não era inteira, mas sim, um início de conversa, que como tantas, não continuou. Foi afinal muito bonito, de verdade, ver uma estação cheia de gente, lotada. Numa cidade onde tudo anda tão complicadamente na cultura, formação e identidade da população local.
Mas uma coisa foi estranha pra mim. Não conhecia ainda a canção Pedrada, do Chico. Um reggae maravilhoso, com escola e raiz, ótima levada, suingue, pressão. Vozes lindas, suas interpretações, as dos instrumentos. E uma música muito real, atual… cheia de imagens poéticas, metáforas precisas, com as quais é muito difícil discordar em mínima sã consciência. Porém seu verso mais famoso, mais entusiasmadamente cantado por todos, não é algo com que eu tenha conseguido concordar ainda:
FOGO NOS FASCISTAS!
Assustei vendo aquelas pessoas cantando essa frase aos berros, sorridentes e dançantes.
Não, não tirou a beleza do encontro, como um todo. Nem abafou as vibrações positivas da noite. Mas, ei: estamos falando da incitação à morte de pessoas. Pois se abominamos as fogueiras da inquisição, mas desejamos as nossas próprias, estamos presos numa briga ainda estúpida por poder, em que queimar não é por si um problema. Desde que se carbonizem as vidas que nós julgarmos apropriadas pra morrer num inferno desses. Se nós é que mandamos na fogueira, deixa o fogo arder.
Criamos assim uma ilusão pior que a minha, de tiete: a ilusão de nós… e eles. O eu. E o outro.
Por mais complexo que possa ser: quando desejamos a extinção dos fascistas, ou seja, de uma parte da população do país ou do mundo, o que estamos sendo? Talvez o mais justo para um verso de ordem desses, é que todas nós inflamássemos e ardêssemos até o fim, sem exceção. Quem sabe um jeito de finalmente sermos reunidos, no pó resultante da nossa inconsequência de milênios.
E precisamos entender que seria completamente diferente desejarmos a extinção do Fascismo. Se o fogo fosse no Fascismo. E não nas pessoas que se perdem por ele. Ou por qualquer outra coisa que seja.
Não sou de direita, mas também não sou da esquerda. Gosto muito das idéias de canhota, sim, das origens do sinistro. Mas independente da mão com que você escreva: por que usar só um lado, quando temos a dialética disponível no planeta? Por que ser cartesiano, quando se está incorrigivelmente criado o paradoxo?
Não há dúvidas de que estamos numa República de Parentes. Mas, ei: quando vamos reconhecer também os nossos nepotismos? Quando vamos ser coerentes, conscientes? Não é só o atual presidente que é assim. O mundo está todo muito assim. Nós estamos. E se tivemos uma presidenta digna o bastante para não ser nepotista com sua filha extremamente qualificada, postura que eu admiro demais, o seu partido não partilha integralmente dessa mesma honra. Não há instituição limpa nessa Terra. Não há um cargo puro, ofício isento, nesse mundo. Foda-se a arte e os artistas. Foda-se a educação, a saúde, a segurança, a religião. E principalmente: a política. Fodamo-nos nós.
Nos espantamos quando um crime acontece numa igreja que parece séria. Quando um absurdo se consuma numa escola da pedagogia tal que dizem ser tão boa. Se um médico de um renomado hospital estupra suas pacientes por anos. E nos esquecemos que dentro das instituições, há pessoas. Só isso. Pessoas que oscilam. Pessoas frágeis, como somos todas. Pessoas semelhantes, fundamentalmente. Pessoas como são, as pessoas que queremos queimar.
Se eu fosse obrigado a escolher uma ideia única: escolheria a Anarquia. Mas a Anarquia não precisa de farda, de crachá, carteirinha. E… infelizmente, eu preciso concordar com a sabedoria centenária do mestre Lawrence Ferlinghetti nisto de que: o mundo só poderia ser mesmo anarquista, se acaso fôssemos todos santos. Não somos. Não estamos nem perto de sermos. Logo, todos os nossos sistemas, todas as nossas instituições, são imperfeições feitas de brechas. E falhas.
O que é pior? Roubar 5 ou roubar 10? Matar 1, ou matar 1000? O que os filhos de nosso presidente de 2003 a 2011, que eu admiro tanto, faziam com passaporte diplomático, se não eram diplomatas? O que a filha de um Castro fez em Ibiza? E como estes fatos afetam as coerências de suas ações, e de seus discursos? Sim, os nepotismos de nosso atual presidente, e de seus partidos, parecem muito maiores, mas: o que é pior, roubar 5… ou roubar 10?
Eu estive em Cuba, quando me mandaram ir pra lá. E me apaixonei. Mas nada é perfeito ali, pessoal. Eu vivi na Escandinávia, sítio do possivelmente melhor sistema político-econômico já implantado no mundo, segundo o Lawrence – eu não tenho conhecimento pra dizer isso. E mesmo ressalvando toda a questão geográfica e outros fatores decisivos para a região ser o que é, apesar do funcionamento ótimo de muitos aspectos da vida, aquele lugar também não é perfeito. Posso garantir.
Curioso ou não, a perfeição das ideias e práticas acaba por esbarrar em nós pessoas. Pessoas e, naturalmente: imperfeitas.
Quem matou Malcom X? Quem matou Roque Dalton? Se olharmos bem, veremos que não foram seus opostos claros. Nem poderemos dizer se foram seus iguais, afins. Mas me parece muito propício, que tenha sido a ignorância, a confusão, o desamor… e o ódio.
Aviso, uma canção de meu disco que logo aporta pelo mundo, diz que: o inimigo é o desamor. É uma canção de luta, de liberdade. É uma canção de guerra sim, mas pela paz. A despeito de tantas cabeças arrancadas pelo bando de Lampião e de Maria Bonita, foram as suas, decepadas, que saíram na foto.
Entendamos: olho por olho… e já ficamos cegos demais. As famílias estão rachadas, odiando-se. E é exatamente assim que se começa uma guerra civil, como a que assolou Angola, nossa irmã. A poesia é munição, ou semente. A educação, a arte, são caminhos possíveis. Não sinto que o ódio precise ser fomentado mais do que já foi. Quem é que é frio o bastante, pra escoar o ódio, sem tirar a cabeça do lugar? Sem perder o prumo do fio da navalha que é viver? Quem?
A raiva é simplória pra gente. É límbico. O deboche, a chacota, a piada e a ironia nos podem ser muito fáceis. Difícil é nos encararmos no espelho. Dormir em paz com as nossas vaidades, pra trabalhá-las de novo amanhã. O tenso mesmo, é amar e ter fé e assumir que o bagulho é doido e o processo é lento. E que a caminhada se faz só no caminho. Que quem já andou, não tem mérito nenhum – nem seu avanço lhe valerá de algo – se não for pra dar as mãos pra quem vem vindo.
Depois de ter sido monge, quando decidi voltar a comer carne, me propus a matar pelo menos um tanto, os bichos que eu comeria, pra sentir a morte nas minhas mãos. Pra sentir a possibilidade e a responsabilidade naquele encontro, de onde apenas eu sairia vivo. Eu nunca mais comi carne do mesmo jeito.
E a minha pergunta é: você que canta e dança e grita fogo nos fascistas… se botarmos uma tocha na sua mão e amarrarmos um fascista na sua frente, e até garantirmos sua segurança e impunidade, o que você faz? E se esse fascista for o nosso atual presidente? E se forem seus pais, como são a maioria dos pais de hoje, fascistas sem nem saberem? E se for você, num descuido, um preconceito subconsciente?
Quando eu nasci, nem faz tanto tempo, os evangélicos eram muito oprimidos no Brasil. Hoje, a instituição evangélica é das maiores opressoras no país. Quem garante que amanhã não será outra, provavelmente de alguma religião que ainda esteja oprimida nestes tempos? O que os oprimidos, humanos, querem de fato? Justiça social, ou os privilégios do opressor?
Se sou contra a revolução? Não, não sou. E se tiver de ser armada? Também não. Não sou contra a guerrilha. Não acho que as cabeças do bando, nem as mortes de X e Dalton, devam inspirar-nos qualquer medo. Não acho que devamos ser calados, coniventes e servis ao que aí está. Sou a favor da resistência sim. Minha utopia é transcender e transmutar no mundo. E o planeta ser possível à humanidade. E a humanidade ser possível ao planeta.
Matar alguém, sobretudo o diferente, parece abreviar os caminhos. Mas não abrevia. São milênios nos matando. No entanto, nunca fomos tão numerosos. Nem tão solitários.
Eu repito que a raiva ainda é fácil pra nós. A inconsequência, o impulso. A explosão. O bicho pega mesmo, na hora do afeto. Da consciência ascender. De perdoar o outro. O eu. E nós. Difícil é abraçar o diferente. E esse nós ser um único feito de semelhanças e, enquanto houver, divergências.
Dente por dente e viramos este bando de banguelas que não paramos de falar. Falar, falar, falar. Postar, postar e apostar. Afinal, como vai a prática? Como você cuida de casa, a vizinhança, o bairro da infância, seu exemplo?
Tem amigo meu, ou conhecido, artista, admirável, que ainda xinga o presidente de filho da puta. Porra, é sério que pra vocês isso ainda é xingamento? Quê que mais essa mulher fez pra vocês? Já não basta a desgraça de ter parido uma desgraça dessas? Nós vamos mudar o mundo xingando os fascistas de filhos da puta? É isto? A sério?
Foi também na voz do Chico que conheci A nível de… canção imensa de mestre João Bosco. A trama infalível da música aponta, no tema das nossas opções afetivas, que, no fim das contas, a imperfeição está em nós, as pessoas. Não adianta mudar de time, de igreja ou de partido. Que independentemente disso ou daquilo somos assim, imperfeitas como serão, fatalmente, as nossas relações entre nós. E também as nossas instituições. Até que sejamos todas santas e o planeta possa ser uma Anarquia só.
Até lá, precisamos escolher… se vamos ceder ou resistir. E resistindo, para onde vamos caminhar? Que canções vamos cantando? Quais ideais a seguir?
E já que é assim, pra não dizer que não falei das flores, nem de Vandré: quando é que vamos fazer a hora? Ao invés de só esperar, ou até pior, causar, os mesmos acontecimentos que provocamos como humanidade há milênios… de novo?
Seria ótimo botarmos fogo no Fascismo. Seria ótimo botarmos fogo nos bancos, naquela loja das estátuas e num tanto de empresas gigantes, marcas, multinacionais, bolsas de valores… Seria ótimo botarmos fogo nos palácios. Mas sem gente dentro. Se não ficamos igual a um prefeito, um governador que autoriza o derrubamento de um prédio com pessoas vivas lá. Não importa quem sejam. Ou melhor, importa sim: são todas pessoas!
Eu entendo a raiva. Eu entendo o ódio. Eu sinto também. Mas eu lembro das minhas andanças com meus irmãos Kariri-Xocó, pra fechar este texto. Todos os dias com eles, às noites, acabavam em fogo. Um fogo que todas rodeávamos quietas, em silêncio. Reparem a ênfase, não a redundância. E neste fogo, nós queimávamos tudo o que era preciso queimar. Pra poder levantar amanhã. E andar de novo.
Caminhando e cantando. E seguindo… uma canção sem precedentes. Por mais incrível que pareça: uma canção de Amor.