Por José Pedro Soares Martins
A COP 27 terminou neste domingo, dia 20 de novembro, com um estrondoso fracasso na tentativa de controlar os combustíveis fósseis, cujas emissões são os grandes motores das mudanças climáticas em curso. Com isso, o mundo continua flertando com a tragédia climática que já provoca eventos como as gigantescas inundações que deixaram um terço do território do Paquistão sob as águas neste ano.
O único avanço objetivo na COP 27 foi a criação de um fundo, a ser financiado pelos países ricos, para cobrir perdas e danos nos países pobres. Entretanto, não há prazos ou como será feito o financiamento, o que não garante em nada o funcionamento do fundo. Os potenciais financiadores, aliás, nem de longe têm cumprido a promessa de destinar US$ 100 bilhões anuais, entre 2020 e 2025, para ações de enfrentamento do aquecimento global.
Assim, ficou mais evidente o impacto negativo da COP 27, de não garantir a eliminação progressiva dos combustíveis fósseis ou dos subsídios a essa fonte suja de energia. Parece ter funcionado, assim, a pressão dos mais de 600 lobistas dos fósseis presentes no balneário de Sharm El Scheik – um recorde em participação nas Conferências do Clima. A menção a essa eliminação progressiva não aparece no documento final, que também não cita um ponto crucial que vem sendo alertado por organizações não-governamentais – a necessidade de evitar o impacto do esquema de Solução de Controvérsias Investidor-Estado (ISDS em inglês) nos esforços contra o aquecimento global.
O ISDS é considerado danoso porque permitiria a uma corporação energética de combustíveis fósseis processar um país que assuma leis contra os poluidores. Esses processos podem tramitar em tribunais especiais, longe dos sistemas jurídicos nacionais. É mais uma séria ameaça à luta contra as mudanças climáticas.
A COP 28, em 2023, acontecerá nos Emirados Árabes Unidos, um dos maiores exportadores de petróleo do mundo e um dos maiores emissores per capita, além de ter um governo antidemocrático. Em 2021 as emissões no país foram de 19,47 toneladas por habitante, 2,2% a mais do que no ano anterior. As esperanças para o planeta estão cada vez mais distantes.
No caso do Brasil, o destaque ficou por conta da presença do presidente eleito, Luiz Inácio Lula da Silva, que reiterou a promessa de campanha de combate sem tréguas ao desmatamento. A destruição do bioma alcançou níveis exorbitantes no governo de Jair Bolsonaro. Lula também anunciou a criação do Ministério dos Povos Originários e sua liderança internacional, agora resgatada, soa como um sinal de que o Brasil pode retomar o protagonismo perdido como grande potência ambiental. Abaixo, os comunicados de LACLIMA e do Observatório do Clima sobre os resultados da COP 27:
A COP que (quase) implementou
Por LACLIMA (Latin American Climate Lawyers Initiative for Mobilizing Action)
Quase dois dias depois do prazo previsto para encerramento, chegamos ao fim da COP 27, com a adoção da decisão Plano de Implementação Sharm El-Sheikh. Como sempre, as decisões são adotadas no cansaço. Depois de muitas rodadas tensas de negociação, ameaças da União Europeia de abandonar as negociações e grande pressão da Presidência do Egito clamando por mais “confiança, empatia e compreensão”, finalmente os 196 países membros da Convenção do Clima da ONU e os 193 países membros do Acordo de Paris chegaram a uma decisão para implementar a agenda climática de Paris.
Até a madrugada do dia 20 de novembro, o rascunho da decisão Plano de Implementação Sharm El-Sheikh tinha conseguido tratar de diversos temas difíceis na agenda política e estabelecer mandatos e caminhos de implementação claros para a maioria deles.
Este rascunho anterior da decisão destacava a importância das florestas e das ações para redução de desmatamento com base no artigo 5 do Acordo de Paris; estabelecia um Programa de Trabalho de Transição Justa; e criava o Diálogo de Sharm El-Sheikh, para junto com organizações e stakeholders discutir a implementação do objetivo de manter os fluxos financeiros globais alinhados com uma trajetória de descarbonização (artigo 2.1c do Acordo de Paris).
Mas isso não prevaleceu na última versão do documento. Assim também a mensagem sobre a transição energética voltou enfraquecida com a substituição da expressão “importância de melhorar a participação das energias renováveis” por “melhorar o mix de energias limpas, incluindo energias renováveis e de baixa emissão”.
E Sharm El-Sheikh deixou a desejar em dar continuidade ao chamado de Glasgow para que os países acelerem esforços para reduzir o uso de carvão, quando a ciência vem alertando para a necessidade de se eliminar a queima de combustíveis fósseis. O texto da decisão incluiu apenas a expressão “eliminar subsídios ineficientes” para combustíveis fósseis.
Por outro lado, a COP 27 entregou a criação de um fundo para perdas e danos climáticos em países em desenvolvimento, um pleito que vinha sendo feito pelos pequenos países ilhas do Pacífico e outros países vulneráveis à mudança do clima há pelo menos 30 anos. Um comitê de transição fará recomendações sobre como operacionalizar o fundo e outros arranjos de financiamento para perdas e danos até a COP 28.
A COP 27 também manteve a intenção dos países em acelerar mais ambição na redução de emissões de gases de efeito estufa, para além das suas atuais NDCs, até 2030, com o objetivo de limitar o aumento de temperatura da Terra em 1.5ºC. Para isso, foram detalhados os principais elementos e prazos de um Programa de Trabalho de Mitigação, que começará a ser implementado a partir da próxima COP 28 e será revisado em 2026.
Nos demais temas da agenda de financiamento, em especial a definição de uma nova meta de financiamento climático, o avanço foi pouco expressivo, prevendo a realização de workshops ao longo de 2023 para continuar elaborando melhor sobre a definição da meta. Houve um chamado para que as instituições financeiras multilaterais tripliquem seus níveis de financiamento climático até 2025.
No artigo 6, foram detalhados procedimentos e conceitos, além de regras de operação dos registros de carbono, e elaborados modelos de documentos necessários para a implementação dos instrumentos de mercado de carbono do Acordo de Paris; além de ser definido um processo alternativo para uma espécie de “match-funding”, em que países possam cooperar entre si para promover iniciativas de mitigação e adaptação sem envolver créditos de carbono.
Na capa da decisão da COP, conseguiu-se trazer mensagens políticas importantes, começando pela declaração de que os desafios trazidos pela guerra em termos de segurança energética e alimentar não podem ser usados como pretexto para se recuar nos esforços globais de descarbonização.
O preâmbulo da decisão também incorpora a menção ao direito a um ambiente limpo e saudável no contexto da crise climática, que foi recentemente reconhecido como um direito humano em resolução da Assembleia Geral da ONU.
A “COP da implementação” chegou perto de implementar e até conseguiu tirar do papel coisas que estavam truncadas há tempos dentro da agenda climática multilateral. Mas o buraco é mais embaixo: o embate países desenvolvidos versus países em desenvolvimento tem raízes fortes. Esse sentimento de “nós contra eles” num ambiente que necessita desesperadamente de cooperação é o que torna este o mais complexo processo de negociação multilateral de todos os tempos.
Olhando o copo meio cheio, é possível dizer que a COP 27 conseguiu dar passos inéditos na implementação da agenda climática global. A COP da África empoderou os países em desenvolvimento e promoveu conversas mais francas sobre justiça climática e divisão de responsabilidades entre os países: conversas que há muito tempo vem sendo adiadas. Ainda que não tenha dado a melhor solução para todos os problemas, a COP do Egito não fugiu dos problemas difíceis; teve uma agenda parruda, com muitos temas sensíveis ao mesmo tempo. E tudo isso impulsionado pela participação massiva da sociedade civil, que enfrentou os riscos de se fazer ativismo em um país que restringe direitos civis e liberdade de expressão. Esta não foi a COP da implementação, mas foi a COP da perseverança.
COP27 termina com uma revolução e três maldições
Por Observatório do Clima
A 27ª Conferência das Partes da Convenção do Clima das Nações Unidas terminou no início da manhã deste domingo (madrugada no Brasil) em Sharm El-Sheikh, no Egito, com uma vitória e três derrotas com sabor de maldição do faraó. A vitória, a ser comemorada, é que a “COP africana” concordou em criar um revolucionário fundo para financiar perdas e danos climáticos nos países mais vulneráveis do mundo. No entanto, as divisões de sempre entre países ricos e pobres fizeram com que o encontro terminasse sem um acordo substantivo sobre o que deveria ser o ponto principal de conversa – como acelerar o corte de emissões de modo a evitar que o aquecimento global ultrapasse 1,5oC neste século.
A chamada “decisão de capa” da COP27 apenas repete, de forma mais diluída, aquilo que já havia sido acordado em 2021 em Glasgow: que o mundo precisa estabilizar a elevação de temperatura segundo a meta mais ambiciosa do Acordo de Paris. Diferentemente de Glasgow, porém, Sharm El-Sheikh ignorou o elefante na sala, os combustíveis fósseis. Pressões de último minuto de potências petroleiras como a Arábia Saudita e a Rússia – cuja invasão da Ucrânia aumentou a insegurança energética no mundo e o uso de combustíveis fósseis – fizeram com que a menção de Glasgow a uma redução gradativa (“phase down”, no jargão dos diplomatas, que já era insuficiente) dos combustíveis fósseis fosse eliminada do texto.
O texto da COP27 faz apenas referência, pela primeira vez, a energias renováveis e de “baixa emissão”, um jabuti egípicio. Pode parecer um avanço, mas é insuficiente para a ciência e deve acabar justificando uma sobrevida ao gás natural. Com isso, o principal documento político da COP, que os europeus esperavam que fosse um “Glasgow Plus”, ou seja, um avanço em relação à COP26, acabou virando o que alguns negociadores chamaram de “Glasgow Minus”.
Uma outra manifestação dessa pasmaceira foi o resultado do chamado Programa de Trabalho em Mitigação (MWP, ou Mitigation Work Program). Ele foi criado também em Glasgow, com o objetivo de acelerar o corte de emissões dos países para manter o 1,5oC ao alcance. Neste ano, alguns países desenvolvidos, em especial a UE e o Reino Unido, esperavam que ele avançasse na determinação de ajustes anuais ou bienais na metas até que o corte de emissões necessário para o alcance da meta (43% em 2030) fosse atingido.
Só que os países em desenvolvimento, entre eles o Brasil, tesouraram o programa. Segundo o G77, o bloco de negociação que reúne 130 economias pobres e emergentes, não se pode inventar um novo ciclo de metas para os países, já que o Acordo de Paris estabeleceu que o ajuste coletivo na ambição é feito de cinco em cinco anos apenas (mas a qualquer tempo qualquer país pode aumentar a meta de sua NDC, ou Contribuição Nacionalmente Determinada). Para esses países, mexer no calendário das NDCs equivale a renegociar o acordo do clima. O texto acordado em Sharm El-Sheikh para o Programa de Trabalho em Mitigação explicita que ele será “não-prescritivo e não-punitivo”, além de não impor novas metas. Ou seja, na prática, não servirá para nada.
No pano de fundo da querela está a terceira maldição da COP27, o financiamento climático. Os US$ 100 bilhões anuais de 2020 a 2025 prometidos pelos países desenvolvidos continuam sem definição sobre quando e como serão pagos. Já são três anos de promessas não cumpridas. Os recursos foram cobrados pelo presidente eleito do Brasil em seu discurso na COP. No início da conferência, a primeira-ministra de Barbados, Mia Amor Mottley, também pediu uma revisão do sistema financeiro global “injusto e obsoleto”. A decisão de capa faz apenas um convite aos bancos multilaterais de desenvolvimento e às instituições financeiras internacionais a reverem suas práticas e instrumentos de financiamento climático. Ou seja, nada.
O avanço de Sharm El-Sheikh ficou por conta do fundo de perdas e danos. Depois de três décadas de pressão dos países-ilhas para que os maiores responsáveis pela crise climática custeassem os prejuízos causados por eventos extremos aos quais já não cabe adaptação, como ciclones e enchentes, enfim o tema entrou na agenda da negociação na COP27. Os países ricos sempre resistiram a isso, com medo de abrir uma avenida para o litígio internacional – afinal, pagar por perdas e danos equivale a reconhecer que eles devem compensação pelo estrago que fizeram na atmosfera e que afeta de maneira desproporcional as nações que menos esquentaram o planeta.
Na COP do Egito, o tema foi encarniçado. Em Glasgow, os países haviam combinado que neste ano ocorreria um “diálogo” sobre financiamento a perdas e danos. Depois de muita pressão dos países em desenvolvimento e da sociedade civil, o tema foi debatido formalmente em Sharm El-Sheikh. Na semana passada, o G77 propôs que o tal “mecanismo financeiro” fosse um fundo sob a Convenção do Clima, nos mesmos moldes do Fundo Verde do Clima, criado em 2010.
Mas os desenvolvidos, em especial os EUA, passaram a bloquear a negociação. O enviado especial de clima do governo americano, John Kerry, dizia a quem quisesse ouvir que os EUA não topariam um fundo de jeito nenhum. Os EUA e a Europa querem que os países emergentes também contribuam, algo que o G77 rejeita. Quando passou pelo Egito a caminho da reunião do G20 em Bali, Joe Biden tentou vender uma alternativa tabajara, o Global Shield – um fundo voluntário de US$ 170 milhões criado pelo G7 e funcionando de acordo com as regras do G7, ou seja, com o controle dos países ricos.
No final, chegou-se a uma solução de compromisso, com ajuda de uma manobra da União Europeia: houve a decisão de criar um fundo para assistência “aos países mais vulneráveis”, mas a única coisa de concreta a sair da COP27 foi a definição de que um comitê de transição com 24 integrantes, sendo 10 de países desenvolvidos e 14 de países em desenvolvimento, que vai discutir como o fundo será estruturado e operacionalizado até a COP28. Além disso, um parágrafo da decisão fala em estudar “uma variedade de fontes” de financiamento, o que não exclui arrancar contribuições dos países em desenvolvimento, como China, Índia e Brasil.
“Se por um lado foi alcançado um resultado histórico com a criação de fundo para perdas e danos, por outro andamos de lado mais uma vez em relação à ambição climática. Um ano já se passou desde Glasgow e o que vimos foram países querendo retroceder. Temos agora apenas sete anos para cortar as emissões de gases de efeito estufa pela metade para limitar o aumento da temperatura a 1,5oC. O programa de trabalho em ambição climática aprovado não garante que as reduções vão acontecer na velocidade que precisamos”, avalia Stela Herschmann, especialista em Política Climática do Observatório do Clima.
“Melhoramos a distribuição do remédio, mas não avançamos no tratamento da doença”, disse Marcio Astrini, secretário-executivo do Observatório do Clima. “Sem um aumento significativo na ambição das metas nacionais e sem atingir o nível de financiamento adequado para adaptação e mitigação, o fundo de perdas e danos será um eterno trabalho de Sísifo, vencido constantemente por uma realidade climática cada vez mais violenta. Não vai haver recurso de perdas e danos que baste.”
Em posicionamento divulgado na manhã deste domingo, o secretário-geral da ONU, António Guterres, disse que a COP27 deu um “passo importante” em direção à justiça para aqueles que fizeram tão pouco para causar a crise climática (incluindo as vítimas das recentes inundações no Paquistão que inundaram um terço do país), mas falhou na questão prioritária da redução de emissões. “Precisamos reduzir drasticamente as emissões agora – e essa é uma questão que esta COP não abordou”, declarou Guterres. “Um fundo para perdas e danos é essencial, mas não é uma resposta se a crise climática tirar um pequeno estado insular do mapa ou transformar um país africano inteiro em deserto. O mundo ainda precisa de um salto gigantesco na ambição climática.”
Sobre o Observatório do Clima – Fundado em 2002, é a principal rede da sociedade civil brasileira sobre a agenda climática, com 77 organizações integrantes, entre ONGs ambientalistas, institutos de pesquisa e movimentos sociais. Seu objetivo é ajudar a construir um Brasil descarbonizado, igualitário, próspero e sustentável, na luta contra a crise climática. Desde 2013, o OC publica o SEEG, a estimativa anual das emissões de gases de efeito estufa do Brasil.