Por José Pedro Martins
O Brasil é um dos destaques do documento “Cor? Que cor? Relatório da luta contra a discriminação e o racismo no futebol”, que acaba de ser publicado pela Unesco, com apoio da Juventus, clube supercampeão da Itália. O relatório comenta a evolução histórica do racismo e discriminação no futebol, faz um balanço dos casos mais notórios de preconceito e relata as medidas que vêm sendo adotadas em várias esferas para combater esses males que afetam o esporte mais popular do planeta. A Copa do Mundo de 2014 no Brasil mereceu uma avaliação especial no relatório, que também cita casos de racismo contra jogadores como Neymar, Daniel Alves e Tinga.
Nas palavras de introdução do relatório, a diretora geral da Unesco, Irina Bokova, sustenta que o esporte proporciona uma plataforma única para promover valores como diálogo intercultural e a compreensão ou reforçar a igualdade de gênero e inclusão social. No entanto, lamenta que o esporte também pode ser usado para dividir e discriminar.
Coordenado pela UNESCO com o apoio da Juventus, o relatório é o resultado do processo de investigação e pesquisa que envolveu um grande grupo internacional de especialistas, pesquisadores, gestores e representantes do mundo do futebol.
Raízes do racismo – O relatório começa contestando a afirmação, sempre repetida na mídia, nas Universidades e em outros setores, de que “o futebol é espelho da sociedade”. Para os autores do documento, “o futebol não é um espelho que reflete a sociedade como ela é”. O relatório admite que, por ser extremamente popular e representar “uma forma generalizada da cultura de massa, capaz de transcender gerações, classes sociais, grupos étnicos e de gênero em seu apelo”, o futebol é “obviamente afetado por tendências globais e questões maiores que dominam a sociedade na qual é
jogado, assistido e falado por milhões”.
Entretanto, reiteram os responsáveis pelo relatório, o futebol não é um espelho da sociedade, “mas mais uma tela de projeção para imagens do que indivíduos e grupos acham que a sociedade deve ser, por anseios difusos e aspirações que são expressos de uma forma emocional”. Na maioria das vezes, destacam, estas imagens são positivas, “com base em um desejo coletivo de auto-celebração através da carnavalesca exibição de sentimentos de pertencimento, lealdade
ou identidade”.
Mas o oposto também existe, lamenta o documento, e está “enraizado na projeção fundamental do jogo da oposição binária entre dois oponentes que se enfrentam em uma competição”. O futebol, explica o texto, “inevitavelmente produz uma configuração do ‘nós’ contra ‘eles´, que muitas vezes resulta em uma linguagem e atitude de exclusão simbólica e inferiorização”. Quando tais discursos de inferiorização e insulto são baseados em critérios étnicos, religiosos e sexuais, o futebol “torna-se um palco para o racismo ea discriminação”.
O documento cita então autores que já refletiram sobre o assunto, como Eduardo Galeano, em “O futebol ao som e à sombra”, e o jornalista brasileiro Mário Filho, que em 1947 publicou “O negro no futebol brasileiro”, um livro clássico e pioneiro no tema.
Hoje, destaca o relatório, o futebol ainda é utilizado “para a expressão de racismo e discriminação, apesar do fato de que, em sociedades cada vez mais multiculturais do planeta, há um número crescente de vozes dentro da política, negócios e da sociedade civil a proclamar em voz alta um amplo consenso em favor da diversidade e contra todas as formas de discriminação”.
A emergência do racismo no futebol – O relatório nota que o racismo e a discriminação ocorrem no futebol desde que o esporte começou a se tornar mundialmente popular entre o final do século 19 e início do século 20. Racismo e discriminação aconteceram “principalmente em países onde a diversidade étnica era um fenômeno diariamente visível – por exemplo nas sociedades latino-americanas ou nos impérios coloniais em todo o mundo – ou onde, como na Alemanha nazista, existiam ideologias disseminando o anti-semitismo no futebol”.
No entanto, o documento assinala que vários pesquisadores concordam qem ue a década de 1970 é o período em que o racismo no futebol profissional tornou-se um fenômeno de massa, especialmente na Europa. “Isto pode estar ligado ao fim do período do pós-guerra e do que os franceses ainda se referem como `os gloriosos trinta anos’. Em meados dos anos 1970 o desemprego começou a subir, as economias viviam a crise do petróleo, os partidos extremistas ressurgiram. Em tal contexto, atitudes geralmente mais racista ou xenófobas começaram a aparecer nas sociedades europeias”, diz o documento, ressaltando que, ao mesmo tempo, começaram a surgir os primeiros movimentos distintamente anti-racistas.
O documento frisa que, ao se olhar para os campos “de veludo” da Premier Liga, na Inglaterra, ou a Bundesliga, na Alemanha, onde hoje se desfruta “da alegria e de uma atmosfera moderna e confortável”, é difícil imaginar que o futebol no continente europeu, no final dos anos 1970 e início dos 1980, “estava repleta de racismo e discriminação,
violência e vandalismo, fenômenos que tiveram suas origens fora do estádio de futebol, mas para os quais o futebol tornou-se o palco de teatro e onde encontrou sua expressão mais espetacular”.
Foi a partir dos eventos de Heysel (1985) e Hillsborough (1989), assinala o relatório, que “os problemas foram seriamente abordados em conjunto pelas autoridades”. O documento se refere ao episódio ocorrido a 29 de maio de 1985, no estádio do Heysel, na Bélgica, quando, por ocasião da final da Taça dos Campeões Europeus, entre Liverpool, da Inglaterra, e Juventus, da Itália, houve vários confrontos entre torcedores das duas equipes. Os conflitos se estenderam para fora do estádio e o resultando foi o número de 39 mortos e muitos feridos. A Juventus foi campeã, ganhando de 1 a 0, com gol de Michel Platini, mas não houve comemoração.
O outro episódio se deu a 15 de abril de 1989, durante jogo pelas semifinais da Taça da Inglaterra, entre Liverpool e Nottingham Forest, ocorrido no Estádio Hillsborough, em Sheffield. Com a superlotação no estádio, 96 torcedores do Liverpool morreram pisoteados e 766 foram feridos.
Os anos 1990 – A década de 1990, continua o relatório da Unesco, houve uma mudança de paradigmas no futebol europeu. A violência começou a declinar após a introdução de drásticas medidas de segurança que se seguiram às duas tragédias. Essas medidas foram motivadas pelo relatório de 1990 de Lord Justice Taylor, encomendado pelo governo de Margaret Thatcher, bem como pelos esforços em vários países para renovar os estádios e torná-los simultaneamente
mais seguros e confortáveis.
Um ponto de inflexão aconteceu com a decisão do Tribunal de Justiça da Comunidade Europeia que em 1995 liberalizou o mercado de trabalho de futebol, acabando com as cotas de jogadores estrangeiros do Europeu.; O chamado acórdão Bosman foi imediatamente comparado a uma “revolução” no futebol internacional, reforçando as tendências de liberalização lançada por várias federações nacionais.
Um dos resultados foi um afluxo maciço de jogadores “estrangeiros” em todos os principais campeonatos europeus, incluindo um número significativo de “minorias visíveis“. A reação popular a esta mudança foi complexa e, muitas vezes, contraditória, como mostrou David Ranc em seu livro “Jogadores Estrangeiros e Futebol Supporters”. O afluxo de jogadores de outros países foi recebido nem com aumento, nem com diminuição na xenofobia, nota o relatório da Unesco.
Entretanto, o documento nota que a mudança significativa na demografia de futebol, com o terreno de jogo ficando cada vez mais multicultural na sociedade europeia, não levou ao desaparecimento de atitudes racistas e discriminatórias. Por exemplo, o sucesso da equipe francesa ‘black-blanc-beur”, campeã mundial de 1998 e saudada no mundo todo como uma realização da sociedade multicultural, não impediu a ocorrências de episódios racistas na França.
O mesmo pode ser dito em relação ao time alemão multiétnico que surgiu na Copa do Mundo da FIFA na África do Sul em 2010, descrito como ‘Cores Unidas da Alemanha` pela revista “France Football”, considerado um modelo de integração harmoniosa entre os jogadores vindos de oito origens diferentes. Essa mesma equipe essencialmente foi a vencedora da Copa do Mundo no Brasil.
Casos de racismo e discriminação – A Copa do Mundo de 2014 foi avaliada especificamente no relatório da Unesco, em função de episódios racistas e de discriminação registrados. Caso do canto de torcedores mexicanos durante o jogo contra Camarões, percebido como homofóbico. Cada tiro de meta era recebido com os gritos de “¡Puto! ‘ da torcida mexicana, o que pode ser interpretado como uma forma de se referir a homens homossexuais, como registraram meios de comunicação e ativistas anti-discriminação.
Quando cobrada pela FIFA, a federação mexicana alegou que a referência não era “um insulto” naquele contexto. O incidente, para o relatório da Unesco, sublinha a dificuldade de se avaliar o que exatamente é um insulto ou discriminação, e como pontos de vista contraditórios podem coexistir.
Durante o jogo entre Alemanha e Gana, pelo menos dois incidentes racistas foram relatados na mídia. O primeiro evento envolveu um número de torcedores alemães que tinham seus rostos pintados de preto. Neste caso, como no do México, a ambiguidade habitual veio à tona. “Não é certo que os criminosos tenham percebido que suas ações eram
insultuosas para as minorias”, comenta o documento. No mesmo jogo, um membro do público correu para o campo; em seu peito foi pintado um endereço de e-mail que inequivocamente se referia a Adolf Hitler e a campos de concentração.
Abusos raciais de alguns torcedores ingleses foram relatados pelo menos duas vezes no jogo da Copa de 2014, entre Uruguai e Inglaterra. O episódio, que envolveu ataque físico, causou grande alvoroço na mídia do Reino Unido. A rede FARE registrou episódios racistas e discriminatórios em 12 dos 64 jogos da Copa.
O relatório cita outros casos, ocorridos fora do âmbito da Copa do Mundo. Cita por exemplo o caso do clube peruano Real Garcilaso, multado pela CONMEBOL por insultos racistas de seus torcedores contra o jogador brasileiro Paulo César Fonseca, o ‘Tinga’, que atuava no Cruzeiro Esporte Clube. No Uruguai, o Danúbio foi igualmente multado por
insultos racistas de torcedores contra Flavio Córdoba, jogador do River Plate de Montevidéu. O racismo das multidões também tem como alvo os árbitros, como no caso do brasileiro Márcio Chagas da Silva.
O arremesso de bananas, juntamente com a imitação de sons de macaco, é um dos mais frequentes abusos racistas dirigidos a jogadores negros (embora até mesmo o lendário goleiro alemão Oliver Kahn tenha sido cumprimentado dessa maneira na Bundesliga. Em maio de 2014, um torcedor do espanhol Villareal jogou uma banana no gramado do
Barcelona, no episódio que ficou famoso pela atitude do zagueiro Dani Alves, que comeu a fruta. A resposta muito espontânea, dada para ridicularizar o gesto racista, foi muito comentada na mídia e redes sociais.
No Brasil, lembra o relatório, a hashtag #SomosTodosMacacos se tornou viral, após e o seu lançamento pelo jogador Neymar, também atingido por ofensas racistas.
Anti-racismo – Por outro lado, o relatório registra a emergência anti-racistas e anti-discriminação no futebol. Em 1993, uma pequena associação independente nomeada “Deixe o racismo fora do futebol” foi criado na Inglaterra pela
Comissão para a Igualdade Racial e Professional da Associação de Futebolistas. Quatro anos mais tarde, a organização tornou-se a Kick It Out, agora apoiada pela Premier League e outras organizações e com parceria com a UEFA.
Desde 1999, uma exposição surpreendentemente bem sucedida sobre a discriminação (“Tatort Stadion ‘) tem sido mostrada em mais de 100 cidades alemãs. Também existem iniciativas governamentais, como o espanhol ‘Observatorio de la Violencia, el Racismo, la Xenofobia y la Intolerancia en el Deporte ‘ ou o italiano ‘Osservatorio sul razzismo e l’antirazzismo sul Calcio ‘.
Prevenção e combate – O relatório da Unesco cita finalmente sugestões de ações preventivas e de combate ao racismo e discriminação no futebol, destacando casos de sucesso em alguns países. A principal prevenção, assinala, é a própria legislação que pode ser aplicada contra os infratores.
O principal paradigma, observa, é afirmado no artigo 7º da Declaração Universal dos Direitos Humanos, ao enfatizar que “todos são iguais perante a lei e têm direito, sem qualquer distinção, à igual proteção da lei “. Entre os acordos internacionais a respeito, existe a Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial (ICERD), que entrou em vigor em 1969 e agora tem 177 países signatários.
A Recomendação N ° 12 sobre a Luta contra o Racismo e Discriminação Racial no domínio do esporte, feita pela Comissão Europeia contra o Racismo e Intolerância (ECRI), teve importantes desdobramentos, com vários países europeus criando legislações específicas. Reino Unido, Itália, França, Bélgica, Espanha e Alemanha adotaram legislações a respeito. O relatório diz que Brasil e Uruguai também contam com instrumentos legais contra o racismo e a discriminação.
Entre as boas práticas, o relatório cita o caso da Inglaterra, onde mensagens e gestos anti-racistas são emitidas por clubes importantes. Caso do Arsenal, que passou a enviar mensagens positivas para a comunidade judaica, após cânticos anti-semitas terem sido ouvidos nos estádios Highbury e no Emirates.
O documento indica que um clube pode decidir nomear um jogador negro como capitão para mostrar seu compromisso com a diversidade e inclusão. Um clube também poderia demonstrar ostensivamente uma mudança de atitude em favor da diversidade, abrindo os seus conselhos para as minorias não representados.
A feminização do futebol é outra estratégia fundamental, salienta o relatório, que cita o exemplo da França, onde foi montado um plano de desenvolvimento a médio prazo para o futebol feminino. O plano visa criar uma mudança de cultura, permitindo a igualdade de gênero.
Outro caso registrado é o da Federação Alemã de Futebol, que publicou no final de 2013 um abrangente e detalhado Relatório de Sustentabilidade, seguindo os critérios do Global Reporting Initiative (GRI), englobando o conceito da sustentabilidade em suas diferentes dimensões e inclui seções sobre diversidade e integração, bem como a responsabilidade em relação às pessoas com deficiência.
Entre outras medidas, o relatório aponta finalmente a eficácia da individualização de sanções. Com o uso de câmeras de vigilância nos estádios, é possível identificar e responsabilizar os indivíduos que cometem atos racistas e discriminatórios.
Introduzir a discussão sobre o racismo e a discriminação na educação é fundamental, diz o relatório. O documento cita a iniciativa «Gioca con me” da Juventus, que trabalha em conjunto com a Unesco em escolas de Turim, visando valorizar a diversidade e lutar contra “preconceitos perigosos”.
O racismo e a discriminação não desaparecerão dos estádios de futebol por magia, conclui o relatório. Mas o próprio documento ressalta ser possível uma ação cada vez mais sistemática, coerente e coordenada, “por aqueles que compartilham o objetivo de promover a diversidade cultural e inclusão social por uma bola de futebol”.