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Na COP-21, povos indígenas denunciam ecocídio e propõem novo estilo de vida
Paris sediou no final de 2015 grande conferência sobre mudanças climáticas, um dos grandes riscos globais segundo Fórum Econômico Mundial (Foto Adriana Menezes)

Na COP-21, povos indígenas denunciam ecocídio e propõem novo estilo de vida

A denúncia do que chamam de ecocídio e a proposta de um novo estilo de vida marcam a participação dos povos indígenas na COP-21, cujas negociações em Paris são caracterizadas pelo uso de uma nomenclatura mais técnica e desprovida de sentido político. Um dos pontos da presença dos povos indígenas na Conferência do Clima foi a entrega ao presidente francês François Hollande, pelo cacique Raoni Metuktire Kayapó, do documento “Propostas e recomendações da Aliança dos Guardiões da Mãe Natureza aos Estados e à comunidade internacional para a preservação”, reproduzido abaixo na íntegra pela Agência Social de Notícias. Apesar da forte presença indígena no evento na capital francesa, ainda não está assegurado que os seus direitos sejam incluídos no chamado Acordo de Paris, que deve ser anunciado até 11 de dezembro.

O reconhecimento do ecocídio como crime internacional, a ser julgado pela Corte Penal Internacional; o fim da exploração dos combustíveis fósseis;  a aplicação da Convenção das Nações Unidas Contra a Corrupção, no combate à exploração e comércio de madeira ilegal; e a efetiva proteção dos oceanos – estes são alguns dos pontos do documento entregue pelo cacique Raoni ao presidente Hollande, e que é fruto da Assembleia dos Guardiões da Mãe Natureza, realizada dia 28 de novembro em Paris.

Os povos indígenas de todo mundo estão se preparando há alguns meses para participar ativamente da COP-21, justamente como forma de buscar a inclusão de seus direitos no Acordo de Paris. Um dos momentos marcantes dessa preparação foi a realização, entre os dias 10 e 12 de outubro de 2015, em Tiquipaya, Bolívia, da Conferência Mundial dos Povos Indígenas sobre Mudanças Climáticas e Defesa da Vida. O encontro resultou em uma declaração que destaca a necessidade de “transição até o modelo de civilização do viver bem”.  “Em um cenário onde nossa Mãe Terra se encontra mais ferida e o futuro da humanidade se vê em maior perigo, os povos do mundo devemos seguir dialogando e defendendo a vida”, diz o documento, levado à COP-21 de Paris.

Em Paris, foi montado o Pavilhão dos Povos Indígenas, aberto no dia 1 de dezembro e que tem recebido vários eventos paralelos à Conferência oficial. Entre os eventos na programação do Pavilhão, estão os painéis “Conhecimentos ancestrais dos povos indígenas, como aposta para enfrentar a mudança climática” (do Fórum Indígena Abya Yala-FIAY); “Contribuição das mulheres indígenas à mudança climática” (Rede de Mulheres Indígenas sobre a Biodiversidade – RMIB); “Fundos Regionais para Povos Indígenas e Mudanças Climáticas” (Fórum Indígena Abya Yala – FIAY); “Povos Indígenas e Financiamento Climático” (FIAY); e “Salvaguardas REDD+ e Povos Indígenas” (também do Fórum Indígena Abya Yala – FIAY).

Documento na íntegra  – Esta é a íntegra do documento “Propostas e recomendações da Aliança dos Guardiões da Mãe Natureza aos Estados e à comunidade internacional para a preservação do clima e das gerações futuras”:

“No final da Assembléia dos Guardiões da Mãe Natureza, que se realizou em 28 de novembro de 2015, no Teatro da Reine Blanche em Paris, os representantes indígenas, as personalidades e as organizações presentes, provenientes do mundo inteiro, chamam a atenção para o fato de que os povos indígenas representam 370 milhões de pessoas, localizadas em mais de 70 países em cinco continentes. São mais do que 5 000 grupos diferentes, falando mais de 4 000 línguas, a maioria das quais corre o risco de desaparecer antes do fim do século XXI.

Por conseguinte, eles lançam um apelo aos Estados e à comunidade internacional para:

1. Adotar pela Assembléia Geral das Nações Unidas a Declaração Universal dos Direitos da Mãe Terra, declaração formulada na Conferência Mundial dos Povos contra as Mudanças Climáticas, em Cochabamba, em abril de 2010. Esta Declaração é um apelo que expõe os princípios fundamentais e universais visando o reconhecimento mundial dos direitos à terra e a todos os seres vivos que a povoam, como fundamentos de uma cultura de respeito, indispensável ao desenvolvimento comum e sustentável da humanidade e da Terra, para unirmos todos os habitantes do planeta em torno desse interesse comum e universal: a Terra é um organismo vivo, é a nossa casa comum, temos que respeitá-la para o bem de todos e para as gerações futuras.

2. Reconhecer e aplicar a Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas, aprovada em Assembleia Geral, em 13 de setembro de 2007. Em seu artigo 3 ela define o direito à autodeterminação dos povos indígenas. “Em virtude desse direito, eles determinam livremente seu estatuto político e buscam livremente seu desenvolvimento econômico, social e cultural.” Enfim, fica explicito no artigo seguinte, 3 bis, que “Os povos indígenas, no exercício de seu direito à autodeterminação, têm o direito de serem autônomos e de se administrarem a si mesmos no que é aferente à seus assuntos internos e locais, e também dispor de todos as possibilidades e meios para financiar suas atividades autônomas.” Esta declaração define também os direitos individuais e coletivos dos povos indígenas, particularmente os relacionados à espiritualidade, à terra, ao território e às riquezas, à cultura, à identidade, à língua, ao emprego, à saúde e à educação. Ela insiste no direito dos povos indígenas de perpetuar e de fortalecer suas instituições, sua cultura e suas tradições e de promover seu desenvolvimento em conformidade com suas necessidades e aspirações e suas necessidades. Ela também proíbe qualquer forma de discriminação contra eles e promove a participação plena e eficaz deles em todas as decisões que os afetam, particularmente quando se trata de respeitar o direito deles de manter sua integridade como povos distintos e garantir seu desenvolvimento econômico e social. O reconhecimento dos direitos territoriais, o uso e a proteção dos bens naturais, o relacionamento para com a terra em sua dimensão espiritual, ocupam um lugar central na reivindicação dos povos indígenas. Estas questões que estiveram no cerne da negociação da Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas estão hoje ameaçadas pelo avanço das frentes de colonização vinculadas com a realização de grandes projetos de infra-estruturas e perturbadas pela intensificação das atividades de mineração e de agroindústrias.

Povos indígenas propõem caracterização de crime "de ecocídio", para proteger a Terra (Foto José Pedro Martins)

Povos indígenas propõem caracterização de crime “de ecocídio”, para proteger a Terra (Foto José Pedro Martins)

3. Ratificar universalmente a Convenção 169 da OIT e aplicá-la rigorosamente. Esta Convenção baseia-se no respeito das culturas e dos modos de vida dos povos indígenas e tribais. Ele não só reconhece a esses povos o direito à sua terra e a seus recursos naturais, como também exige tomar a opinião deles de boa fé antes da realização de qualquer projeto na terra deles, de maneira livre e informada. Até agora, apenas 22 Estados a ratificaram. A França, que hospeda a COP 21, ainda não o fez e, no entanto, ela abriga numerosas comunidades indígenas, sem dizer que um de seus departamentos, a Guiana Francesa, situa-se na Amazônia.

4. Considerar que uma comunidade pode aceitar ou rejeitar qualquer projeto em seu território, antes mesmo da fase de estudo de impacto e que as decisões delas devem ser entendidas como firmes e obrigatórias. Solicita-se também que os estudos de impacto ambiental e social sejam totalmente independentes e, por conseguinte, que não sejam financiados por empresas ou por Estados que os favoreçam. Os governos devem reconhecer e aceitar os protocolos escritos por comunidades indígenas em nome de seu direito à autodeterminação.

5. Considerar que os direitos territoriais dos povos indígenas e tribais se aplicam ao solo, mas também ao subsolo, a fim de protegê-los contra projetos de mineração não consentidos.

6. Conservar os combustíveis fósseis abaixo do solo colocando fim à exploração e qualquer nova extração para proteger a Mãe Natureza, recomendações fundamentadas em conhecimentos indígenas e limitações climáticas com base científica. Para que os verdadeiros interesses de todos sejam protegidos, solicitamos o fim da influência indevida da indústria de combustíveis fósseis na elaboração de políticas internacionais e nacionais e que a indústria petrolífera não tenha mais autorização de participar das negociações internacionais sobre o clima. O fim imediato de financiamentos públicos e outras subvenções para a exploração de combustíveis fósseis, a extração e as infra-estruturas. Investimentos são necessários para o estabelecimento de uma transição justa para uma economia baseada em energia limpa e renovável para todos, mas, prioritariamente, para as comunidades situadas na linha de frente. Chamamos todos os governos para que coordenem esforços com o objetivo de realizar uma transição imediata para um futuro onde um modelo energético limpo, descentralizado e democratizado seja 100% abastecido por fontes de energia renováveis e duráveis. A extração, o transporte e o consumo de combustíveis fósseis causaram graves prejuízos à terra, ao ar, à água, à atmosfera e a todos os seres vivos, contribuindo de maneira substancial para nossa crise climática e para a extinção maciça atual. Tais prejuízos recaem de maneira desproporcional sobre aqueles que não se beneficiaram dos sistemas econômicos e políticos responsáveis por esses danos. Eles não são culpados pela crise, nem possuem recursos suficientes para se adaptarem às mudanças climáticas. Isso inclui as comunidades diretamente atingidas pela extração e utilização de combustíveis fósseis como aquelas que sofrem na linha de frente da crise climática.

7. Seguir os Princípios Diretores Relativos às Empresas e aos Direitos Humanos, aprovados pelo Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas, em junho de 2011; e adotar, o mais rapidamente possível, um Tratado  Internacional que estabeleça determinações obrigatórias para as empresas multinacionais e para os Estados em matéria de direitos humanos, que levariam em conta os direitos das populações indígenas, tais como definidos na Convenção 169 da OIT, na Declaração dos Direitos dos Povos indígenas das Nações Unidas e, de maneira geral, em todas as leis relativas aos povos indígenas em vigor no âmbito internacional.

8. Aplicar rigorosamente a Convenção das Nações Unidas Contra a Corrupção pelos Estados signatários a fim de conter o flagelo do comércio de madeira ilegal (30% do mercado mundial) e o de espécies ameaçadas. Deve-se também tomar medidas para lutar contra a apoderação ou aquisição ilegal de terras, as concessões ilegais de mineração e a biopirataria.

9. Emendar a Convenção sobre a Diversidade Biológica a fim reconhecer e proteger melhor os saberes tradicionais ancestrais, assim como lutar contra a biopirataria.

10. Adotar uma Convenção internacional, definindo o que sejam eco-crimes para permitir ações contra a criminalidade ambiental organizada. Os lucros gerados pelos crimes ambientais são muito elevados enquanto as ações judiciais são raras e leves suas penas. Isso vale tanto para o tráfico das espécies ameaçadas quanto para o trafico de dejetos e de outras poluições voluntárias.

11. Promover a criação de um novo programa de cooperação internacional a fim de acompanhar os povos indígenas e as comunidades locais em um projeto global de restauração e de preservação sustentável da floresta amazônica e das outras florestas primárias do planeta. Inspirando-se no admirável sucesso do PPG7, esse novo programa de cooperação internacional deverá ampliar o trabalho já realizado de preservação das florestas tropicais do Brasil, para, em seguida, passar às florestas tropicais da África, da Indonésia e das outras florestas primárias do planeta, levando-se em conta, claro, as realidades locais. Os líderes tradicionais indígenas da Amazônia brasileira, fundadores da Aliança, gostariam que este programa incluísse o financiamento da demarcação e da fiscalização de todas as terras indígenas do Brasil. Esta legislação deve valer também para todo projeto desse tipo, em todos os territórios indígenas do mundo.

12. Transformar urgentemente em santuário as florestas primárias do planeta, sob a proteção dos povos indígenas que aí vivem. As Nações Unidas já reconheceram que a presença deles é um fator que garante a não deterioração desses meios ambientes inestimáveis. Deve-se claramente indicar que os povos indígenas devem ser proprietários e guardiões desses territórios, dos quais não poderão jamais serem expulsos. A Aliança salienta a necessidade de criar o mais rapidamente possível, com o apoio dos Estados, um estatuto jurídico internacional para proteger eficazmente esses ecossistemas vitais contra toda forma de predação. Esses ecossistemas não devem ser usados no âmbito dos mercados de carbono, dos programas de pagamento de serviços ambientais (PES), dos programas REDD e dos mecanismos de desenvolvimento limpo (Clean Development Mechanism).

Povos indígenas pedem proteção para a biodiversidade marinha (Foto Adriano Rosa)

Povos indígenas pedem proteção para a biodiversidade marinha (Foto Adriano Rosa)

13. Alertar os Estados e a comunidade internacional para protegerem e garantirem o futuro da biodiversidade marinha. Se o Oceano morrer, nós morremos. A diminuição das espécies marinhas, a redução da produção de oxigênio, o aumento de dióxido de carbono, de metano, de nitrato e de vapor de água, a acidificação e o branqueamento dos corais no oceano, a poluição química, radioativa, plástica e a poluição sonora, a fome sem precedentes de espécies marinhas, além de muitos outros fatores, representam um perigo para os oceanos. A principal causa é o aumento progressivo da população humana, o aumento do consumo de recursos, o aumento do número de animais domésticos e uma completa falta de iniciativa, de coragem e de entusiasmo por parte dos líderes políticos mundiais. Durante centenas de milhões de anos foi o Oceano que carregou toda a vida planetária, fornecendo alimentos e a maior parte do oxigênio que respiramos, capturando o dióxido de carbono e regulando o clima por meio das correntes marítimas, dos ventos, das marés e da interdependência da diversidade de espécies que ele abriga. Portanto, a fim de proteger e garantir o futuro da biodiversidade marinha, precisamos colocar em prática as seguintes ações:

- Cessar todos os subsídios mundialmente dados pelos governos às operações de pesca

industrial.

- Proibir toda tecnologia de pesca industrial como grandes arrastões, palangres, redes de emalhar, cercadores com rede de cerco, redes e linhas de monofilamento etc.

- Criar uma legislação internacional contra a pesca ilegal.

- Proibir todas as atividades comerciais oriundas da caça à baleia.

- Estimular a diversidade pelo aumento das populações de peixes, de mamíferos marinhos, de aves marinhas e de outras espécies endêmicas.

- Acabar com a alimentação baseada em farinha de peixe para animais domésticos (que é responsável por aproximadamente 40% da pesca): porcos, galinhas, salmões, gatos e criação de animais para produzir pele.

- Acabar com o despejo de produtos químicos, plásticos, dejetos agrícolas e radioativos no mar.

- Acabar com a poluição sonora produzida pelos sonares de exploração de hidrocarbonetos e pelos armamentos.

14. Reconhecer pela Onu e pela Unesco os locais sagrados bio-culturais dos povos indígenas e tribais, das comunidades locais, e reconhecer-lhes o direito à terra e ao governo destes locais.

15. Regulamentar internacionalmente com normas obrigatórias a construção de grandes hidrelétricas, para colocá-las em conformidade com as recomendações do relatório final da Comissão Mundial de Barragens (2000). A Aliança também pede o desmantelamento das grandes barragens construídas em violação do direito à consulta livre, prévia e informada dos povos indígenas afetados, ou de qualquer outra exigência relativa aos povos indígenas presente na legislação internacional em vigor.

16. Reconhecer direitos às gerações futuras particularmente pela adoção de uma Declaração dos Direitos (e Deveres) da Humanidade. O texto quer “lembrar que a atual geração tem o dever de preservar a herança legada das gerações passadas, como também proceder a escolhas que comprometam sua responsabilidade para com as gerações futuras”. O texto estabelece quatro princípios fundamentais: o principio de responsabilidade, de equidade e de solidariedade entre gerações, o princípio de dignidade humana, o princípio de continuidade da existência da humanidade e, finalmente, o da não-discriminação por fazer parte de uma geração.

17. Reconhecer o crime internacional de ecocídio, cuja competência seria atribuída à Corte Penal Internacional. O crime do ecocídio deve ser caracterizado por « um dano amplo ou uma destruição cujos efeitos provocariam alterações graves e duradouras de bens comuns ou de serviços ecossistêmicos dos quais dependem uma população, ou uma de suas parcelas ». A criminalização do ecocídio deve, portanto, aplicar-se aos danos causados aos seres vivos e se estender aos componentes essenciais à vida, com o objetivo de garantir a continuidade da vida e da própria humanidade. Ela estabelece para as gerações atuais o dever de preservar o meio ambiente para as gerações futuras. Ela dá, pois, direitos de fato às gerações futuras. Assim, a proibição do ecocídio garantiria o direito a um ambiente saudável para a humanidade, isto é para as gerações atuais e futuras, assim como consagraria o direito da natureza de estar protegida. Para usufruir desses direitos, os povos indígenas desejam usar na justiça suas línguas tradicionais”.

Pantanal: reconhecimento de "locais sagrados" é outra reivindicação dos povos indígenas reunidos em Paris (Foto José Pedro Martins)

Pantanal: reconhecimento de “locais sagrados” é outra reivindicação dos povos indígenas reunidos em Paris (Foto José Pedro Martins)

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