Por José Pedro Martins
O poder do olhar. Atuando no epicentro da epidemia de Ebola na Guiné, em 2014, como integrante da missão de Médicos Sem Fronteiras, obrigatoriamente a Dra.Rachel Soeiro atendia os pacientes com a roupa de proteção projetada para a ocasião extrema, para evitar a contaminação com o vírus que pode ser letal. Depois de alguns dias, bastava um olhar e os pacientes, muitos deles crianças de cinco, seis, anos, já reconheciam a médica formada na Unicamp, que não esconde a emoção ao contar essas e outras experiências na organização.
Nesta quarta-feira, 11 de maio, a Dra.Rachel participa, a partir das 19 horas, no SESC-Campinas, da abertura da série de eventos “Conexões MSF – Campinas conectada com a ajuda humanitária”, em que Médicos Sem Fronteiras vai apresentar o seu trabalho para a cidade e toda a região metropolitana. A abertura será às 19 horas, com exibição do documentário “Caminhos da Vacina” e bate papo com representantes da organização. O evento é gratuito e os interessados devem retirar o ingresso uma hora antes do início.
A Dra.Rachel Soeiro considera esta uma oportunidade preciosa para os alunos dos cursos de Medicina de Campinas, mas também para estudantes, profissionais e cidadãos em geral, conhecerem a rica trajetória de Médicos Sem Fronteiras, que desde 1971 atua em crises humanitárias pelo mundo todo e que em 1999 foi reconhecida com o Prêmio Nobel da Paz. “Campinas é muito grande, tem muitas universidades e faculdades, e é fundamental a aproximação de MSF da população, que assim fica conhecendo melhor o que é feito. Todo o trabalho desenvolvido somente é possível pelo apoio dos cidadãos, responsável por grande parte das doações que viabilizam levar a assistência médica a locais onde não há nenhum serviço ou medicamentos”, diz a médica.
Jornada humanitária – A própria jornada humanitária da médica, junto a Médicos Sem Fronteiras, começou quando participou de um evento na Unicamp, ainda estudante. “A organização apresentou seu trabalho e eu fiquei encantada. Passei a ler tudo sobre o trabalho de Médicos Sem Fronteiras pelo mundo e depois que me formei e preenchi os requisitos me candidatei a uma vaga e comecei a atuar com eles”, conta Rachel Esteves Soeiro, nascida em São Paulo e graduada em 2006 pela Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Estadual de Campinas.
O primeiro de trabalho de campo com MSF foi no Níger, entre junho de 2011 e março de 2012. A médica atuou em um hospital na época em que havia um pico de malária no maior país da África Ocidental, que tem mais de 80% de seu território de 1,2 milhão de quilômetros quadrados cobertos com o deserto do Saara.
Havia um quadro crítico de desnutrição infantil e a Dra.Rachel conta que o hospital de 150 leitos foi rapidamente adaptado para receber até 450 crianças para atender toda a demanda. “Crianças que eram pele e osso, desidratadas, com peso muito abaixo para a sua idade e que nem podiam sequer andar, mas que após alguns dias de cuidado já estavam caminhando”, lembra a médica, ilustrando o grande impacto que a atuação de Médicos Sem Fronteiras propicia nesses contextos. O Níger sempre apresentou um dos mais baixos Índices de Desenvolvimento Humano (IDH), na classificação do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) – 188º lugar, o último no ranking de 2014.
A segunda missão, entre maio e dezembro de 2012, foi no Sudão do Sul, que se tornou um estado independente somente em julho de 2011, após uma guerra civil que durou décadas. Quando chegou ao país localizado no Nordeste africano, a Dra.Rachel Soeiro encontrou, portanto, uma nação devastada e que começava tudo do zero, incluindo o sistema de saúde. Quase não havia médicos e os enfermeiros tinham sido treinados no Quênia.
Os profissionais de Médicos Sem Fronteiras foram trabalhar em um hospital geral, equipado com maternidade e centro cirúrgico para cirurgias de emergência, entre outros serviços. Eram muitos feridos de guerra e que, sem atendimento médico durante longo tempo, chegavam ao hospital em condições muito ruins. “Foram muitas amputações, infelizmente. Também havia muitas crianças desnutridas e aconteceu uma forte epidemia de sarampo, o que de novo gerou a necessidade de adaptar o hospital para atender uma enorme demanda”, relata a médica. Ela também se lembra dos diversos casos de avançado estágio de tuberculose, doença que tem cura mas que, em situações precárias, continua levando muitas pessoas ao óbito.
Do HIV ao Ebola – A terceira missão da Dra.Rachel Soeiro foi na República Democrática do Congo, entre fevereiro e outubro de 2013. País vizinho ao Sudão do Sul, o antigo Zaire tem uma população de quase 70 milhões de habitantes, sendo o mais populoso país francófono e o décimo segundo em extensão no planeta.
A República Democrática do Congo também passou por uma sangrenta guerra civil, considerado o maior conflito armado desde a Segunda Guerra Mundial, com 6 milhões de mortos. Ainda é, portanto, um estado em construção, com um desafio gigantesco suplementar, o da alta densidade de casos de HIV positivo.
A equipe de MSF foi exercer suas atividades em um hospital no meio da floresta, onde os médicos apenas podiam chegar de avião. A população buscava o hospital em longas jornadas a pé ou de bicicleta. O equipamento ainda dava suporte a 16 centros de saúde na região.
“Houve um grande trabalho junto à comunidade, além do atendimento e acompanhamento dos pacientes. Um trabalho especial com as mães soropositivas”, lembra a médica brasileira. Ela conta que no período em que esteve lá foram monitorados 27 bebês e no final, com o uso de retrovirais, todos tiveram diagnóstico negativo para HIV, como mais um exemplo da relevância do trabalho de MSF nesses locais de vulnerabilidade absoluta.
Em 2014 a Dra.Rachel esteve na Guiné, em plena epidemia de Ebola no país da África Ocidental, com dez milhões de habitantes. Mais de 11 mil pessoas morreram pela ação do vírus entre 2013 e dezembro de 2015, sobretudo em Serra Leoa, Libéria e Guiné, mas novamente e a atuação de Médicos Sem Fronteiras foi literalmente vital.
A médica reconhece ter sido a experiência mais impactante que já teve junto a MSF, em um cenário particularmente doloroso. “O vírus é muito agressivo e mata rápido, com desidratação , sangramento nos olhos e falência múltipla dos órgãos. As famílias não podiam tocar os parentes que morriam por causa da contaminação. E havia famílias inteiras contaminadas”, descreve.
Máximos cuidados eram tomados. Os médicos apenas podiam entrar em casas com casos suspeitos vestidos com a roupa especial de proteção. Sempre em dupla, para que um profissional pudesse conferir se o outro estava devidamente protegido. Depois da atenção ao paciente, desinfecção imprescindível com jatos de cloro.
Um caso muito marcante para a médica brasileira e outros membros de MSF foi o da família de Malik, um rapaz então com 28 anos. A mãe dele foi o primeiro caso de contaminação com Ebola na região. Ela havia viajado para o sul do país, onde se contaminou, e na volta manifestou os sinais da doença. Houve o isolamento, mas a mulher acabou falecendo.
Vários membros da família, inclusive Malik, foram contaminados. Com uma ação rápida e tratamento, com muito líquido, vitamina e outros cuidados, chegou-se à cura.
Malik foi o primeiro caso de cura naquela região e, depois disso, ele foi contratado por MSF como promotor de saúde. Ele e a antropóloga da equipe iam a mesquitas, escolas e outros locais, dar o seu depoimento e repassar informações que ajudavam a desfazer mitos e reforçavam cuidados.
A equipe de MSF fez treinamentos e capacitações e o centro que ocupavam foi o primeiro a ser fechado, devidamente desinfectado, após o encerramento da missão. O vírus foi considerado erradicado na área.
Após vivenciar todas essas experiências, a Dra.Rachel Soeiro diz que se sente muito feliz pela oportunidade de ajudar a levar assistência e cuidado a regiões de muito difícil acesso. “Médicos Sem Fronteiras faz isso, chega onde praticamente ninguém consegue chegar. E por isso é essencial ao apoio dos doadores, que permite essa ação que faz a diferença e evita milhares de mortes”, ela reitera.
“É um aprendizado enorme, de respeito à cultura local, e muitas amizades ao longo do caminho. Com as facilidades de comunicação de hoje, sempre tenho contato com enfermeiras e médicos com quem já convivi”, completa a médica, que neste ano não está em campo, porque cursa o mestrado em Saúde da Criança e do Adolescente na mesma Unicamp onde ser formou. Depois, estará à disposição para o próximo projeto, que sempre depende da conciliação entre a necessidade do local e a capacidade profissional existente. A jornada humanitária de Rachel Soeiro e outros milhares de médicos sem fronteiras vai prosseguir em um planeta onde conflitos e crises continuam causando dor e desespero.
Mais informações no site de Médicos Sem Fronteiras: