Por Sabrina Sanfelice
Muito da história do Sarau da Dalva já é conhecida. Rafa Carvalho, seu idealizador, ainda era um menino. O lugar, a região do Parque São Quirino, zona leste de Campinas, abrigava a periferia, áreas de ocupação, favelas, regiões sem saneamento, rio Anhumas poluído por empresas criminosas. A favela da Moscou, Inferninho. As escolas públicas dali, onde estudou, eram: uma, construída sobre um antigo aterro, apelidada “Lixão” e cedia aos poucos no solo podre; outra próxima a terrenos públicos e áreas de ocupação no Jardim Nilópolis, gerava situações impossíveis, como assassinatos de estudantes no banheiro.
Enquanto Manoel, pai do menino e retirante nordestino semianalfabeto ia tentando a vida, após perder o emprego, único que teve na cidade, terminando por montar um pequeno boteco no bairro, as professoras de Língua Portuguesa de Rafa rogavam suas pragas. Vai ser escritor! Ele não tinha a menor vontade. E foi uma professora de Matemática que sem aviso o inscreveu para o processo seletivo de uma escola além, de Ensino Médio, que segundo ela, poderia alargar seus horizontes. A história é longa, mas em síntese: o menino foi. Saiu da escola que nunca teve a biblioteca aberta, foi estudar no centro, depois foi à universidade na Unicamp. Depois bolsa na Dinamarca, projeto e trabalho no Japão. E fugiu com o Circo, o menino, foi monge por um tempo, pintor de cascos de veleiros, garçom. E tanto girou o mundo, que a praga se cumpriu. Acabou poeta.
E não é à toa começar essa matéria sobre o Sarau da Dalva, falando de seu idealizador. Suas histórias se confundem. Foi num movimento de volta a seu lugar de origem, já transformado pelo tempo, pelos anos de governos que deram um pouco mais de atenção aos menos favorecidos, mas ainda carente, de acesso, estima e oportunidades, que Rafa em parceria com o pai começou o Sarau. O projeto é um dos muitos sediados no bar, que se apresenta como centro cultural comunitário, além de boteco, por ser um espaço possível, disponível em meio a tanta demanda social não-atendida. Dalva é a avó de Rafa, mãe de Manoel, já falecida e mulher baiana tida como louca, fora dos padrões sociais, que passou a vida entre a casa e manicômio: a grande matriarca de toda a Poesia que acontece nesse cruzamento da Avenida Lafayete, entre lá e o Jardim Santana.
O Sarau nasceu numa noite de quarta-feira, dividindo espaço com o futebol e a sinuca. E foi sem imposições galgando voz e vez à Poesia. Aos poucos, o próprio público e comunidade foram decidindo por desligar a TV no seu horário, fechar a mesa de sinuca para usá-la como estante de livros. E a perspectiva ampliada de Poesia que Rafa prospera foi aos poucos acolhendo diversidades, curando preconceitos, e encontrando gente. A Poesia foi apropriada por muitas pessoas que não vislumbravam sequer a possibilidade da Poesia em suas vidas, até então. Homens passaram a deixar seu time de futebol por um instante, um poema. Uma biblioteca pública começou a ser montada. Ali mesmo, aberta. E já o projeto se aproxima de completar seu quarto ano, com cerca de quarenta livros lançados, quarenta exposições de artes visuais realizadas, atrações musicais de todo Brasil e internacionais, performances cênicas diversas, meia tonelada de jiló e centenas de litros de caldos variados oferecidos gratuitamente à população presente.
Rafa brinca com as iguarias do pai, dizendo que o Sarau da Dalva viu Seo Manoel fundar o “Jiloísmo”. Segundo o poeta, muitas pessoas já aceitaram o jiló em suas vidas, por conta dos modos surpreendentes como Manoel os apresenta. Sem dúvidas há muito carinho em tudo que compõe o Sarau da Dalva. E neste ano, o projeto que teve já edições com presença de mais de 300 pessoas – extrapolando em muito a capacidade física do estabelecimento e extravasando Poesia e Arte pelas calçadas – viu-se contemplado pelo Proac, Programa de Ação Cultural do Governo do Estado de São Paulo. Rafa comenta esse apoio como, antes de tudo. o apoio do povo. Segundo ele, é do povo que vem esta verba. É o povo o grande fomentador da Cultura, inclusive financeiramente. E é para povo que tudo deve voltar: “A Secretaria de Cultura do Estado de São Paulo é uma mediadora. Aliás, é isso que nossas instâncias de governo devem ser. O protagonismo é nosso. A finalidade de qualquer ação política e cultural é sempre a população. Temos visto bons e sérios trabalhos artísticos sendo feitos com o Proac e ficamos honrados de sermos um deles. Tudo precisa voltar à comunidade. E o fomento econômico é fundamental sim, mas é também apenas parte do processo. Há o fomento afetivo, energético, que para mim é imprescindível. E isso, nós sempre tivemos de todas as pessoas, no Sarau da Dalva. É o que nos move”.
A primeira edição dessa programação especial fomentada pelo Programa deu-se em Fevereiro, em plena quarta-feira de Cinzas. Foi uma noite de casa cheia com lançamento de livro, intervenções, performances e muitas cores. A segunda edição, por sua vez, será hoje, nesta noite, com a presença da cantora e compositora Lucina, que vem do longo de sua carreira partilhar seu “Canto de Árvore”, confluindo a participação com a exposição de obra “Mandala”, da artista plástica Olga Bilenky, pintada no final da vida de sua amiga Hilda Hilst na Casa do Sol, em Campinas, e que serve como cenário dessa edição do Sarau. Que tem ainda a exposição “Mão de Laços” de Neyde Giacomini, a Dona Neyde, ou Neydoca, frequentadora assídua que, do alto dos seus 86 anos, vem para partilhar sua arte criada a partir de novelos feitos com retalhos de malha. E o lançamento da antologia feminina “Damas Entre Verdes”, recém-lançada em São Paulo pelas Edições Senhoras Obscenas, com presença de algumas de suas autoras.
O Sarau da Dalva segue acontecendo em edições mensais, sempre na segunda quarta-feira de cada mês e deve contar daqui para Julho com muitas presenças importantes da Poesia, Canção, Literatura e Artes em geral. Segundo Rafa, essas presenças servem para, em um só tempo, verificar os ideais igualitários de valor humano e equidade entre os presentes, proporcionar acesso a bens culturais à comunidade local e todo público interessado, além de proporcionar essa convivência com grandes artistas, mestras e mestres que podem na partilha de suas vidas e obras servirem a todas e todos com muita inspiração. Seja à Arte, seja à Vida.
Além do Sarau da Dalva, esse ano traz o Sarau da Dalvinha, que destina um domingo por mês às crianças, com contações de estórias, espaços de livre criação e convivência entre elas, além do convite a mães, pais e interessados, a pensarem juntos um processo de educação complementar livre ao público infantil, pela Poesia. E 2018 ainda promete inaugurar um Clube de Cinema e mais ações culturais comunitárias, além do já tradicional Samba no Maneco e das festas de São João e Santa Luzia.
O Sarau da Dalva acontece num cruzamento da Av. Lafayete Arruda Camargo, no Bar do Manoel – Estrela Dalva, ali no Parque São Quirino. E teve seu projeto contemplado pelo Proac, Programa de Ação Cultural do Governo do Estado de São Paulo. Conta por isso com o fomento e o apoio de sua Secretaria de Cultura e, por ela, de todo o povo paulista. Todas as atividades seguem sendo de acesso livre e gratuito como sempre foram, e à intenção de promover Poesia, Arte e Cultura à população da zona leste da cidade de Campinas, assim como a todo público interessado e presente.
Mais informações podem ser obtidas pelas páginas de Rafa Carvalho e do Sarau da Dalva, no Facebook.
https://www.facebook.com/rafacarvalho.br/
https://www.facebook.com/saraudadalva/
Serviço:
Sarau da Dalva
Quarta-feira, 14 de março de 2018. A partir das 19h.
Bar do Manoel – Estrela Dalva
Av. Lafayete Arruda Camargo, 767. Parque São Quirino.