Por José Pedro S.Martins
A abolição da escravatura aconteceu, oficialmente, a 13 de maio de 1888. Entretanto, 130 anos depois, eliminar de fato a escravidão continua sendo um desafio gigantesco no Brasil. Desde 1995, segundo a Comissão Pastoral da Terra (CPT), mais de 40 mil pessoas foram resgatadas da condição de trabalho escravo no país.
Uma das vozes mais conhecidas contra a escravidão moderna é a do padre Ricardo Rezende. Ele descobriu que o trabalho escravo continuava sendo praticado no Brasil quando chegou à região de Conceição do Araguaia, no Pará, em 1977.
O religioso estava na escadaria de uma Igreja quando viu um trabalhador saindo correndo de um automóvel, logo sendo seguido por duas pessoas, que o acabaram capturando. A princípio, pensou que era algum tipo de brincadeira. Em pouco tempo percebeu que era muito sério: quem foge de situações análogas à escravidão, sobretudo no paraíso tropical da Amazônia, entra rápido para o inferno das ameaças de morte, muitas delas cumpridas.
O padre Rezende reconhece que o país passou a ter uma legislação avançada em relação ao tema, mas continua a conviver com a prática da escravidão por vários motivos. “Temos um cenário de desigualdade social e pobreza que produz o trabalho escravo. Onde há precariedade há maior possibilidade de aliciamento para o trabalho escravo”, afirma.
Entre outros livros, Ricardo Rezende é autor de “Pisando fora da própria sombra” (Editora Civilização Brasileira), fruto da tese de doutorado que defendeu em 2003 no Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia da UFRJ. Entre 2000 e 2002, ele entrevistou 105 pessoas e gravou depoimento 67 depoimentos, relativos a casos de escravidão no Piauí, Mato Grosso e Pará. O resultado foi um panorama do fenômeno da escravidão por dívida, uma das faces da escravidão contemporânea.
“A escravidão não continua a existir apenas no Brasil. Está presente na África, na Ásia, também por questões econômicas e ecológicas, por deslocamentos forçados que colocam a pessoa em situação de vulnerabilidade. E a escravidão existe porque é sempre do outro que se trata. É o estrangeiro absoluto, na definição do antropólogo Claude Meillasoux”, comenta.
Rezende assinala que houve, sim, avanços em termos legais e institucionais no Brasil, desde o reconhecimento pelo Estado, a partir de 1995, da existência de trabalho escravo no país, levando a medidas como a criação do Grupo Interministerial para Erradicar o Trabalho Escravo (Gertraf), substituído em 2003 pela Comissão Nacional para a Erradicação do Trabalho Escravo (Conatrae) e, depois, Coordenação Nacional de Erradicação do Trabalho Escravo (Conaete).
Foram igualmente criados o Grupo Especial de Fiscalização Móvel (GEFM) e a Lista Suja do Trabalho Escravo, um instrumento de visibilidade das empresas que praticam ou usam o trabalho escravo em suas cadeias produtivas.
Entretanto, o professor da UFRJ afirma estar muito preocupado com os retrocessos na legislação trabalhista, praticados ainda no governo do ex-presidente Michel Temer. “No lugar de avançarmos ainda mais, nós retrocedemos. Agora pode tudo, inclusive jornadas de trabalho acima de oito horas, dependendo do acordo entre empregador e empregado. Não há mais intermediação do sindicato, o negociado se sobrepõe ao julgado”, alerta Rezende, para quem a situação favorece a continuidade de casos de trabalho análogo à escravidão.
Além disso, nota que tem ocorrido a diminuição dos recursos para o trabalho de fiscalização do trabalho escravo. “Sem recursos não há como fiscalizar, denunciar e resgatar da escravidão”, adverte. Assim, Ricardo Rezende Figueira reconhece estar nada otimista, mesmo após a histórica decisão da Corte Interamericana de Direitos Humanos, no caso da Fazenda Brasil Verde, condenando o Brasil por omissão no combate ao trabalho escravo. “Em termos econômicos, políticos, o governo tem sido um desastre, e não sei se haverá mudanças com o novo governo”, diz o religioso.
(4º artigo da série DDHH Já, sobre os 30 artigos da Declaração Universal dos Direitos Humanos no cenário brasileiro. No 4º dia do mês de janeiro de 2019, o artigo corresponde ao Artigo 4: Ninguém será mantido em escravidão ou servidão; a escravidão e o tráfico de escravos serão proibidos em todas as suas formas)