POR JOSÉ PEDRO SOARES MARTINS
O artigo 68 das Disposições Transitórias da Constituição Federal de 1988 afirma que “aos remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras, é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes títulos respectivos”. Entretanto, mais de três décadas depois, somente 179 comunidades quilombolas estão com suas terras tituladas, enquanto outras 269 estão com título de propriedade, de acordo com a Comissão Pró-Índio de São Paulo (aqui). São 1.695 terras quilombolas em processo, indicando que 85% dos territórios quilombolas estão sem relatório de identificação.
Números indicando que a luta das comunidades quilombolas por seus territórios ainda está muito distante de alcançar seus objetivos. As primeiras ações do governo de Jair Bolsonaro, pelo contrário, apontam que essa caminhada pode durar ainda mais, como lamentam as organizações que defendem os seus direitos.
A visão do presidente sobre a questão quilombola foi sinalizada em discurso que proferiu no Clube Hebraica, bairro das Laranjeiras, no Rio de Janeiro, em 3 de abril de 2017. “Eu fui num quilombo. O afrodescendente mais leve lá pesava sete arrobas. Não fazem nada! Eu acho que nem para procriador ele serve mais”, disse Bolsonaro, ainda avisando que, se fosse eleito presidente, não haveria mais “um centímetro demarcado” para indígenas e quilombolas. O presidente foi aplaudido por grande parte da plateia, composta por empresários e executivos.
Promessa feita, promessa cumprida. Com a Medida Provisória 870/2019, assinada no dia em que o novo presidente tomou posse, a 1 de janeiro de 2019, o reconhecimento de comunidades indígenas e quilombolas passou para a esfera do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa), cuja titular, a ex-deputada Tereza Cristina, é aliada histórica do chamado setor ruralista.
Mais especificamente, a titulação das comunidades indígenas e quilombolas passou a ser atribuição do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), vinculado à Secretaria Especial de Assuntos Fundiários (Seaf) do Mapa, dirigido por Luiz Antônio Nabhan Garcia, presidente licenciado da União Democrática Ruralista (UDR), organização que inimiga histórica da reforma agrária.
“A sinalização é de enterrar o processo de titulação dos territórios quilombolas, diminuir o status do Incra, um órgão estratégico não só para a titulação, mas também para a governança fundiária do país”, declarou Denildo Rodrigues de Moraes, da Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq), para o Instituto Socioambiental (ISA, aqui).
No início de fevereiro de 2019, o Partido Socialista Brasileiro (PSB) entrou com ação no Supremo Tribunal Federal (STF), questionando a MP 870, em questões como a transferência da atribuição de reconhecimento das terras indígenas e quilombolas para o Mapa. No caso, o PSB ajuizou Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) número 6062 contra a MP.
Em sua ação, o PSB argumentou que as mudanças indicadas na MP “consagram o mais profundo retrocesso no tratamento da temática indígena no país, desde a promulgação da Constituição de 88”. Para o partido, a medida “compromete, a não mais poder, a efetividade das normas constitucionais voltadas à proteção dos povos indígenas e dos seus direitos fundamentais”, o mesmo valendo para as comunidades quilombolas.
Na segunda semana de março, o Conselho Indigenista Missionário (Cimi) entrou no STF com pedido de amicus curiae na ADI apresentada pelo PSB. O amicus curiae é um instrumento jurídico garantindo que uma parte interessada em um processo possa contribuir com o seu desenvolvimento.
Existem portanto reações em curso contra as mudanças consagradas pela MP 870. O êxito ou insucesso dessas reações influenciará no ritmo das demarcações e titulações de terras indígenas e quilombolas no Brasil.
(76º artigo da série DDHH Já, sobre os 30 artigos da Declaração Universal dos Direitos Humanos no cenário brasileiro. No 17º dia do mês de março de 2019, o texto corresponde ao Artigo 17: 1.Todo ser humano tem direito à propriedade, só ou em sociedade com outros. 2. Ninguém será arbitrariamente privado de sua propriedade.)