Por Rafa Carvalho
Todo poeta devia ter uma ponte no caminho até sua casa.
De preferência bem alta. Com asfalto embaixo, nada de muito parapeito, cheia de perigo e possibilidade. Não é uma sugestão. É só um devaneio. Mas se quiser testar o pulso da sua vida, faça isto. Mantenha sempre no rumo, entre o ponto de ônibus – a estação de trem, metrô – e sua casa: uma ponte.
Meu sangue cigano me dá o direito de beber na rua, numa segunda-feira, enquanto caminho. Mas não me dá direito à moradia. A não ser esta, solta, no mundo. Eu hoje estou na Liberdade. Amanhã, ninguém sabe.
Pode ser que o meu sangue cigano amanheça espalhado, imprimindo no piche da Radial Leste, esta minibiografia. Que vai pouco a pouco sendo apagada, às borrachas dos pneus prementes.
Poetas são borboletas.
Que de repente se estraçalham, junto a um para-brisas.
Mas se não. Se você vencer a ponte – à travessia. A vida está refeita do outro lado.
Você pode atravessar no vermelho, breve e surpreendente, entre um ônibus e o HB20. Você pode deixar os sete goles ainda suficientemente frios da sua long neck com o mendigo na calçada. Pode saltar a poça qual criança, espiar o resultado do jogo na padoca. Subir à meia-luz tristonha desse karaokê vazio e ou cantar a Sandra Rosa Madalena do Magal. Ou beijar a boca vermelha em lábios murchos da senhora que veste um quimono verde-água com motivos coloridos, a cheirar naftalina – que até então cantarolava solitária sua melhor versão de Kita Sakaba. Chupar um sorvete Melona, comprar milho verde raspado na esquina e jogar tudo para os ratos em aleluia. Fazer uma aula experimental na academia 24 horas da rua próxima. Adotar o gato preto magricela que ignora – você e tudo – enquanto fuça o lixo. Vencer um campeonato de sinuca na Tamandaré, arriscar mudando o corte no cabelo às 4 da madruga na barbearia que serve tangawisis, lá no Baixo do Glicério. Amanhecer cantando a Deus com haitianos num culto das oito. Ou escrevendo o poema inédito, enquanto sua esposa abre a janela no quarto, cobrindo os peitos pros vizinhos, com a camisa dontem.
Você pode tudo poeta.
Se atravessar a ponte e prosseguir. Pela Rua da Glória.