Por Daniela Prandi
“Bacurau” termina e tímidos aplausos de repente ganham força na sala de cinema em um shopping de Campinas. O novo filme de Kleber Mendonça Filho, que aqui trabalha em parceria com Juliano Dornelles, vencedor do Prêmio do Júri no Festival de Cannes 2019, feito inédito para o cinema brasileiro, confirma que o cineasta que chamou atenção com “O Som ao Redor” (2013) e polemizou com “Aquarius” (2016) amadureceu. Em uma forte mistura de gêneros, é impossível não pensar em Tarantino, muito por causa da violência, mas também pela inteligência com que história e referências vão se amarrando. E o nó que fica é forte e pinga sangue. “No centro do sertão, o que é doideira às vezes pode ser a razão mais certa e de mais juízo”, resumiu Guimarães Rosa em “Grande Sertão Veredas”. “Bacurau”, justamente, é isso, uma doideira necessária.
“A violência está no centro de tudo, mas não é o objetivo, o filme é sobre o que ocorre quando há radicalização”, já explicou o diretor. Sim, os tempos são radicais por aqui e por aí. O filme começa adivinhando o que o futuro nos espera, um futuro até próximo demais e é singular ao embaralhar referências, revisitar gêneros e mostrar um amanhã distópico. A TV exibe execuções no Vale do Anhangabaú, em São Paulo, enquanto, no pequeno vilarejo no sertão pernambucano, os poucos moradores preparam um funeral enquanto enfrentam, inquietos e resistentes, males como o prefeito desonesto que cortou a água do lugar, o assédio de matadores e o isolamento.
“Bacurau” tem um quê de faroeste, uma pitada de ficção científica e muito suspense, mas nos faz lembrar de filmes de cangaço e do Cinema Novo, que já trouxeram glória ao cinema nacional. Neste mês de setembro, a edição da revista Cahiers du Cinema, a mais respeitada publicação de cinema, colocou “Bacurau” na capa. Histórico, para dizer o óbvio. A foto reúne os moradores da comunidade que reúne personagens ímpares, como a médica local Domingas (Sônia Braga, protagonista de “Aquarius” e aqui em um papel menor, mas não menos marcante), o ex-matador Pacote (Thomas Aquino), o cangaceiro trans Lunga (Silvero Pereira) e a jovem Teresa (Barbara Colen), que abre a história levando remédios nas empoeiradas estradas do sertão de carona no caminhão-pipa.
No universo fantástico de “Bacurau” as direções são múltiplas, mas a viagem será marcante, pode acreditar. Um casal de fora, de moto e roupas coloridas, aparece de repente. A mulher pergunta o que significa Bacurau. É o nome de um pássaro, explica a dona da venda, que indica uma visita ao museu. Eles desprezam. A trama carrega seus primeiros momentos de tensão enquanto descobre-se que a dupla, branca, do Sul do Brasil, trabalha para um grupo de estrangeiros, liderado por Michael (Udo Kier), que estão ali com um propósito. Os brasileiros do Sul se identificam mais com os gringos do que com os nordestinos, mas os estrangeiros não conseguem ver a diferença.
De repente, “Bacurau” sai do mapa, perde o sinal de celular, tudo orquestrado pelos gringos, fanáticos por armas antigas, loucos para atirar, não importa em quem, só por diversão, pela adrenalina, para matar uma vontade. A comunidade entende rapidamente a ameaça que vem do estrangeiro, se defende, o museu e a escola, não por acaso, se tornam sedes da resistência. Tiroteios, mortes e mais mortes sujam o chão de vermelho, as cenas de caça se sucedem, e o horror daquilo tudo faz a gente desejar e esperar a vingança para lavar a alma.
“Bacurau” mostra, por meio daquela comunidade, que a luta é de todos. Permitir que nos matem, que nos tirem de nosso lugar, que acabem com a nossa cultura, não é opção. Resistir é preciso.
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