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Uma fábula para meus amigos
"Natureza morta com peixes", Paul Gauguin

Uma fábula para meus amigos

Por Rafa Carvalho

Estou em licença-paternidade. Inclusive da arte em sentido produtivo. Escrevi na semana passada um poema, a Fé meu filho, antecedido por uma prosa como esta, em itálico, saudando vocês, dizendo saudades, e contextualizando minha ausência, na coluna. Disse ainda que esperava voltar em 2020, com aquela efetiva frequência semanal, que de fato eu nunca tive. Volto hoje, pra fechar o ano, com uma fábula. A realidade anda muito áspera, cortante. E precisamos de um pouco de sonho e fantasia. Sabem, eu acho que uma das estratégias que pairam, no mundo, pelas fontes perversas de poder atualmente, é matar-nos pelo emocional. Assassinar nossos sentimentos, a capacidade sã do raciocínio, jogar nossa psiquê nas valas, aos mares. E olhando assim, não estaríamos com isso distantes de um apocalipse zumbi. Logo poderemos ser apenas corpos sem ânima, vagando por aí doentes, trabalhando numa nova escravatura. Usando o pouco que se finge de ganho, pra consumir o que nem queremos, muito menos precisamos. Eu sempre encontrei afeto, no humano. Hospitalidade, empatia, ternura. Sempre achei o dom de reunirmos. Mas nunca foi fácil. Nem exatamente simples. Costumava ser naquele “último lance”, sabem. Coisa de anjo mesmo. Milagre. Isso me deu fé. Mantém minha esperança. Mas também me mostrou o quanto, em quantidade, estamos muito distraídos ainda. Perdendo os caminhos, muito mais que nos achando. Presos a ilusões, cárceres do ego. Alimentando a existência com mentiras, que não nutrem o seio da alma. E enquanto fazemos tudo isso, nós, estranhamente, nos aplaudimos. No início da minha vida, eu tinha de lutar contra a curiosidade de um oitão carregado em cima da estante, do cigarro em cima da mesa, do pó que se podia cheirar em cima da capa dura de um caderno, na viela, ou entregar ali em cima, na peteca, pra ganhar uns cruzeiros. Eu tinha de lutar pra não estar na rua quando fosse o tiroteio. Hoje a luta é outra. São outros fogos cruzados. Manter a mente sã, ficar esperto, atento, e na medida do possível: forte. Sentir a maioria que nos cerca, de alucinações, e não ceder a elas. Deixar de coisas – como cantou Belchior. Cuidar da vida. Por favor, amigos, cuidemos da vida. Eu aprendi na escola que fábulas são sempre sobre animais. Aprendi por lá que nós, humanos, somos também animais. Aprendi na escola, ainda, que as fábulas, nunca, podem ser, sobre humanos. Até 2020, amigos. Tomara.

 

É uma vez. É tantas vezes. Num reino muito, muito próximo. Um artista bem esquisito, que vivia como quem fizesse arte. Sendo arte apenas tentativa, ele tentava, tentava, tentava. Sendo a vida, toda a experiência terrena, apenas errância, ele errava muito. Sempre. Mas a arte era uma rainha sem reinado. A arte em si. Presa em calabouços e masmorras do absurdo. E assim, outras essências travestiam-se de arte, posando para o mundo como a fossem. Só que não.

E assim a arte aparente servia: 1- para entreter os poderosos, distraindo-os do despropósito de suas vidas, aliviando-lhes o peso da alma que nada evolui; 2- para entreter ao povo pobre, distraindo-o para que não percebesse a potência do estar junto, nem a essência de estar vivo; 3- para entreter aos próprios aparentes artistas, aplaudindo-se forçosa e mutuamente de um modo intra-casta, às vezes sem vontade de aplaudir, criticando-se dura e mutuamente de um modo intra-casta, às vezes, sem razões a criticar, distraídos do desserviço humano e cultural a que se prestavam.

Tudo bastante simples: se João ganhasse um prêmio, o prêmio era bom, era sensato; se João perdesse o prêmio, o prêmio era injusto e não prestava. Se Maria fosse mulher, ela faria uma arte que não chegava a ser assim uma arte, mas uma arte feminina; se ela fosse negra, faria uma arte negra; sendo pobre, sua arte seria pobre. Uma Arte assim, global e maiúscula, só mesmo por aqueles que carregassem o selo. Os predestinados. Nepotes. E se João não pertencesse a este seleto grupo, ele faria de tudo para ser aceito. Se não fosse, o atacaria mais que aos prêmios não vencidos. Mas, se de repente mudassem de ideia e o convidassem, entrava de pronto ponderando tudo. Afinal, vejam bem, não era bem assim.

A ideia de Arte habitava palacetes, casas grandes, com jardins de inverno e bibliotecas. Tinha diplomas nas paredes, caras nas revistas, negócios e oportunidades. Naturalmente, havia exceções. Furos de bloqueio, subversões esperançosas. Mas a regra é a regra. A régua que media as listas, dos escolhidos, dos aprovados, dos melhores do ano, dos dignos e dos indignos.

Este artista, o desprotagonista da história, era indigno. Um maldito, bruxo, macumbeiro. Lento até pra falar, o desgraçado. E que devagarinho assim, ia construindo ou desconstruindo coisas. Que quando se via, já não havia nada, ou havia tudo. Ali, bem diante dos olhos, de quem pudesse e quisesse ver. Ele fazia as misturas proibidas, tentava o impossível comprovado. Pobre metido. Foi acolhido pela universidade. E a abandonou.

Depois de anos, porque, dependendo de quem você é, algumas coisas podem levar poucos dias, mas, se você não for, elas levam anos, começou a lançar uns livros. Bem na época em que as pessoas não liam mais. Ele mesmo nunca leu direito. Primeiro porque não tinha livro, biblioteca, chance. Tinha no máximo uns títulos clássicos da Disney rabiscados, que vinham da casa da patroa de sua mãe. Depois porque era lento demais. Autista o bastante pra não conseguir ler sem um silêncio absoluto, quase improvável, em volta de si. Mais tarde, ele não lia porque tinha que correr atrás do rango do dia, das contas do mês. E tava sempre perdendo esses prazos.

E com ele o mundo inteiro não lia, por mil outras razões que iam do ecrã tátil, ao contemporâneo fútil. Mas o mundo ainda fingia ler. Como fingia Nietzsche, Godard e Deleuze, quando convinha. Falar mal de Coelho sem lê-lo. Ou bem de Tokarczuk, sem lê-la. Parecer nunca havia sido tão importante. E por isso, as pessoas faziam o máximo para parecerem. Elas pareciam inclusive se importar. O mundo online era salvo todo dia, soluções brilhantes, saídas geniais, análises perfeitas, óbvias, elementares. Mas no offline nada.

As pessoas alarmavam tanto o fogo na floresta, que quando o incêndio era real, ninguém ouvia. Quando um pedido de ajuda e socorro vinha legítimo, só se percebia tarde. Quando a corda já arruinava o pescoço negro e pobre num apartamento simples. E todo o tempo que não se teve antes, se arranjava depois, pras homenagens.

Nosso artista não vendia seus livros. Eles viravam móveis da casa, mesinha de centro, anteparo de boletos. Mas, não só por isso, ele presenteava seus livros, às vezes. Precisava vendê-los. Mas presenteava. Precisava vendê-los, ou que alguém lhe presenteasse o arroz. O feijão. Mas presenteava seus livros sem a espera de um troco.

O mundo girando, o artista insistindo, e até que pulava alguns muros, às vezes. Dava um respiro. E já mais velho, desgostoso da Terra, da gente, sentindo no peito, nas unhas dos pés e no couro cabeludo, a dificuldade de seguir poeta, resolveu investir um tanto em sua última performance.

Presenteou seus livros com mimos dentro, lá pra página cento e dez, cento e onze, cento e tal. Eram passagens aéreas, reserva em pousadas, vale-presentes, ingressos pra peças e shows, mapas de tesouro, endereços dos botecos mais recônditos com os melhores petiscos de muitas cidades catalogadas, declarações secretas de amor, pétalas secas de um passeio passado, guardanapo guardado de um jantar, vibrações invisíveis de rezas que se reza sem dizer.

E esperou. Esperou e esperou. Até que escreveu uma fábula, para revelar. E aqui seria o fim. Sem ninguém feliz para sempre.

Mas aconteceu que quase ninguém soube da fábula. Afinal, as pessoas não leem. Os poucos amigos que leram, fosse o fim aquele fim, correriam pros livros recebidos, fossem comprados, trocados, ganhados. Os livros apenas folheados bem depressa nunca calma e realmente abertos ou sentidos. E os abririam em busca da surpresa. Saberiam assim que estas palavras sim, foram pra eles. Ficariam constrangidos de dizer qualquer coisa. E, também, de não dizer. Talvez dissessem. Talvez não. Mas, de que importa, quando a arte segue presa. E a esperança do artista, já está morta.

 

Sobre Rafa Carvalho

Rafa Carvalho é poeta apesar de tudo. Em 15 anos de carreira, são 21 países, por quase todos continentes, trabalhando com Arte, Educação e fazendo de tudo, porque tudo é o que a Poesia pode ser. E, para quem acha que Poesia não é profissão, ele já trabalhou de garçom em inúmeros estabelecimentos, na demolição civil escandinava como imigrante parcialmente legal e, atualmente, está desempregado.