Por José Pedro Soares Martins
Final de semana incomum em Campinas, e nem poderia ser diferente. Ruas e avenidas quase desertas. A Treze de Maio, tradicional passarela do comércio, com movimento bem distante do normal no sábado, 21 de março. Parece que caiu a ficha: a cidade, o estado, o Brasil caminha para o confinamento, se quiser deter ou ao menos atrasar o avanço do novo coronavírus. De qualquer modo serão no mínimo dois meses bem complicados pela frente.
Neste panorama nada promissor, no dia em que o governador João Dória anunciou a quarentena a partir da terça-feira, dia 24, algumas cenas obviamente inusitadas. Muitas pessoas usando máscara. A avenida Francisco Glicério, a principal via pública campineira, com circulação quase restrita a ônibus.
Uma situação, entretanto, permanece. Centenas de moradores de rua ao relento, distantes do abrigo de um teto e de medidas mais efetivas de proteção. Como eles estarão durante o pico da doença, previsto para o mês de abril? O mesmo em relação a outros mais desassistidos.
Outra dúvida é em relação ao funcionamento da economia. Os governos, federal e estaduais, tomarão as medidas necessárias para proteger os mais vulneráveis e salvar o que já existe, para que comércio, indústria e serviços voltem a operar com maior rapidez depois que o pesadelo passar? Por enquanto os acenos feitos por Brasília não nos acalmam, pelo contrário.
Claro, o setor da saúde demanda, clama, por muito mais apoio, a começar pelos profissionais do setor que necessitam de proteção física e estímulo para continuar sua heroica missão. O isolamento social com certeza é um dos grandes remédios no momento.
Como na febre amarela – Em Campinas, é inevitável comparar a pandemia do coronavírus, que hoje ameaça o mundo todo, com a epidemia de febre amarela, que devastou a cidade no final do século 19. Um momento de dor e de muitas lições que nos remete ao ano de 1889.
No início de 1889 Campinas era a “Meca” da República, a cidade em que os ideais republicanos estavam mais fortes no país, pela atuação de lideranças como Francisco Glicério e Manuel Ferraz de Campos Salles, que logo seria o segundo presidente republicano (1898-1902). O vigor do republicanismo, espelhado em marcos como o Colégio Culto à Ciência (de 1873), devia-se à força do café, que em Campinas impulsionou e foi impulsionado por ferrovias como a Companhia Paulista (inaugurada em 1872) e Companhia Mogiana (inaugurada em 1875).
Por causa do café, Campinas teve um dos primeiros grandes teatros do Brasil (o São Carlos, construído em 1850 e demolido em 1922) e uma das primeiras redes de telefonia, entre outras primazias. Entretanto, naquele começo de 1889, a cidade ainda não tinha nem de longe um sistema adequado de saneamento. Um projeto de abastecimento para a cidade tinha sido divulgado em 1885 pelo engenheiro Antônio Francisco de Paula Souza, mas somente em janeiro de 1891 começaram os serviços da Companhia Campineira de Águas e Esgotos, criada em 1887. O esgoto corria a céu aberto pelas ruas centrais, no lugar onde hoje está a praça Carlos Gomes funcionava um lixão.
O espaço urbano estava propício à proliferação de epidemias, algumas delas, como de cólera, já tinham sido registradas, mas a pior foi mesmo a da febre amarela, que deixou cerca de 2.500 mortos entre 1889 (o ano mais crítico) e 1897. O total de mortos correspondia a cerca de 20% da população da área urbana – algo como 200 mil pessoas na atualidade, uma catástrofe humanitária. A primeira vítima teria sido Rosa Beck, uma estrangeira provavelmente contagiada em Santos e que morreu em fevereiro de 1889.
A cidade passou a atravessar o que se chamou “estado de sítio sanitário”. Quem podia, fugia. Alguns médicos deixaram Campinas, mas muitos ficaram, incluindo o ituano Costa Aguiar, que acabou morrendo de febre amarela. Muitas ruas da região central têm nomes de personagens que se destacaram no atendimento às vítimas ou morreram no episódio, como a francesa Irmã Serafina.
Em razão da tragédia, Campinas perdeu a liderança estadual. Muitos historiadores acreditam que ela seria fatalmente a capital do Estado. Como não se sabia a origem da doença, transmitida por mosquito, o combate era feito de forma equivocada. As ruas eram cobertas de piche e barricas de alcatrão queimavam nas esquinas, compondo um tétrico panorama, agravado pelas carruagens que subiam e desciam as ruas com os cadáveres.
Foi um terror, que gerou entre outros efeitos a corrida pela limpeza urbana e no início do século 20 Campinas já tinha um dos melhores sistemas de saneamento do Brasil, com a contribuição, entre outros, do sanitarista Saturnino de Brito. Infelizmente a cidade perderia essa liderança do saneamento a partir da explosão populacional das décadas de 1960 e 70.
Em termos econômicos, a cidade se recuperou nas primeiras décadas do século 20, e uma das razões foi a força da ciência, no caso com a contribuição do Instituto Agronômico, fundado em 1887. Pois a ciência será novamente fundamental para o renascimento, de Campinas e do Brasil, pós-coronavírus.
Lição de solidariedade – A tragédia da febre amarela em Campinas entre 1889 e 1897 gerou um impressionante movimento de solidariedade, expresso em dois eixos principais. O primeiro eixo, o da solidariedade local, pelas instituições que já existiam (como Círculo Italiano, atual Casa de Saúde, Santa Casa e outras) ou por aquelas criadas em razão da epidemia, como a Cruz Verde e Sociedade Protetora dos Pobres. Também decorreram do episódio iniciativas como a criação, em 1897, por Maria Umbelina Alves Couto e pelo bispo D.João Batista Correia Nery, de instituição destinada a abrigar os órfãos da febre amarela – foi a origem do atual Liceu Salesiano.
Enfim, a gênese do forte sistema de ação social e solidariedade de Campinas é a epidemia de febre amarela do final do século 19. Agora, no início do século 21, em que uma pandemia de potencial ainda mais destruidor volta a assustar e em que muitas entidades sociais já sofriam os efeitos da crise econômica, é importante relembrar essas origens, para ressaltar a relevância de maior atenção com as instituições que, na ausência do Estado, continuam cumprindo importante papel para a observação dos direitos de cidadania.
Um segundo eixo de solidariedade, fomentado pela tragédia da febre amarela, foi em escala intermunicipal. Muitas cidades se mobilizaram para socorrer as vítimas de Campinas, principalmente no caso da então capital imperial (logo federal), o Rio de Janeiro. Muitos eventos aconteceram nos teatros e outros espaços do Rio de Janeiro, com verbas direcionadas para socorrer os flagelados da febre amarela por aqui. A imprensa da capital teve importante papel nesse sentido – era o tempo em que a imprensa servia as grandes causas públicas, e não as de grupos particulares. A Praça Imprensa Fluminense, no Centro de Convivência Cultural, tem esse nome em homenagem aos jornais do Rio de Janeiro que se mobilizaram pelos campineiros naquela tragédia – fato que passou desapercebido há alguns anos, quando por pouco o lugar não mudou de nome…
Solidariedade, a palavra bem desgastada, precisa ser urgentemente resgatada no pavoroso contexto atual. Algumas ações já deflagradas em Campinas permitem o cultivo da esperança.
Uma delas é a criação de um núcleo de voluntariado na Unicamp para operação durante a pandemia. A iniciativa foi da reitoria e a Diretoria Executiva de Direitos Humanos vai coordenar as ações. Lembrando que o reitor Marcelo Knobel já havia decretado a suspensão de grande parte das atividades do campus, por onde passam milhares de pessoas todos os dias. Permanecem as atividades essenciais, como na pesquisa de ações de combate ao coronavírus, na área da saúde e na solidariedade. Apenas com ela – e aqui os governos devendo agir pensando no bem comum acima de tudo – vamos sair dessa, quem sabe com outros valores e práticas em relação ao que é de fato importante. A vida.