Eduardo Gregori, especial para a Agência Social de Notícias
Lutar contra o preconceito e a exclusão social em um país que ocupa o primeiro lugar no ranking mundial de assassinatos de transexuais e travestis parece mais uma utopia ou uma luta inglória. Não diga isso para Suzy Santos, campineira de 44 anos, reconhecida nacionalmente por seu ativismo em prol da comunidade de travestis e transexuais de Campinas. Há mais de 20 anos mantém um trabalho de campo levando para as ruas da cidade a informação como principal arma nesta batalha cotidiana.
Suzy comemora mais um passo. Recentemente conseguiu retomar um antigo projeto, a Casa Sem Preconceitos, moradia de acolhimento para transexuais e travestis que estejam mais expostas à vulnerabilidade. “Não há em Campinas políticas públicas para a população de travestis e transexuais. Por isso, muitas pessoas encontram-se em situação de rua. Essa falta de assistência me motivou a abrir a casa”, conta a coordenadora e presidente da Casa Sem Preconceitos.
Apesar de comemorar mais esta vitória, o cenário do front que Suzy e a população de transexuais e travestis é demasiado desafiador. Um levantamento da organização não governamental (ONG) Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra) mostra que em 2019 foram contabilizados 124 assassinatos de travestis e transexuais no Brasil. O número até poderia ser encarado com uma certa esperança, pois representa um recuo de 24% em relação a 2018, quando foram registrados 163 crimes. Entretanto, uma luz amarela acendeu no Estado de São Paulo, onde o estudo mostra um crescimento de 66,7% no número de mortes no ano passado em relação a 2018.
Além disso, o preconceito vem ocupando novos espaços, como as redes sociais, estimulando e disseminando ainda mais o ódio contra a população de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Transexuais, Queer e Intersexuais (LGBTQI+) e, especialmente direcionado as travestis e transexuais. Um exemplo recente desse cenário foi a repercussão da reportagem do médico Drauzio Varella para o programa Fantástico exibido pela Rede Globo no dia 1º de março.
Assim que foi descoberto que Suzi Oliveira, uma das transexuais retratadas na reportagem havia sido condenada por estupro e assassinato de uma criança, o Facebook foi varrido por um tsunami de posts e comentários e muitos deles ligavam erroneamente a identidade de gênero da condenada com a motivação do crime.
Do outro lado do front, a Casa Sem Preconceitos, em funcionamento há quase três anos, tem como foco oferecer acolhimento, resgatar a auto-estima e assegurar a cidadania e a inclusão social da população a que se dedica. Para atingir seu objetivo, o espaço oferece de forma gratuita serviços social, de saúde, psicologia e cursos.
União faz a força
A coordenadora reconhece que Campinas conta com o Centro de Referência de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais (CR LGBT), um importante instrumento para esta população, criado pela Prefeitura Municipal de Campinas há quase 20 anos a partir da demanda do Movimento LGBTQI+ organizado na cidade.
Porém, de acordo com Suzy, há uma lacuna no atendimento a travestis e transexuais no CR LGBT, o que reforça a importância do trabalho mantido pela Casa Sem Preconceitos. “O CR LGBT tem dificuldade para inserir a nossa população em seus serviços. Por isso, a Casa Sem Preconceitos recebe pessoas encaminhadas pelo centro e estamos trabalhando em parceria para que a nossa comunidade também possa ser atendida”, explica Suzy.
Validirene Santos, coordenadora do CR LGBT de Campinas, explica que esta lacuna existe principalmente pelo tipo de demanda proveniente da população de travestis e transexuais. “São demandas que muitas vezes não fazem parte da nossa governabilidade. São pessoas que estão nas ruas e que buscam um local para morar. Por isso, esta parceria com a Casa Sem Preconceitos é salutar. Quando há vagas na casa, a Suzy vem ao centro para fazer a triagem daquelas pessoas que realmente necessitam”, explica.
Porém, se não tem como diretriz o acolhimento residencial, o CR LGBT, de acordo com Valdirene, presta para esta população outros serviços, como o atendimento psicológico. E mesmo com uma fila de espera para consultas individuais, o centro vem dinamizado a agenda de seus profissionais que passaram a atender em sessões em grupo para que mais pessoas sejam contempladas e não esperem demasiado tempo. “Conseguimos atender individualmente quando o caso é emergencial. Quando não se trata de uma emergência, a pessoa é encaminhada para a sessão em grupo até que consigamos uma vaga para encaixa-la”, explica Valdirene.
Outras lutas
O trabalho de Suzy vai além da inclusão de travestis e transexuais na sociedade. Se de um lado o CR LGBT é 100% custeado pela Administração Municipal, Suzy conta com a ajuda do que ela define como padrinhos, que contribuem para o pagamento do aluguel e de outras despesas. “Não temos ajuda do governo. Temos um casal de padrinhos que pagaram o aluguel até junho e outro de junho a dezembro”, explica. Suzy conta ainda que a casa foi inteiramente montada com a doação de móveis e utensílios e para manter a alimentação das pessoas acolhidas, promove campanhas recorrentes.
Crimes chocaram Campinas
A violência contra a comunidade de travestis e transexuais de Campinas não exclui nem mesmo ativistas e artistas. Em 2010 a ativista Camile Gerin foi agredida a pauladas por um homem no bairro Botafogo. Camile teria recusado o pedido para um encontro íntimo o que motivou a agressão. A ativista foi internada no Hospital Municipal Mário Gatti mas morreu poucos dias depois em decorrência dos ferimentos. O agressor chegou a ser preso mas foi liberado pela polícia.
Em 2014 Géia Borghi, técnica de enfermagem do pronto-socorro infantil do Hospital Municipal Mário Gatti e uma das mais conhecidas artistas da noite LGBTQI+ de Campinas, foi assassinada com requintes de crueldade. Seu corpo foi encontrado carbonizado ao lado de um veículo em chamas na cidade de Monte Mor. De acordo com a policia, Géia foi alvejada com um tiro no peito e também estava amordaçada e com os braços amarrados. A investigação classificou o crime como transfobia, desmontando o cenário de latrocínio, roubo seguido de morte, montado pelo assassino de Géia. Na época a polícia revelou que a vítima fora surpreendida dentro de sua residência no bairro Boa Vista, em Campinas, onde vivia e cuidava de sua mãe e foi levada para uma estrada no bairro Chácara das Águas em Monte Mor, local em que foi executada. O crime segue sem a identificação do assassino.
Números
Em dois anos a Casa Sem Preconceitos acolheu 20 pessoas.
Atualmente acolhe quatro mulheres e dois homens trans.
Informação e contato
A Casa Sem Preconceitos mantém uma página no Facebook e um email para quem busca por atendimento e também para parceiros e para quem deseja ajudar a instituição:
Email: casasempreconceitos@gmail.com
Facebook: https://www.facebook.com/casa.sempreconceitos.10