Por Regina Márcia M. Tavares
Sentada numa poltrona, começo a pedalar. Nesta nova vida confinada, a solução foi comprar uma bicicletinha “legal”. Deixo ao lado o livro que lia. A boa escritora tem um humor ácido, mas inteligente e adequado ao momento presente. Olho ao meu redor e observo a sala de estar da casa onde moro, há 40 anos. Cada coisa em seu lugar diz-me dos que amei, dos que amo, do que me motivou e continua a me impulsionar em direção ao futuro, ainda incerto. O piano que não toco mais, mas que me acompanha quando canto, assim como uma foto quando criança e com a beca de formatura, trazem-me de volta minha mãe inteligente, culta e determinada. O violão, que dedilhei mal, fala de meu amado pai que se expressava, gostosamente, como Guimarães Rosa escrevia e cantava como Silvio Caldas. Estatuetas de pacha mama, da deusa grega da sabedoria, de amuletos da sorte de vários povos e uma extensa coleção da revista Pesquisa, que se oferece numa grande gamela rústica, revelam meu interesse pela variedade dos povos, o respeito às suas identidades, meu prazer no conhecimento progressivo e a vontade permanente de sensibilizar os mais jovens que a mim se achegam. Nos porta-retratos, em destaque, estão os filhos que gerei e suas descendências, minha realização como garantidora da perpetuação da espécie e aos quais dediquei o melhor que pude encontrar em mim mesma, com incondicional amor.
A mesa e o armarinho mineiros, assim como as esculturas feitas a canivete, falam-me das coisas simples da terra ao lado da obra rara de escultor italiano e outra, sugestiva, oferecida pelo meu único e doce irmão. A genuína cadeira de balanço austríaca do tio poeta, personagem elegante e discreto, amante dos modernistas e as “bergères” de minha mãe remetem-me aos inteligentes filhos do imigrante italiano que se provaram vencedores. Delicadas toalhas de crochê tecidas por uma discreta e gentil sogra e a antiga lanterna de influência árabe sobre a mesinha, onde se encontram livros e revistas tratando de bons vinhos portugueses, trazem-me à memória momentos agradáveis passados com os pais de meu marido. Adentrando a sala de jantar, a bela cristaleira me leva a tantos brindes erguidos à vida, à saúde e aos afetos. O traço firme, a originalidade, o sonho e a composição perfeita na pintura de minha filha Graziela e de Bernardo Caro, ladeando a tapeçaria naïf do lago Titicaca, trazem-me de volta a Arte, esteira na qual descanso o intelecto e sonho futuros.
E assim, enquanto me exercito, uma longa vida se descortina à minha frente. São quase 80 anos de uma caminhada gratificante partilhada com um ser humano especial, meu querido companheiro de mais de meio século, inteligente, sensível, discreto e cúmplice. No hall, numa foto com varões da família, ele guarda a entrada do nosso lar.
O que farei depois da pandemia? Continuarei pedalando, cheia de lembranças?
Não! Quero novamente os barulhentos encontros familiares ao redor da mesa, com risadas, acordos e desacordos; passeios descompromissados, conversas com bons amigos, música de qualidade num teatro de verdade, caminhadas leves, contemplação ao entardecer e muito mais, com gente de verdade.
Boas leituras, formação acadêmica, trajetória profissional, títulos obtidos e vida confortável nos gratificam, sem dúvida. Porém, nada substitui o calor do contato humano, aquele que fica dentro de nós aquecendo a frieza de um mundo caótico e que, hoje, como num filme, se revelou nos objetos enquanto eu pedalava.
Regina Márcia Moura Tavares é antropóloga, consultora da Rede de Cooperação Acadêmica em Patrimônio Cultural Imaterial da América Latina e Caribe, membro da Academia Campinense de Letras, do Instituto Histórico, Geográfico, Genealógico de Campinas e demais entidades culturais nacionais e internacionais.