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Educação financeira avança em comunidades tradicionais com projetos pedagógicos
Reunião sobre educação financeira do GEFAM com lideranças do território indígena Cobra Grande, em Santarém, no Pará (Foto Divulgação)

Educação financeira avança em comunidades tradicionais com projetos pedagógicos

Por José Pedro Soares Martins

Campinas, 30 de dezembro de 2020

Professor de Matemática, Odirley Ferreira da Silva viajou quase uma hora de barco de Abaetetuba até a comunidade ribeirinha de Sapucajuba, no Pará, para apresentar as primeiras noções de educação financeira a um grupo de alunos, de famílias que trabalham na colheita do açaí. Também professor de Matemática, Ademilson da Cruz Barreto discute o tema com estudantes, filhos de pescadores e marisqueiros, em Salinas da Margarida, na Baía de Todos os Santos, Bahia. Por sua vez, a professora Sintia Bausen coordenou o projeto de tradução da cartilha “Financinhas”, produzida e lançada em novembro pelo Sicoob, para as crianças da comunidade pomerana em Santa Maria de Jetibá, no Espírito Santo.

Comunidades tradicionais em várias regiões, compondo o mosaico da diversidade cultural brasileira, estão encontrando na educação financeira um caminho para o desenvolvimento local sustentável e melhoria da qualidade de vida dos moradores. São projetos e propostas, de diferentes formatos, que levam a educação financeira a um Brasil distante dos grandes centros urbanos, promovendo a inclusão em uma economia cada vez mais globalizada, digitalizada e interconectada.

Um elemento em comum nessas iniciativas é que elas partem geralmente de professores que detectam a relevância de apresentar as ferramentas da educação financeira a seus alunos em sala de aula. Considerando a realidade sociocultural específica das regiões onde atuam, os educadores entendem que os estudantes acabarão atuando como multiplicadores dos conceitos de educação financeira junto aos familiares e na comunidade onde atuam, com benefícios mútuos.

Com seus projetos pedagógicos, esses educadores estão contribuindo na prática para a implementação da Estratégia Nacional de Educação Financeira (ENEF), que completou dez anos em 2020. Do mesmo modo, os educadores que atuam nos pontos mais longínquos do país, muitas vezes com enormes dificuldades de acesso, estão colaborando com a aplicação da educação financeira como tema transversal, como pede a nova Base Nacional Comum Curricular (BNCC), homologada pelo Ministério da Educação em dezembro de 2017.

Pesquisa sobre educação financeira nas aldeias do Caruci, Lago da Praia e Garimpo, no Pará, pelo GEFAM (Foto GEFAM)

Pesquisa sobre educação financeira nas aldeias do Caruci, Lago da Praia e Garimpo, no Pará, pelo GEFAM (Foto GEFAM)

A educação financeira levada a ribeirinhos, indígenas e quilombolas

Abaetetuba, no Pará, é um recorte da Amazônia desconhecida para a imensa maioria dos brasileiros e cidadãos globais. O nome significa “ajuntamento de homens verdadeiros”, em língua tupi. Localizado nas margens do Rio Maratauíra, afluente do rio Tocantins, o município compreende um complexo de 72 ilhas, cercadas por rios, furos e igarapés. São 20 ilhas principais, com suas respectivas comunidades e cujo acesso é possível por barco ou lancha. A viagem demora mais ou menos, dependendo do fluxo da maré. Também depende do nível das águas, que muda de acordo com a estação do ano, se as escolas públicas situadas nessas ilhas estarão com instalações secas ou tomadas pelas enchentes.

Em 2019, o professor de Matemática Odirley Ferreira da Silva permaneceu por dois meses em uma dessas comunidades, a de Sapucajuba, onde deu aulas na Escola Municipal São Raimundo Nonato. Odirley é professor do Sistema Modular de Ensino (SOME), uma política pública do setor educacional estadual paraense que permite aos alunos de comunidades ribeirinhas poderem estudar nas proximidades de seus locais de moradia, não necessitando os longos deslocamentos tradicionais na região.

Como os demais docentes do SOME, Odirley passa dois meses por ano em cada uma das 21 comunidades abrangidas pelo programa em Abaetetuba, e foi o que aconteceu em Sapucajuba, entre maio e junho do ano passado. “Neste tempo que permanecemos nas comunidades, passamos a observar o modo de vida de cada uma delas, as suas peculiaridades e semelhanças”, diz o professor, que já deu aulas em 17 das 21 citadas comunidades.

Um dos traços comuns que ele identificou foi a mudança de atitudes dos alunos durante a safra e entressafra de açaí, a atividade dominante e cada vez mais efervescente na região. “Passei a perceber que durante a safra, entre junho e outubro, aproximadamente, existe uma grande movimentação nas comunidades e acúmulo de bens materiais. Há uma grande circulação de dinheiro. Celulares caros são alguns dos objetos mais cobiçados. Mas tudo muda na entressafra e fica claro que grande parte das famílias não faz uma poupança, não há um controle e planejamento sobre recursos que são sazonais”, comenta Odirley.

Ilhas e comunidades em Abaetetuba (Foto Reprodução/Paróquia das Ilhas de Abaetetuba)

Ilhas e comunidades em Abaetetuba (Foto Reprodução/Paróquia das Ilhas de Abaetetuba)

Foi então que considerou a relevância de levar noções de educação financeira para os alunos das comunidades onde leciona. O primeiro passo foi realizar uma pesquisa entre 20 alunos da Escola Raimundo Nonato, de idades variando entre 17 e 21 anos, e a constatação foi a de ausência de informações anteriores sobre o tema. “Apenas um aluno mostrou ter ouvido falar do assunto em sua Igreja, embora não especificando que se tratava de educação financeira”, conta o professor.

Outras perguntas do questionário preparado por Odirley se relacionavam à  renda pessoal nos períodos de safra e entressafra de açaí e as respostas confirmaram a percepção do docente, de grande variação conforme a época do ano. Do mesmo modo, o professor teve ratificada a sua intuição, quando verificou as respostas à pergunta sobre se os alunos economizavam o dinheiro ganho com a comercialização das rasas, as cestas artesanais confeccionadas com talos de guarumã ou outras espécies amazônicas, utilizadas para armazenar os frutos do açaí. “Somente dois dos 20 alunos responderam que guardam ou investem parte do que ganham com o açaí”, diz Odirley.

Com base nos dados apurados, o professor estabeleceu um programa de informações sobre educação financeira, que aplicou em oficinas de introdução à temática junto aos alunos da comunidade de Sapucajuba. “Falamos sobre os riscos de contrair dívidas, sobre a necessidade de poupança para momentos críticos como o de doenças não esperadas e sobre a importância de visão crítica diante do excesso de propagandas que estimulam a compra às vezes sem necessidade. Mas tudo de uma forma muito tranquila, deixando claro que não queríamos interferir nas decisões tomadas pelas famílias”, esclarece o docente.

Escola Nossa Senhora de Fátima, em uma das ilhas de Abaetetuba (Foto Acervo Pessoal Odirley Ferreira da Silva)

Escola Nossa Senhora de Fátima, em uma das ilhas de Abaetetuba (Foto Acervo Pessoal Odirley Ferreira da Silva)

O professor Odirley pretendia intensificar o trabalho de apresentar a educação financeira a outras comunidades onde atua, através do SOME, ao longo de 2020, o que naturalmente não foi possível em função da pandemia. Mas os planos permanecem para 2021, desta vez com o suporte da experiência adquirida pelo Grupo de Educação Financeira da Amazônia (GEFAM), um projeto de extensão da Universidade Federal do Pará (UFPA). “Conheci o trabalho do GEFAM através do Grupo de Estudos e Pesquisas das Práticas  Etnomatemáticas da Amazônia (GETNOMA), do qual sou vice-coordenador, e buscaremos disseminar a cultura da educação financeira nas comunidades ribeirinhas de Abaetetuba”, revela Odirley, que é mestre em matemática pela UFPA. “Entendemos que a educação financeira pode auxiliar como uma das ferramentas para que o açaí seja efetivamente um caminho para o desenvolvimento sustentável das comunidades, gerando renda de forma igualitária e sem impactos na floresta”, ele completa.

Conhecimento acumulado, de fato, não falta para o GEFAM, criado em 2014 como um projeto de extensão do curso de Economia da Universidade Federal do Pará, pelo professor Alexandre Vinicius Campos Damasceno e outros dois docentes. “Já realizávamos trabalhos pontuais de educação financeira mas a criação do grupo de pesquisas exigiu uma ampliação e o crescimento foi muito rápido, em razão de uma demanda cada vez maior, pela própria situação econômica do país”, conta o professor Alexandre.

Ele nota que uma das peculiaridades na região é a manutenção do hábito de pagamento de contas por meio de carnês. “O cartão de crédito ainda é pouco utilizado, mas tende a ser com o uso cada vez maior de aplicativos pelos bancos. A mudança tecnológica leva à necessidade de se saber trabalhar dessa forma”, diz o professor Alexandre, apontando uma das razões pelo aumento da demanda pela educação financeira na Amazônia.

Outro motivo é a própria situação econômica do país, com alto número de desempregados. Uma das respostas do GEFAM foi a criação do Núcleo de Atendimento ao Endividado de Risco. Para o Banco Central do Brasil (BCB), endividado de risco é quem se enquadra em ao menos dois de quatro indicadores de sua situação financeira: inadimplência, exposição simultânea a três modalidades de crédito sem garantia, comprometimento da renda acima de 50% e renda disponível após o pagamento das dívidas abaixo da linha da pobreza (em torno de R$440). Um levantamento do BCB, divulgado em junho de 2020, mostrou que dois estados amazônicos, o Amazonas e o Amapá, apresentaram o maior percentual de endividados de risco no país: 7,7% e 7,5%, respectivamente. Também estão nos estados do Amapá, Amazonas e Roraima os maiores percentuais de tomadores de crédito inadimplentes (mais de 15% em dezembro de 2019), segundo a publicação “Endividamento de Risco no Brasil”, da Série Cidadania Financeira, do BCB.

Como um dos frutos de seu trabalho, nota o professor Alexandre Damasceno, o GEFAM tem ampliado parcerias. Com a Defensoria Pública do Estado do Pará, por exemplo, foi criado o Programa de Apoio ao Consumidor Superendividado (Pacs), que oferece orientação, análise jurídica e renegociação de dívidas com credores. Também foi estabelecida parceria com o Procon e está em curso a estruturação do Comitê Estadual de Educação Financeira, em conjunto pelo GEFAM, BCB, Ministério Público do Estado, Defensoria Pública do Estado e Núcleo Permanente de Métodos Consensuais de Solução de Conflitos do Tribunal de Justiça (Nupemec).

Um dos eixos principais da atuação do GEFAM é o trabalho com comunidades ribeirinhas, quilombolas e de indígenas no território paraense. Na comunidade quilombola Trindade, palestras em educação financeira foram realizadas com o apoio da organização não-governamental Amor em Foco. Em Barcarena, oficinas foram desenvolvidas com as comunidades ribeirinhas.

Do mesmo modo, várias ações já foram feitas com comunidades indígenas, como nas Aldeias do Caruci (etnia Arapium), Lago da Praia (etnia Jaraqui) e Garimpo (etnia Tapajó), todas localizadas no Território Indígena Cobra Grande, na bacia do rio Tapajós. “Com os indígenas nós aprendemos muito mais do que ensinamos. São valores diferentes dos nossos, o sentido da doação é muito presente, então a educação financeira tem que ser diferenciada, adaptada a essa realidade, principalmente com diversas etnias envolvidas”, comenta o professor Alexandre Damasceno.

Um desafio especial, ele observa, foi no trabalho com a etnia Warao, de indígenas venezuelanos que se refugiaram em vários estados da Amazônia e outras regiões do Brasil. São indígenas com hábitos nômades e no início houve dificuldade de comunicação com o grupo que se estabeleceu em Belém. “Precisamos de tradutor, que primeiro traduzia da linguagem indígena para o espanhol e depois para o português”, lembra o coordenador do GEFAM.

“Os valores culturais são muito diferentes. Realizamos atividades no Bosque Rodrigues Alves, para que eles se sentissem mais à vontade”, explica. As estimativas são de que desde 2014 mais de 4 mil Warao entraram no Brasil e cerca de 1.000 deles foram para o Pará, metade se estabelecendo em Belém.

No final de 2019 o GEFAM manteve contato com a Comissão de Valores Mobiliários (CVM), que planeja levar a educação financeira para várias comunidades indígenas da Amazônia, com o estímulo da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE). A OCDE incentiva a disseminação da educação financeira junto a grupos vulneráveis e a CVM tem intensificado ações nessa linha, tendo realizado um projeto na comunidade da Pavuna, no Rio de Janeiro, em conjunto com o Banco Mundial. A parceria entre GEFAM e CVM será retomada no pós-pandemia.

“Já são sete anos de trabalho de educação financeira com comunidades tradicionais e é sempre um desafio”, afirma o professor Alexandre Damasceno. “É preciso pensar a educação financeira para a diversidade, que tenha uma proposta de inclusão e também de contribuição com o desenvolvimento sustentável das comunidades, não apenas com o consumo ou crédito”, destaca o coordenador do GEFAM, que já soma mais de 30 integrantes, entre professores e alunos da UFPA e voluntários de várias instituições. “O GEFAM faz um trabalho de formiguinha, que aliás é o símbolo do Grupo de Estudos”, conclui.

O professor Ademilson mariscando (Foto Acervo Pessoal Ademilson da Cruz Barreto)

O professor Ademilson mariscando (Foto Acervo Pessoal Ademilson da Cruz Barreto)

A educação financeira e os pescadores da Bahia

Nos momentos em que não está dando aula ou pesquisando, o professor de Matemática Ademilson da Cruz Barreto se dedica à mariscagem, que aprendeu com a família e pratica desde criança, assim como a maioria dos moradores de Salinas da Margarida, um pedaço paradisíaco da Baía de Todos os Santos, na Bahia, e que tem o nome derivado da exploração de sal desde o início do século 20. Grande parte da atividade é hoje exercida por mulheres e as conchas de mariscos estão por todo lado. São usadas até como agregado na produção do concreto empregado em construções.

Imerso nessa realidade, o professor formado pela Universidade Estadual da Bahia (UNEB) percebeu a importância da educação financeira para as famílias de pescadores do município, quando fazia a pesquisa para seu trabalho de conclusão de curso. “Percebi que a educação financeira não estava muito presente na vida e na formação dos alunos das escolas de ensino fundamental e comecei a trabalhar o tema com eles e também com alunos do ensino médio”, explica.

“Vi como os alunos tinham dificuldade em mensurar quanto eles e suas  famílias ganhavam por mês, considerando tudo o que investiam nas embarcações, em alimentação. Não havia controle de despesas e às vezes gastavam mais do que ganhavam, sobrava pouco no final do mês”, relata Ademilson. “Se ocorre algum dano no motor ou na rede, os pescadores podem ficar dias sem trabalhar e, sem reservas, passam dificuldades”, completa.

Ele lembra que duas vezes ao ano os pescadores obrigatoriamente ficam sem trabalhar. É a época do defeso, quando a pesca é proibida para permitir a reprodução de peixes, camarões e mariscos. O período dura aproximadamente de 30 a 45 dias no primeiro semestre e o mesmo tempo no segundo. “É um período crítico, em que os pescadores recebem o seguro-defeso do governo. Se não conseguiram ter alguma reserva, podem ter problemas”, assinala Ademilson.

Outros fatores conjunturais podem afetar a pesca artesanal, com enorme prejuízo para as famílias e comunidade em geral, continua. Ele cita o caso da maré vermelha que atingiu a Baía de Todos os Santos em 2007, com grande mortandade de peixes em razão da alta concentração das microalgas Gymnodinium sanguineum no mar.

Mais recentemente, a pesca e a mariscagem foram duramente afetadas, em quase todo litoral nordestino, pelo misterioso derramamento de óleo nas águas marinhas. Levantamento do Ibama apurou que 130 municípios em 11 estados foram especialmente atingidos e as marcas continuam mais de um ano depois do episódio, ocorrido a partir de agosto de 2019. Estima-se que mais de 500 mil pescadores tiveram suas atividades impactadas pelo crime ambiental, ainda sem solução.

“São fatores que fogem do controle do pescador e se não há organização de receita e despesa a situação fica difícil para a maioria. A crise da Covid-19 apenas agravou o cenário”, diz o professor Ademilson, que passou então a difundir os conceitos da educação financeira a seus alunos, do ensino fundamental e médio, com a perspectiva de que atuem como multiplicadores junto a suas famílias e comunidades.

Em 2019, como parte do processo de formação, ele levou uma turma de alunos para uma visita à histórica Igreja e Convento de São Francisco, uma das maravilhas do barroco no centro de Salvador, onde existe uma coleção de moedas e notas antigas. “É importante conhecer a história do dinheiro, os alunos se animaram”, conta Ademilson, que também intensificou contatos com organizações de pescadores para propagar a educação financeira.

O professor Ademilson e seus alunos na visita à Igreja e Convento de São Francisco (Foto Acervo Pessoal Ademilson da Cruz Barreto)

O professor Ademilson e seus alunos na visita à Igreja e Convento de São Francisco (Foto Acervo Pessoal Ademilson da Cruz Barreto)

Em 2020, o trabalho não foi interrompido durante a pandemia. Os contatos com os alunos foram mantidos com aulas remotas pela internet e em grupos de whatsapp. “Devo tudo ao mar, a minha história e de minha família com a pesca, quero retribuir o que ganhei com a difusão de conhecimento e a educação financeira é o caminho. É preciso que a atividade da pesca, da mariscagem seja mais sustentável”, resume Ademilson, que se diz animado com a inclusão da educação financeira na BNCC, viabilizando a difusão do tema em todo sistema escolar brasileiro.

Lançamento do primeiro número da Coleção Financinhas em pomerano no auditório do Sicoob em Santa Maria de Jetibá (Foto Divulgação)

Lançamento do primeiro número da Coleção Financinhas em pomerano no auditório do Sicoob em Santa Maria de Jetibá (Foto Divulgação)

Educação financeira para as crianças de língua pomerana

Desde o ano de 1859 o Espírito Santo passou a receber milhares de imigrantes nascidos em Hinterpommern, um dos dois estados da extinta Pomerânia, província prussiana situada entre as atuais Alemanha e Polônia. O território pomerano foi dividido entre esses dois países após a II Guerra Mundial. As estimativas são de que 63% dos mais de 4 mil imigrantes germânicos que chegaram ao Espírito Santo nas últimas décadas do século 19 eram pomeranos.

Grande parte deles se fixou na região centro-serrana, em várias comunidades, vivendo basicamente da agricultura familiar e em uma situação de isolamento que perdurou até o início da década de 1980, o que contribuiu para a manutenção do pomerano como a língua dominante entre os moradores, apesar das proibições de associação e uso de idiomas germânicos durante os governos de Getúlio Vargas (1930 a 1945 e 1951 a 1954). Com a chegada da eletricidade e outros recursos de infraestrutura o isolamento foi sendo atenuado e cada vez mais o português tornou-se falado entre as famílias pomeranas.

Capa do primeiro núcleo da Coleção Financinhas em pomerano (Foto Reprodução)

Capa do primeiro número da Coleção Financinhas em pomerano (Foto Reprodução)

Em um contexto de globalização e padronização cultural, a comunidade sentiu a urgência de valorizar e fortalecer as suas origens identitárias e em 2005 foi criado o Programa de Educação Escolar Pomerana (Proepo). Dois anos depois o pomerano foi cooficializado como idioma em cinco municípios capixabas, incluindo Santa Maria do Jetibá, considerado o município mais pomerano do Brasil. Os outros municípios são Domingos Martins, Vila Pavão, Pancas e Laranja da Terra.

“Houve muita resistência, apesar das proibições, do preconceito. O pomerano continuou falado nos cultos das igrejas, nas casas”, comenta a professora Sintia Bausen, coordenadora do Proepo em Santa Maria do Jetibá. Ela explica que têm sido feitos muitos esforços pela salvaguarda do idioma pomerano, sobretudo entre as crianças. Outra iniciativa fundamental, conta a educadora, é o trabalho de construção de uma grafia em pomerano. Uma proposta importante nessa linha foi elaborada pelo etnolinguista Ismael Tressmann, autor de um Dicionário Enciclopédico pomerano/portuguê, lançado em 2006 em Santa Maria de Jetibá, em edição da Gráfica e Encadernadora Sodré Ltda.

Como parte do empenho pelo fortalecimento do idioma, uma parceria da Secretaria Municipal de Educação/Proepo com o Sicoob Centro-Serrano viabilizou a produção de livros da Coleção Financinhas, traduzidos em pomerano. O lançamento do primeiro número aconteceu no final de novembro, no auditório do Sicoob e Santa Maria de Jetibá, como parte das atividades da 7ª Semana Nacional de Educação Financeira.

A professora Sintia Bausen: esforço pela salvaguarda do idioma pomerano (Foto Acervo Pessoal Sintia Bausen)

A professora Sintia Bausen: esforço pela salvaguarda do idioma pomerano (Foto Acervo Pessoal Sintia Bausen)

A professora Sintia Bausen nota que a coleção, idealizada pelo Instituto Sicoob, tem enorme relevância considerando a questão linguística e também a realidade econômica dos moradores de Santa Maria de Jetibá, que atuam basicamente na agricultura familiar e na produção de ovos. “É muito importante o conhecimento sobre educação financeira, principalmente para quem trabalha com agricultura familiar, e melhor ainda quando começa com as crianças”, ela comenta, acrescentando que outras histórias da Coleção Financinhas em pomerano estão em produção.

“A coleção vai contribuir muito para a vitalidade da língua pomerana, nas atuais e futuras gerações”, assinala a professora Sintia, que já produziu vários trabalhos acadêmicos sobre o pomerano. “A língua é viva, não é estática. A Coleção Financinhas em pomerano mostra como é possível salvaguardar um idioma, contribuindo com a formação das crianças e adolescentes”, conclui a educadora, evidenciando uma iniciativa que mostra como a educação financeira tem seguido vários roteiros no Brasil, em conformidade com a riqueza da pluralidade cultural existente no país.

Teatro sobre educação financeira para alunos de escola pública do Pará, promovido pelo GEFAM (Foto GEFAM)

Teatro sobre educação financeira para alunos de escola pública do Pará, promovido pelo GEFAM (Foto GEFAM)

ENEF nas escolas e BNCC

A disseminação da temática no sistema escolar, como tem acontecido nas comunidades tradicionais da Amazônia, do Nordeste ou do Espírito Santo, é um dos principais propósitos da Estratégia Nacional de Educação Financeira (ENEF), instituída pelo Decreto nº 7.397, de 22 de dezembro de 2010. Ela é resultado de um trabalho de 18 meses, de grupo criado no âmbito do Comitê de Regulação e Fiscalização dos Mercados Financeiro, de Capitais, de Seguro, de Previdência e Capitalização (Coremec). O Coremec é composto por instituições como Banco Central do Brasil (BCB), a Comissão de Valores Mobiliários (CVM), a Superintendência Nacional de Previdência Complementar (PREVIC) e a Superintendência de Seguros Privados (SUSEP).

Criada com o propósito de disseminar a cultura da educação financeira, a ENEF contemplou um Plano Diretor com programas e ações formulados para a sua execução. O Plano Diretor incluiu propostas de ação para dois grupos principais, os alunos do sistema escolar brasileiro e os adultos.

No caso das propostas para os alunos do sistema escolar, na elaboração da ENEF houve consultas ao Centro Federal de Educação Tecnológica do Rio de Janeiro (Cefet/RJ), ao Colégio D.Pedro II e a organizações como Conselho Nacional de Secretários de Educação (Consed) e União Nacional dos Dirigentes Municipais de Educação (Undime), além dos integrantes do Coremec.

Um passo importante para a implementação da ENEF foi a criação, em 2012, da Associação de Educação Financeira do Brasil (AEF-Brasil), resultante da parceria entre Associação Brasileira das Entidades dos Mercados Financeiros e de Capitais (ANBIMA), B3 (Brasil, Bolsa, Balcão), Confederação Nacional das Empresas de Seguros Gerais, Previdência Privada e Vida, Saúde Suplementar e Capitalização (CNSeg) e Federação Brasileira de Bancos (FEBRABAN).

Entre 2013 a 2015, a AEF-Brasil desenvolveu programas de educação financeira para os dois públicos-alvo do Plano Diretor da ENEF, os adultos e as crianças e os adolescentes, criando tecnologias sociais e material didático de apoio às iniciativas, como os livros didáticos para os professores e alunos do Ensino Fundamental e do Ensino Médio.

Capa do livro que faz um balanço dos dez anos da ENEF

Capa do livro que faz um balanço dos dez anos da ENEF

Em 2018, o professor tornou-se “o centro das ações da AEF-Brasil, com a criação do Ecossistema de Educação Financeira e o desenvolvimento do portfólio de materiais para serem utilizados em sala de aula, que incluiu: nova plataforma Vida e Dinheiro, game Tá O$$O, curso EAD Finanças sem Segredos, websérie R$100 Neuras e cinco documentários nacionais Sua Escola, Nossa Escola”.

A informação está no livro “Estratégia Nacional de Educação Financeira (ENEF): Em busca de um Brasil melhor”, lançado no início de dezembro pela AEF-Brasil. Sob a coordenação de Claudia Forte, superintendente da AEF-Brasil, o livro faz um balanço dos dez anos da ENEF, com destaque para a avaliação do programa executado junto às escolas públicas.

“A educação financeira, com base no Documento de Orientações para Educação Financeira nas Escolas (Plano Diretor da ENEF, 2010), é importante, pois desenvolve nas crianças e jovens as competências e habilidades necessárias para lidar com as decisões financeiras que tomarão ao longo da vida”, afirma Claudia Forte.

Ela observa que a educação financeira “não se resume a um conjunto de saberes puramente matemáticos ou de instrumentos de cálculo. Está amparada em áreas complexas como a Psicologia Econômica e a Economia Comportamental, e por isso acessar educação financeira é provocar mudanças de comportamento, por meio da leitura de realidade, do planejamento de vida, da prevenção e da realização individual e coletiva. Assim, como em todos os processos educacionais, quão mais cedo iniciamos com as crianças, maiores as chances de termos um adulto mais consciente e autônomo com relação ao processo de tomada de decisões no âmbito financeiro”.

Entre 2010 e 2011, foi executado um projeto piloto, envolvendo 891 escolas públicas de cinco estados brasileiros (TO, RJ, MG, SP e CE) e o Distrito Federal, com a participação de cerca de 27 mil estudantes e 1.800 professores. “Seu resultado, obtido com base em um método de avaliação rigorosa do Banco Mundial, apontou maior capacidade do jovem de poupar, fazer lista de despesas mensais, negociar preços e meios de pagamento ao realizar compras, além de construir planos pessoais para alcançar seus objetivos”, comenta Claudia Forte.

A superintendente da AEF-Brasil assinala que, nesse projeto piloto foram envolvidos os pais dos alunos, resultando na maior “participação de todos no diálogo sobre questões financeiras, como orçamento doméstico familiar, por exemplo”. Após o projeto piloto, foi implementado um primeiro ciclo do Programa de Educação Financeira nas Escolas para Ensino Médio, atingindo quase 3 mil escolas, capacitando mais de 10 mil professores e nos 26 estados da União e no Distrito Federal.

No segundo ciclo, entre 2016 e 2019, foram consolidados quatro polos estaduais em parceria com as secretarias de Educação e universidades federais nos estados de Paraíba, Minas Gerais, Rio Grande do Sul e Tocantins. Os resultados da atuação desses polos, que levaram a Educação Financeira e outros milhares de alunos, professores e escolas, também são avaliados no livro recém-lançado pela AEF-Brasil.

No caso das escolas de ensino fundamental, foi desenvolvido um programa contemplando a produção de livros didáticos considerando a faixa etária dos alunos e os objetivos: Formar para a cidadania; Ensinar a consumir e a poupar de modo ético, consciente e responsável; Oferecer conceitos e ferramentas para a tomada de decisão autônoma baseada em mudança de atitude; Ensinar a curto, médio e longo prazos; Desenvolver a cultura da prevenção.

Um projeto piloto foi aplicado em 2015, nos municípios de Joinville (SC) e Manaus (AM), com a participação de 400 professores, 14.886 alunos de 651 turmas de 201 escolas públicas, sendo 72 instituições de Joinville e 129 de Manaus.

Após os ajustes realizados em função da análise de impacto do projeto piloto, a AEF-Brasil passou a realizar desde 2016 o Programa de Educação Financeira nas Escolas para Ensino Fundamental, que atingiu cerca de 1.340 escolas, capacitando cerca de 8.000 professores e multiplicadores em 12 estados e impactando mais de 207.510 alunos.

A AEF-Brasil também colaborou no desenvolvimento da proposta de inclusão da educação financeira na BNCC, homologada pelo MEC em dezembro de 2017. Com a BNCC, a educação financeira passará a ser difundida junto a todos alunos do sistema escolar brasileiro, com os respectivos conteúdos e habilidades passando a ser trabalhados em matemática, nas turmas de 5º, 6º, 7º e 9º anos do Ensino Fundamental, e também com a possibilidade de trabalho interdisciplinar, de forma transversal, com as demais áreas de conhecimento.

A implementação da BNCC começaria de fato em 2020, o que foi prejudicado em função da pandemia de Covid-19. Entretanto, na prática a educação financeira já tem sido levada a escolas, nas mais diversas regiões e distantes localidades do país, em razão do empenho de educadores como Odirley Ferreira da Silva, do Pará; Ademilson da Cruz Barreto, da Bahia; e Sintia Bausen, do Espírito Santo.

Mudanças na ENEF no ano da pandemia

Mudanças de rumo na aplicação da Estratégia Nacional de Educação Financeira têm sido introduzidas pelo governo do presidente Jair Bolsonaro. As modificações foram sinalizadas com a edição do Decreto nº 9.759, de abril de 2019, que estabeleceu novas diretrizes de funcionamento e limitou a existência de órgãos colegiados na administração pública federal.

Entre outros colegiados, foi extinto o Comitê Nacional de Educação Financeira (CONEF), órgão criado junto com a ENEF, pelo Decreto nº 7.397, de 2010, e que incluía representantes de várias organizações da sociedade civil.

Passo seguinte, em 9 de junho de 2020, em plena pandemia, o governo federal editou o Decreto nº 10.393, estabelecendo a nova Estratégia Nacional de Educação Financeira e a criação do Fórum Brasileiro de Educação Financeira (FBEF), em substituição ao CONEF e com a participação de representantes do Banco Central do Brasil (BCB), Comissão de Valores Mobiliários (CVM), Superintendência Nacional de Previdência Complementar (PREVIC), Superintendência de Seguros Privados (SUSEP), Secretaria Nacional do Consumidor (Senacon), Secretaria do Tesouro Nacional (STN), Secretaria de Previdência (SPREV) e Ministério da Educação (MEC).

“Na nova concepção da ENEF, com a menção expressa dos ramos setoriais que compõem a estratégia nacional, ganham força as temáticas especializadas, como seguro, previdência, que formam a disciplina Educação Financeira de um modo geral”, avalia Adriana Toledo, Chefe do Departamento de Administração e Finanças da Susep e Membro titular do Fórum Brasileiro de Educação Financeira (FBEF), no livro “Estratégia Nacional de Educação Financeira (ENEF): Em busca de um Brasil melhor”.

 

 

 

 

 

 

 

 

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