Por José Pedro Soares Martins
Com 100% de atendimento de água e esgoto, e 100% de esgoto tratado por água consumida, Piracicaba aparece em sexto lugar no ranking nacional de saneamento de 2021, do Instituto Trata Brasil. A cidade apenas não está em posição melhor, pelos critérios da organização que monitora o saneamento no país, em função de perdas na rede de água. No conjunto da bacia do rio Piracicaba, composta por 50 municípios paulistas e cinco mineiros, mais de 60% do esgoto coletado são tratados, com mais de 90% da população atendida por rede de esgotos. No Brasil, menos da metade da população tem acesso a rede de esgoto e percentual muito menor recebe tratamento.
Mas a situação privilegiada de Piracicaba e toda a bacia hidrográfica do mesmo nome em saneamento, sobretudo em termos dos avanços no tratamento de esgotos urbanos, é uma realidade recente. No início da década de 1980, menos de 5% dos esgotos urbanos eram tratados. Agravada na época por descargas de esgotos industriais e da atividade sucroalcooleira, a poluição gerava constantes mortandades de peixes e imensa revolta na população.
A mudança superlativa no panorama do saneamento em Piracicaba e região resulta de um movimento da sociedade civil deflagrado em meados da década de 1980 e que teve um nome central, no sentido de buscar ações concretas para acabar de vez com a degradação das águas do principal patrimônio natural e cultural da cidade. O nome é o do engenheiro agrônomo Nelson de Souza Rodrigues, que no próximo dia 30 de maio vai comemorar os seus 100 anos de vida na casa da família, localizada não muito longe do rio que tanto defendeu.
O centenário de Nelson de Souza Rodrigues será marcado por vários tributos por sua enorme contribuição para as políticas públicas em recursos hídricos, em São Paulo e no Brasil, mas também é o momento para o resgate de uma trajetória marcada por muitas outras realizações. Rodrigues é um artista nato e seus 100 anos também serão celebrados pelas suas atividades no campo da criação artística. Nele, cultura e natureza não estão divorciadas. Pelo contrário, estão sempre de mãos dadas.
Das margens do Tamanduateí aos estúdios da Vera Cruz
Nelson de Souza Rodrigues nasceu em São Paulo na residência de seus avós maternos, às 0:10’ do dia 30 de maio de 1921, na Rua Deocleciana, no bairro do Bom Retiro, margem direita do rio Tamanduateí. No dia 1° de junho seu pai Francisco D’Ascenção Rodrigues fez seu registro de nascimento no 5° Cartório de Registro Civil da Santa Efigênia.
“O rio Tamanduateí sempre esteve presente em seus relatos”, conta uma das filhas, Jocelyne Martins Rodrigues. “A poucos metros da casa dos seus avós, suas primeiras pescarias, as lavadeiras pelas manhãs vindo com suas trouxas, o mato alto das margens coberto por suas roupas brancas, as carroças vindas do mercado, para descanso e saciedade da sede dos cavalos”, ela completa.
Nesse contato precoce com as águas, certamente estava o embrião do senso de observação atenta, que o acompanharia ao longo da vida, em todos os seus campos de atuação. “Seus comentários sempre estamparam o inconformismo por sua cidade natal, estabelecida no Planalto Paulista com expressiva rede fluvial, com o potencial hídrico de três volumosos rios, o Tietê, o Pinheiros e o Tamanduateí, além de todos afluentes, córregos, riachos e nascentes, ter chegado no sério enfrentamento de falta d’água cada vez mais complicado”, resume a filha.
Uma atividade pouco conhecida do público em geral, na vida de Nelson de Souza Rodrigues, foi determinante para aguçar o olhar penetrante, profundo, para a realidade social, cultural e ambiental. Ele é um exímio fotógrafo e, por seu talento, aos 29 anos de idade foi contratado para trabalhar em um dos projetos culturais mais importantes desenvolvidos no Brasil no século 20, a Companhia Cinematográfica Vera Cruz.
Primeiro e um dos mais consistentes projetos de produção cinematográfica brasileira em larga escala, a Vera Cruz foi fruto da parceria entre o produtor e diretor italiano Franco Zampari (1898-1966) e o industrial ítalo-brasileiro Francisco “Ciccillo” Matarazzo Sobrinho (1898-1977), que o havia convidado a vir ao Brasil em 1922, para trabalhar nas empresas da família. Engenheiro de profissão, Zampari havia fundado em 1948 o Teatro Brasileiro de Comédia (TBC) e no ano seguinte iniciou com Matarazzo a aventura da Companhia Vera Cruz, que chegou a ter estúdios de 100 mil metros quadrados em São Bernardo do Campo. Antes de sediar um polo de automóveis, a cidade do ABC recebeu portanto um ambicioso complexo de produção cinematográfica, que durou poucos anos, até 1954, mas foi fundamental para sedimentar o sonho de uma filmografia legitimamente brasileira.
No dia 15 de julho de 1950, véspera portanto da fatídica final da Copa do Mundo da FIFA no Maracanã, onde o Brasil perderia por 2 a 1 para o Uruguai, Nelson de Souza Rodrigues era admitido na Companhia Vera Cruz, como mostra a sua carteira profissional. Foi contratado como “chefe fotógrafo”, com um salário de 5 mil cruzeiros mensais.
O contrato durou pouco mais de um ano, terminando a 15 de agosto de 1951, mas foi tempo suficiente para uma intensa experiência profissional. “A época pós-guerra até aos meados da década de 1950 foi um período determinante para o cinema brasileiro: ainda tentando remediar o estigma que ficou da idade de ouro das chanchadas—filmes de baixo orçamento, produzidos em estúdios, e com enredos pouco convincentes—a ambiciosa meta da Vera Cruz era modernizar a indústria cinematográfica brasileira a fim de aperfeiçoar a qualidade técnica da produção tendo em vista um público internacional”, comenta Kathryn Bishop Sanchez, professora da Universidade de Wisconsin, Madison, nos Estados Unidos, e uma das principais referências acadêmicas sobre o cinema brasileiro no plano internacional.
A especialista lembra que Rodrigues chegou à Vera Cruz a convite do cineasta Alberto Cavalcanti. “A equipe à qual Nelson se associou era fundamentalmente cosmopolita, com técnicos e artistas da Inglaterra, Dinamarca, Alemanha, França e Europa Central, todos convidados por Cavalcanti que naquela época era o único diretor brasileiro com uma significativa projeção internacional”, nota Kathryn Sanchez.
Ela lamenta que “a experiência Vera Cruz—a última tentativa brasileira e até sul-americana de criar uma indústria cinematográfica à la Hollywood—foi um fracasso e a companhia declarou a falência após poucos anos de existência em 1954″, salientando, porém, que “no começo dos anos 50, a equipe à qual Nelson aderiu tinha como meta principal o desenvolvimento de um cinema brasileiro revitalizado”.
Sobre Nelson de Souza Rodrigues, Sanchez, que é editora-executiva da Luso-Brazilian Review e de “Performing Latin American and Caribbean Identities” Vanderbilt UP, assinala que, “fotógrafo talentoso”, cabia a ele “chefiar o laboratório fotográfico e com a sua lente documentar cenas dos filmes produzidos para conseguir matéria primordialmente para o registo das filmagens e que poderia servir para publicidade no momento de os filmes estrearem, isto é, posters nos corredores dos cinemas, ilustrações para artigos de revista ou de jornal, e ampliações fotográficas de até 7 por 10 metros para atrair futuros espectadores”.
A professora da Universidade de Wisconsin assinala que Nelson de Souza Rodrigues atuou nesta função durante a filmagem das três primeiros obras de ficção da Vera Cruz, o melodrama Caiçara (1950, de Adolfo Celi, que vinha do Teatro Brasileiro de Comédia, ou TBC), o muito premiado Terra é Sempre Terra (1951, de Tom Payne, baseado na peça Paiol Velho de Abílio Pereira de Almeida) e, por último, Ângela (também de 1951, de Abílio Pereira de Almeida em co-direção com Tom Payne).
Kathryn Sanchez continua: “Nesta época, dadas as metas da Vera Cruz de ser um estúdio lucrativo com a última tecnologia, houve uma forte ligação entre o cinema e a cultura de consumo, e maior motivação para promover os filmes e as estrelas com máximo proveito para a companhia. As fotografias de Nelson, de registro de estilo estático—aquilo que a palavra em inglês “stills” bem implica—e as ampliações publicitárias, tinham de indicar o filme, o seu estilo e tom, e apresentar os protagonistas principais”.
Nos retratos e fotografias que perduraram até aos nossos dias, completa a especialista, “vemos em todos eles o cuidado artístico característico de Nelson, uma preocupação constante com jogos de luz e sombra, uma delicadeza em retratar expressões faciais, e um foco particular no olhar dos protagonistas. Essas fotos capturam muito mais que aquele instante: remetem para outros aspetos momentos antes e depois do quadro de registo, com olhares que seguem para além do campo visual da lente fotográfica”.
Adolfo Celi, Abilio Pereira de Almeida, Célia Biar, o escritor José Mauro de Vasconcellos (autor do famoso “Meu Pé de Laranja Lima”, entre outros, atuou como ator em Caiçara), Maria Clara Machado (premiada escritora e dramaturga, atuou como atriz em Ângela), Alberto Ruschel, Eliane Lage, a cantora Inezita Barroso (atriz em Ângela), Sérgio Cardoso (um dos maiores nomes do teatro nacional, ator em Ângela), Antunes Filho (outro nome icônico do teatro brasileiro, ator em Ângela), a lendária Ruth de Souza, entre tantos outros personagens essenciais no cinema, no teatro e na cultura brasileira em geral. Em sua passagem pela Vera Cruz, além dos profissionais estrangeiros de alto nível, Nelson de Souza Rodrigues conviveu com grandes protagonistas das artes do Brasil. Naquele um ano, lapidou seus sentidos para os próximos passos da rica trajetória.
A paixão pela piscicultura, de São Paulo a Pirassununga
Quando trabalhou na Vera Cruz, Nelson de Souza Rodrigues já era agrônomo formado, em 1948, pela Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz (Esalq/USP), de Piracicaba. Naquela época, nem sonhava que um dia voltaria à cidade para grandes feitos.
Após o intenso período de inserção no extraordinário sonho liderado por Franco Zampari e Ciccillo Matarazzo, Rodrigues passa a chefiar o Setor de Documentação e Divulgação da Divisão de Conservação do Solo da Secretaria de Agricultura do Estado. O trabalho era documentar os serviços de conservação do solo e combate à erosão, produzindo um boletim bimensal sobre a temática. Em 1954, ainda na capital, passa a chefiar a Região Conservacionista de São Paulo, onde tem oportunidade de desenvolver técnicas conservacionistas para regiões de topografia inclinada. Os trabalhos científicos são divulgados em vários congressos.
Um salto importante em 1958, o ano da primeira Copa do Mundo do Brasil, de Pelé, da euforia nacional dos anos JK, a construção de Brasília, a Bossa Nova conquistando o mercado internacional. O agrônomo muda-se para Pirassununga, onde inicialmente chefia a Escola de Tratoristas, do então Departamento de Engenharia Mecânica da Secretaria da Agricultura.
Ainda em Pirassununga, chefia o Posto Avançado de Piscicultura do Instituto de Pesca, também ligado à Secretaria de Estado da Agricultura. Nesta função, desenvolve várias pesquisas com peixes do rio Mogi-Guaçu. É o primeiro e mais intenso contato, profissionalmente, com o mundo da pesca, paixão de criança que permaneceria por toda a vida.
Junto ao Mogi-Guaçu, o encanto cada vez maior pelas águas e os peixes. Mas Nelson não deixa de lado outra paixão antiga. Ele se torna um grande colecionador de pássaros. Chega a ter cerca de 400 deles, de dezenas de espécies. Tangarás azuis com faixa preta e topete vermelho, saíras do Rio Negro, handais, periquitos, araras, tico-ticos e um raríssimo japu-açu, entre outros, promovendo uma sinfonia permanente de cores e múltiplos sons.
Dois pássaros tinham um certo xodó do colecionador. Eram duas sabiás, uma poca e uma laranjeira, ambas muito raras e muito procuradas. O agrônomo rejeitou grandes ofertas por esses e outros pássaros.
Nesses tempos, outro talento desenvolvido. Era o de taxidermista, a partir de técnicas que conheceu ainda em São Paulo. Foram muitos pássaros e peixes que ele submeteu à técnica. Mantém até hoje um exemplar de peixe raríssimo, o cascudo-espinho (Pterygoplichthys gigas).
Um dia, a libertação. As leis mudaram, a visão sobre os animais também. O agrônomo teve que libertar as suas aves. Muitas delas foram encaminhadas a instituições científicas, assim como a quase totalidade dos indivíduos empalhados. “Não foi muito fácil não ficar sem eles”, confessou, com um olhar de nostalgia feliz, em entrevista concedida ao repórter em 2015.
Em Piracicaba, a liderança na luta pelo rio
Em 1972, o Nelson de Souza Rodrigues foi promovido, por concurso, à carreira de Pesquisador Científico. Três anos depois, o reencontro com Piracicaba e o seu rio, a maior vocação. Em 1975, foi nomeado chefe do Setor de Ecologia do Meio Hídrico, através de convênio entre o Instituto de Pesca da Secretaria de Agricultura e o Centro de Energia Nuclear na Agricultura (CENA), ligado à Universidade de São Paulo (USP).
Foi neste posto privilegiado, no contato quase diário com o rio, que o pesquisador aprofundou seus estudos, alargou seus conhecimento e alimentou a sua indignação. Entre 1975 e 1985, ano de sua aposentadoria como pesquisador, ele realizou inúmeros estudos sobre o meio hídrico e sua diversidade. Uma das maiores constatações foi a da degradação crescente das águas, com impacto direto no ciclo vital dos peixes que historicamente habitavam o rio Piracicaba.
O primeiro estudo promovido, a pedido do diretor do CENA, Dr.Admar Cervelini, já era um indicador muito preocupante. Por dois anos, ele colheu amostrar quinzenais, para verificar a possível presença de nitrato no rio e seus afluentes. As amostras estavam relacionadas a quatro tipos de cobertura vegetal, por mata, lavoura, pastagem e cana. A conclusão foi a de que a poluição por nitrato de fato ocorria de modo expressivo, com exceção das amostras feitas junto a matas nativas. O trabalho teve repercussão internacional, com sua divulgação no Coordinated Research Program Meeting – IAEA, em maio de 1978, em Viena, Áustria, e também no I Simpósio Nacional de Ecologia, patrocinado pelo Instituto de Terras e Cartografia do Paraná, em 1978.
Justamente no período em que trabalhou no CENA, Nelson Rodrigues sentiu assim, como toda a cidade, os efeitos do agravamento da poluição. Naquele momento, dois fatos contribuíram para Piracicaba ficar em alerta máximo com relação ao estado e perspectivas para o rio adorado.
Em primeiro lugar foi o início da operação, em 1974, do Sistema Cantareira, concebido pelo governo militar para garantir o abastecimento de metade da Grande São Paulo. A solução encontrada foi construir um conjunto de reservatórios pouco depois das nascentes dos rios Atibaia e Jaguari, os dois principais formadores do rio Piracicaba.
Desde o início houve a mobilização dos piracicabanos, moradores da “última cidade” da bacia, mas conscientes de que a retirada de águas da bacia poderia afetar diretamente o Atibaia e, por extensão, o próprio Piracicaba. Posteriormente, estudos realizados no próprio CENA confirmaram que as suspeitas tinham razão de ser. O Cantareira foi projetado para retirar até 33 mil litros, ou metros cúbicos, por segundo de água da bacia do Piracicaba para abastecer cerca de metade da Grande São Paulo.
Outro ingrediente que repercutiu diretamente no rio Piracicaba foi o lançamento do Proálcool, em 14 de Novembro de 1975, por meio do decreto n° 76.593 do governo federal. Era a resposta do governo militar à crise mundial do petróleo, aberta em 1973. A ideia era estimular uma tecnologia energética nacional.
A região de Piracicaba, historicamente um território de cultivo de cana, foi particularmente afetada pelas medidas de incentivo à produção do álcool. Ocorre que, naquele momento, a legislação sobre meio ambiente ainda era muito limitada e, além disso, não havia maiores cuidados por parte da indústria sucroalcooleira. O resultado foi a proliferação de descartes de resíduos do processo produtivo, a vinhaça, diretamente e sem tratamento nos corpos hídricos. Com isso, começaram a acontecer frequentes mortandades de peixe no rio Piracicaba. Depois, com avanços na legislação e na tecnologia, e sobretudo a partir dos estudos pioneiros de Jayme Rocha de Almeida na Esalq, o que antes era descartado pelo setor sucroalcooleiro a vinhaça, passou a ser utilizado como fertirrigação nos canaviais. Hoje a atividade é que mais trata esgotos próprios no setor industrial.
Mas, na época, as frequentes mortandades de peixes foram o estopim para a mobilização popular em defesa do rio que dá vida, identidade, à cidade. Com novos estudos, a situação se tornava cada vez mais assustadora. Das 107 espécies de peixes que o agrônomo catalogou, nesse período no CENA, 33 espécies, um terço, já haviam desaparecido do Piracicaba. Outras 53 se tornaram temporárias ou se tornaram quase extintas e somente 16 poderiam ser consideradas permanentes, enquanto três eram espécies introduzidas.
Com a movimentação alimentada pelo início da operação do Cantareira e pelos impactos do Proálcool, Piracicaba tornou-se gradativamente uma referência nacional e internacional de defesa das águas. Para dar ainda maior credibilidade e lastro a essa mobilização, eram divulgados os estudos como os realizados por Nelson de Souza Rodrigues (como o de despoluição com o uso de aguapés) que, no entanto, não ficou na esfera da pesquisa. Após sua aposentadoria em 1985, passou a se dedicar de corpo e alma à campanha em defesa do rio.
A histórica Campanha Piracicaba Ano 2000
Em 1980, Nelson se tornou presidente da Divisão de Meio Ambiente da Associação de Engenheiros e Arquitetos de Piracicaba (AEAP). O seu envolvimento com o tema seria crescente e, no dia 4 de outubro de 1985, a AEAP lançaria oficialmente a Campanha Ano 2000 – Redenção Ecológica da Bacia do Piracicaba. O lançamento se deu com uma circular assinada pelo presidente da AEAP, engenheiro Wanderley Esmael, e pelo presidente da Divisão de Meio Ambiente, Nelson de Souza Rodrigues, o mentor e principal motor da iniciativa.
Houve grande repercussão na mídia e sociedade local. Maior impulso se deu com o apoio do Conselho Coordenador das Entidades Civis de Piracicaba, após a apresentação da Campanha por Rodrigues no dia 12 de outubro. Era um conjunto de 32 propostas, depois reunidas na Carta de Reinvindicações, concluída em 1986 e apresentada oficialmente ao governador Orestes Quércia, no Palácio dos Bandeirantes, no dia 30 de julho de 1987.
Várias lideranças locais estavam presentes, como o diretor da Esalq, Dr.Humberto Campos, e o diretor do “Jornal de Piracicaba”, Rosário Losso Neto. Nelson Rodrigues foi quem apresentou a Campanha e a Carta para Quércia.
No dia 11 de novembro de 1987, o governador assinou o Decreto 25.576, criando o Conselho Estadual de Recursos Hídricos (CERH), com a missão inicial de estudar medidas para a bacia do Piracicaba, com base na Carta de Reivindicações. Em sua primeira reunião, a 7 de dezembro de 1987, o CERH declarou como crítica a bacia do rio Piracicaba, tendo determinado ao Comitê Coordenador do Plano Estadual de Gestão dos Recursos Hídricos (CCRHI) a elaboração, em 120 dias, de um Programa Prioritário para a Bacia do Rio Piracicaba.
Novos estudos foram executados na esfera estadual, embora na prática aquela “prioridade” oficial dada para a bacia do rio Piracicaba nunca tenha acontecido. Mas a Campanha Ano 2000 tornou-se vitoriosa, pois a partir dela evoluíram ações que levariam a um cuidado maior com o rio Piracicaba e, também, com todas as águas de São Paulo e do Brasil.
Um dos avanços importantes foi a criação, a 13 de outubro de 1989, do Consórcio Intermunicipal das Bacias dos rios Piracicaba e Capivari, por ação dos prefeitos das cidades localizadas mais a montante e mais a jusante do rio Piracicaba, Nicola Cortez, de Bragança Paulista, e José Machado, de Piracicaba.
“Naquela época, muitos protestavam contra as agressões ao rio e o Dr.Nelson Rodrigues tem o mérito de ter protagonizado e dado visibilidade a uma proposta concreta, estruturante, para a bacia do rio Piracicaba”, comenta José Machado, economista de formação e que, como morador em Piracicaba e professor na Unimep, foi eleito deputado estadual em 1986, pelo Partido dos Trabalhadores.
Para Machado, Rodrigues tinha clara a noção da relevância do rio Piracicaba “e de seu impacto na paisagem e na cultura, é a grande tradição da cidade, é o que dá identidade à cidade”. Assim, além das questões estritamente ambientais, “proteger o rio, para Nelson Rodrigues, era um dever da cidadania, um dever de todos, e então naquele momento ele encarnava o sentimento da urgência de preservação de um grande patrimônio, além da questão ambiental”, diz Machado.
Do mesmo modo, para Machado estava evidente para Rodrigues “a importância de uma autoridade que coordenasse ações em uma perspectiva regional, pois as agressões sentidas em Piracicaba eram decorrentes de fontes de poluição a montante, em municípios ao longo da bacia”.
E foi o que aconteceu, com a criação do Consórcio Intermunicipal. “Não foi um organismo provavelmente como imaginado por Nelson Rodrigues, que se inclinava para uma autoridade ligada ao governo estadual, mas acabou sendo um Consórcio dos municípios da bacia, de caráter mais independente”, destaca Machado.
Ele lembra que, eleito deputado estadual, solicitou à sua assessoria que aprofundasse os estudos sobre a situação da bacia do rio Piracicaba. Muitos desses estudos estavam a cargo do geólogo João Jerônimo Monticelli, que depois viria a ser o primeiro secretário-executivo do Consórcio Intermunicipal das bacias dos Rios Piracicaba e Capivari.
A criação do Consórcio foi uma das iniciativas de Machado, logo após a sua eleição como prefeito de Piracicaba, em 1988. “Naquele momento, depois de discussão com vários interlocutores, concluímos que um organismo regional vinculado ao governo estadual seria um projeto complexo, demandaria um esforço muito grande. Então após muito amadurecimento evoluiu a ideia do Consórcio Intermunicipal, que não precisaria ser criado por lei e nem estar no organograma estadual. Era algo independente, com um perfil de sociedade civil, e com feito com esse formato concretizamos rapidamente com outros prefeitos na época”, sintetiza Machado.
O Consórcio logo se tornaria uma referência nacional e internacional de mobilização e, não por acaso, o seu primeiro presidente, José Machado, depois seria nomeado presidente da Agência Nacional de Águas (ANA), criada na esteira da Lei Estadual (de 1991) e Lei Federal de Recursos Hídricos (de 1997).
Como uma das consequências das leis estadual e federal, foram instituídos os Comitês de Bacia Hidrográfica, como instâncias de planejamento e decisão sobre as águas de cada bacia. O Comitê das bacias dos rios Piracicaba, Capivari e Jundiaí (PCJ) foi o primeiro a ser instalado.
Para o primeiro presidente do Comitê PCJ, o então prefeito de Piracicaba, Antonio Carlos de Mendes Thame, Nelson de Souza Rodrigues teve papel decisivo em todo esse processo. Rodrigues “foi pioneiro em proteger nosso rio Piracicaba, criando mecanismos específicos de política pública”.
Na opinião de Thame, que foi eleito até 2019 para sete mandatos como deputado federal, Nelson Rodrigues teve assim destaque no processo que resultou na criação no consórcio da Bacia do PCJ, “utilizando todos seus conhecimentos e se dedicando a um modelo que foi exemplo para o estado de São Paulo”.
O Consórcio Intermunicipal das Bacias dos Rios Piracicaba, Capivari e Jundiaí (bacia agregada posteriormente) foi criado com a participação de 13 municípios. Hoje são 40 municípios associados, além de 24 empresas. O Consórcio foi fundamental na mobilização que levou a grandes investimentos em saneamento nas bacias PCJ, revertendo o panorama do início da década de 1980, quando emergiu o movimento que teve em Nelson de Souza Rodrigues um dos principais protagonistas.
Claro, os desafios permanecem. Um dos emergentes está relacionado aos impactos do aquecimento global. A seca de 2014-2015, que quase levou ao colapso no abastecimento de água no estado de São Paulo, foi um indicativo de que os desequilíbrios ambientais continuam. A mobilização pelas águas na bacia do rio Piracicaba é, nesse sentido, uma inspiração.
Artista com múltiplos talentos
Na juventude, Nelson de Souza Rodrigues construiu do próprio punho vários equipamentos que usou como fotógrafo profissional. Taxidermista, também desenvolveu habilidade em produzir pequenas esculturas. E, com múltiplos talentos, ainda teve incursões no mundo da música.
É a filha Jocelyne quem lembra, sobre a época em que o pai, em Pirassununga, foi diretor da escola de tratoristas do Departamento de Engenharia Mecânica da Agricultura (DEMA), e professor da cadeira “Mecânica Agrícola” no Instituto de Zootecnia e Indústrias Pecuárias, ambos instalados na Fazenda Fernando Costa: “Era comum no final dos dias quentes chegando do seu trabalho, após seu banho, e seu jantar, irmos todos até a varanda. A pouca ou quase inexistente rede de iluminação no DEMA favorecia céus exuberantemente estrelados. Nesta época meu pai tinha um acordeon de 40 baixos e uma gaita que nestas ocasiões costumeiramente tocava. Estas cenas são muito presentes em minha vida, a luz das estrelas revelando as silhuetas dele com seu acordeon preso ao peito, ou seus braços flexionados com sua mão envolvendo a gaita”.
Jocelyn conta que este gosto musical o pai trouxe de sua família. “Em sua casa havia um piano, suas três irmãs receberam esta formação musical, embora ele sempre tenha tocado de ouvido. Um fato histórico relacionado a música é que o músico, compositor e instrumentista Zequinha de Abreu todo mês batia a porta de sua casa oferecendo suas partituras com direito a exclusivas audições, por certo estas visitas aconteciam devido ao estudo de piano de suas irmãs”, revela a filha.
Ela celebra assim o pai “que nunca poupou esforços para criar entretenimento aos filhos pequenos, como quando ainda no DEMA com engenhosidade interligou três grandes árvores em frente nossa residência com taquaras e cordas, construindo para nós e crianças da vizinhança uma casa de madeira nas alturas. Como também tendo em sua juventude sido um dos atletas do Clube Pinheiros, participante das Travessias de São Paulo a Nado, atendendo ao meu pedido de criança, ter nadado comigo em suas costas da margem até a parte mais profunda de uma lagoa nas proximidades de onde morávamos, para satisfazer a curiosidade de uma experiência para mim muito prematura”.
Aos 100 anos, Nelson de Souza Rodrigues tem 4 filhos, com a esposa Yonne, já falecida, 8 netos e 7 bisnetos, “com mais 2 chegando ainda este ano”, conta Jocelyne. A vocação artística e o reconhecimento da postura ética que o ser humano deve ter com a natureza que o envolve e o provê são legados para os descendentes.
Um de seus netos, Luccas Guilherme Rodrigues Longo, foi o coautor, com o avô, do livro “Piracicaba, seu rio, seus peixes”, lançado em 2014, pelo Proac do governo estadual e com apoio da Prefeitura de Piracicaba.
O livro documenta o olhar de Nelson de Souza Rodrigues sobre o rio Piracicaba. São informações completas sobre o rio e a sua bacia de 1,2 milhão de hectares, com destaque para os estudos sobre peixes. O piracicabano Luccas é biólogo, especialista em Bioecologia e Conservação pela UNIMEP e mestre em Conservação de Ecossistemas Florestais pela Esalq/USP. Ele assina as ilustrações do livro.
As novas gerações dão continuidade à trajetória de amor às águas, sempre com uma olhar agudo, artístico. Como sintetizou a professora Kathryn Sanchez, da Universidade de Wisconsin, “de fotógrafo nos primórdios da legendária companhia Vera Cruz ao ícone em defesa da qualidade de vida, da proteção ao meio ambiente e à despoluição do rio Piracicaba, há um ímpeto de preservação e uma vocação para a documentação que transparece em todas as atividades de Nelson de Souza Rodrigues”. A memória, a ciência, a arte, a indignação a favor da vida.
GALERIA – FOTOS DE REGISTRO DE FILMES DA VERA CRUZ POR NELSON DE SOUZA RODRIGUES