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Primavera de saraus em Campinas e a reinvenção da poesia
Sarau da Dalva: liberdade de expressão (Foto Lucas Amaral)

Primavera de saraus em Campinas e a reinvenção da poesia

Elas e eles chegam aos poucos. São artistas em geral, poetas em particular, mas também médicos, advogados, outros profissionais e estudantes, e muitos moradores locais, que vão tomando lugar nas cadeiras e mesas que compartilham o espaço com uma mesa de sinuca e cartazes anunciando os quitutes da casa: pastel feito na hora, caldo de mocotó ou de piranha, sanduíches, panquecas e vários tipos de porção e salgadinhos. O cenário está pronto. Vai começar mais uma edição do Sarau da Dalva, no Bar do Manoel – Estrela Dalva, Parque São Quirino. Não é um fato isolado. Campinas vive uma Primavera dos Saraus, com eventos em vários pontos da cidade, mas principalmente em espaços muito populares, como  bares e associações de moradores. A poesia reinventada, na moldura de uma relação muito próxima entre universitários e todo o povo. Sociedade em movimento, como a Cooperifa e outras iniciativas têm ratificado.

“o primeiro encontro foi lindo, com-versamos,
entre todos e todas que quiseram
sobre como seria esse
nosso sarau” (Rafa Carvalho)

O sarau é um projeto de Rafael “Rafa” Manfrinatto de Carvalho, formado em Educação Física mas há muitos anos trabalhando com arte: circo, teatro, poesia. O Seo Manoel, dono do bar, é o seu pai, baiano e também apaixonado por poesia. A Dalva é a Dona Dalva, avó de Rafa. A ideia foi germinando, enquanto rodou o mundo: Japão, Dinamarca e outros países da Europa. Ele estava em Madri no famoso 15 de maio de 2011, data da manifestação dos “indignados” espanhóis na Puerta del Sol, uma das respostas europeias à Primavera Árabe, ante-sala dos movimentos de junho de 2013 no Brasil. Algo no ar e, na volta ao Brasil, a determinação de promover a cultura, as artes, onde o povo está.

“Começamos com rodas de samba, no terceiro sábado do mês”, conta Rafa. A Roda de Samba do Maneco pegou. Quando sentiu que o terreno estava fértil, o primeiro sarau, em 13 de junho, uma linda sexta-feira de lua brilhante, inspiradora. O bar ficou cheio, as pessoas se revezando no microfone aberto, democrático, para quem quisesse se expressar. O modelo foi mantido nas edições seguintes, que apenas mudaram de dia: o sarau passou a ser na segunda quarta-feira de cada mês. No primeiro sarau, lançamento de dois livros de poesia e inauguração da Estreloteca, a biblioteca do Bar do Manoel – Estrela Dalva. O acervo fica em uma geladeira desativada. No lugar da cerveja, livros em vários estilos. “A ideia é que o bar seja realmente um centro cultural para a comunidade”, explica o idealizador.

“de uma comunidade simples,
bem tudojuntomisturada, como é a gente aqui,
nesse país, ou, pelo menos, como
a gente poderia ser…” (Rafa Carvalho)

Este o grande propósito do sarau e das outras ações, diz Rafa Carvalho: contribuir com a ampliação do horizonte cultural da comunidade e, em especial, dar voz a ela, incentivá-la a expressar os seus saberes, a sua visão de mundo, a sua poesia. O bar fica bem próximo da Rua Moscou, que já foi muito estigmatizada por episódios de violência. Em função de um projeto habitacional, a maior parte dos moradores da Moscou foi transferida para conjuntos populares. A rua, ao lado do ribeirão Anhumas, foi reurbanizada.

O encontro, a partilha, a comunhão de afetos. O espírito do sarau, que vai subindo de tom e em animação. Lorca, Fernando Pessoa, Drummond, Manoel de Barros vão se alternando, na voz de poetas e dos frequentadores em geral. Livros de Leminski, Neruda e Manoel Bandeira vão circulando pelas mesas. O poeta Guga Cacilhas se esmerou, citou poemas seus e um da norteamericana Elisabeth Bishop. Guga também trabalha com circo e é co-promotor com Ana Salvagni do “Asa da Palavra”, um sarau em Barão Geraldo, o distrito universitário efervescente pela presença dos estudantes da Unicamp e PUC-Campinas. “É um encontro de diferentes realidades, daí nasce o novo”, diz Guga, que também cita os saraus promovidos pelo Instituto Sócio Cultural Voz Ativa.

“muita gente partilhando poemas, canções,
cirandas e outras com-vivências…
uma eternidade só,
muito axé!” (Rafa Carvalho)

Diversidade e riqueza cultural brasileira, no Sarau da Dalva (Foto Divulgação)

Diversidade e riqueza cultural brasileira, no Sarau da Dalva (Foto Divulgação)

A médica Carina Almeida Barjud acabava de chegar de uma jornada extenuante mas estava muito animada ao recitar um dos poemas da noite. Com trabalho na área da atenção básica à saúde e medicina da família, tem contato direto com várias comunidades da periferia de Campinas e exalta a proliferação de saraus, no Jardim São Marcos, no Parque Oziel, entre outros bairros populares. Para ela, a essência desses eventos é a oportunidade para que as pessoas façam, não apenas ouçam, consumam. “É um movimento que já existia antes de junho de 2013, e que é cada vez mais forte”, constata.

Carina ressalta a “liberdade artística, de criação”, desses saraus e outros momentos que apontam para novas formas de expressão, refletindo a diversidade racial e cultural do país. A médica entende que é fundamental o fortalecimento da perspectiva da inclusão, do acolhimento aos diversos estilos, e não da exclusão.

Posição semelhante é compartilhada por Letícia Benevides, artista de circo, ex-moradora no Parque São Quirino. “Isso é lindo, é a força da poesia, da literatura”, diz ela, os olhos brilhando.

O sarau continua e chega em um momento especial. O pai de Rafa,  o próprio Manoel, é convocado e aceita imediatamente o convite. A palavra está com ele, que faz uma senhora homenagem ao Nordeste, à cultura brasileira, recitando um poema de Patativa de Assaré (nascido Antônio Gonçalves da Silva, 1909-2002), “Triste Partida”, que diz, entre outras coisas:

“Em um caminhão
Ele joga a famia
Chegou o triste dia
Já vai viajar
Meu Deus, meu Deus
A seca terrível
Que tudo devora
Lhe bota pra fora
Da terra natá
Ai, ai, ai, ai”

Agora a seca está do lado de cá, no Sul Maravilha, mas o Sarau da Dalva confirma que, onde há poesia, há esperança. (Por José Pedro S.Martins)

Seo Manoel e Rafa: poesia no sangue (Foto Lucas Amaral)

Seo Manoel e Rafa: poesia no sangue (Foto Lucas Amaral)

 

Sobre José Pedro Soares Martins

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