Por Rafa Carvalho
Imagino a quantidade de cartas que você receba.
Tenho ainda alguma dificuldade em usar o termo senhor, senhora. Às vezes sai. E acho bonito, respeitoso. Mas não consigo chamar assim a minha mãe, minha vó, pessoas íntimas, mais próximas. É como se na idéia de você coubesse já todo o respeito de que precisamos. Um termo democrático e simples. Sem subjugar o feminino nem tampouco o masculino. Um jeito de amar aos velhos e às crianças. Como a nós mesmos.
Ao mesmo tempo, tenho tentando desenvolver o costume de pedir a bença a qualquer pessoa, independente de quem seja, o que pense ou quantas experiências, anos, tenha. Por isso também: a sua bença!
Sabe que eu cresci aprendendo a odiar as imagens dos santos? Pois é! Rixas religiosas. Ou simplesmente diferentes interpretações. Hoje eu as amo. Amar uma imagem de santo, é alguma forma de aprender melhor a amar o humano. Você não acha? Imagem, semelhança…
Eu lhe escreveria uma bíblia em termos dos assuntos. Mas vivo este constante embate, sabe… da palavra com o silêncio. O mundo já anda cheio demais de coisas ditas… até aos cotovelos. Principalmente por eles. E também, fico pensando se as bíblias de hoje suportariam poetas, como o fizeram antigamente. Sorte de Deus, que nasceu em tempo de ver tudo corrompendo. Não por isso mas, por ter sentido a poesia antes dos desastres.
Às vezes me pergunto aqui se você surfa tudo isso. Se tem um perfil fake no facebook… e fica passando o dedo pra cima – celular numa mão, terço na outra – só stalkeando as desgraças do mundo.
Fosse eu me confessar nesta carta, ela também seria uma bíblia. No fundo, somos muito parecidos com o Diabo, você não pensa? Só que com menos motivos autênticos pra sermos tão metidos a bestas. Fato que talvez nos faça ainda piores? Fico aqui imaginando quantas falhas cabem numa só biografia. Como é difícil traduzir alguém em palavras, não crê? Pobre Jesus, que ficou limitado a isso… com artistas, pensadores, santos, líderes… pessoas influentes do passado. Aliás, o que você achou de Dois Papas?
Sinto que haveria uma importância crucial em: o verbo se fazendo carne. Contudo, ao invés disto, cada vez mais aquilo que não consegue se encarnar acaba modelando-se em palavras… imagem sem semelhança. E assim é como se existisse.
Eu passei uma vida já mais longa que a de Cristo – hemos de convir que alguma experiência deve haver aí, mesmo que ainda falte tanto – acreditando em termos como contracorrente, contracultura, contrafluxo, contratempo… e não, Paco. Não! A humanidade é que inventou máquinas para subverter o sentido dos rios, alterou a frequência da natureza, o eletromagnetismo do planeta. O homem que, massivamente, perdeu o ritmo do universo.
Contraponto: quem contrariava mais, Jesus ou os fariseus? Imagino que sua resposta seja relativa…
Temos em comum o gosto por futebol. Embora tenhamos conseguido acabar até com ele, como humanidade. Salvo a molecada na rua, os operários numa folga cada vez mais escassa, as mulheres encarando o preconceito, a várzea também cheia de trambiques mas pelo menos legítima pra tanto, quase não há mais futebol. Só dinheiro, merchan, negócio, manipulação de resultados, apostas, corrupção… sujeira. Foi o que fizemos do esporte, como da igreja, da política. Basicamente: de tudo.
Hoje somos vários cristos. Mas com uma vantagem: não precisamos peregrinar. Podemos ser a verdade e a vida do conforto de nossos lares. Ninguém mais precisa transformar a água em vinho na frente de ninguém. As alquimias são outras. Uma edição de vídeo, foto. A trilha sonora certeira, o texto exato. Hashtags, impulsionamentos. Enfim, com os recursos técnicos apropriados, se faz qualquer milagre.
Dizem que as novas tecnologias democratizaram o acesso. Que agora somos todos formadores de opinião, potenciais influencers. Mas existe democracia sem povo? Há povo sem pessoas? Há pessoas sem pessoalidades e, no limite, sem condição humana? E se estivermos cada vez mais distantes de nós mesmos, tem jeito de acessar a qualquer outra coisa? Quero ser esperançoso ainda – você sabe que nós latinos temos essa predisposição à teimosia. Mas me dá receio, Paco. De estarmos todos hipnotizados demais. Acreditando demais nas hipocrisias que postamos. Coagidos demais, pra notarmos nossas solidões gesticulantes. Ainda semana passada comentei com Nietzsche como somos todos juízes hoje em dia. Só meritíssimos. Mas também poderia dizer que somos todos papas. Jesuítas de nós mesmos. Fariseus?
E aí, meu temor, é este ciclo nunca transcender em espiral. Sabe?
Você não acha que resumir a história humana na escolha entre Cristo e Barrabás seja uma limitação? Parece injusto sim o povo ter crucificado Cristo, mas… seria justo o fazer com Barrabás? Não sei você, mas eu desconfio que Barrabás tenha sido gente boa, de repente. Um tipo de ladrão que eu também seria. Que você também poderia ser.
Afinal, outra coisa que temos em comum é a quebrada. E quem sente a quebrada à vera, mas sem a barreira ao inteligível que lhe é imposta, quem vence enfim esse muro e enxerga o que tem lá, sabe: nem tudo é o que esse mundo humano faz com que pareça. Nem todo roubo é igual, nem todo motivo é igual. Num contexto tão desigual quanto este em que vivemos, nem todo esculacho dentro de um templo seria transgressão. Nem toda ordem merece o status de íntegra.
E se estivermos malformados demais para formar qualquer coisa em qualquer outro? E nossa opinião já foi sutil e habilmente adulterada por uma dinâmica perversa dominante? E se tudo foi orientado para incorporamos nosso próprio Judas Escariotes… e viver é sabotar-se em prol do êxito de alguém alheio, sem nome, desconhecido… e que no fim das contas também será só mais um sabotador de si, quase sem exceções? E se Deus for mesmo Amor… onde estará encarnado neste instante? Terá você, Paco, ou terei eu já visto esse Deus?
Onde é que o Amor se encarna na gente? Onde é que arte se encarna nos artistas? A educação nos educadores? A consciência nos conscientizadores? A justiça nos juízes, a política nos políticos? E se os termos foram cooptados e as nossas linguagens perderam sua força criativa? Se viramos meros indicadores e apenas reféns dos algorítimos? E se Jesus foi um vagabundo rejeitado maravilhoso, o que um mundo sensato esperaria de alguém que lhe fosse um fiel seguidor?
Por que o mandamento mudou, Paco? Era amar ao próximo como a si mesmo mas depois passou a ser amarmo-nos uns aos outros como Cristo nos amou… Por quê? Será a falta de amor próprio? Será que o que temos nos dado seria pouco até ao nosso pior inimigo? Será que temos sido incapazes de encarnar o amor mesmo no viés mais egoísta? Que vivemos tentando contra a própria vida convencidos de que apenas queremos viver bem ou melhor?
As pessoas pobres que ficam ricas. Por que a maioria se empenha em trabalhar por mais riqueza ao invés de trabalhar por mais pobres? Para que o deixem de ser… se quem já foi um dia sabe o quanto dói? Por que quem luta pra ter voz, quando tem, luta para ter mais… se conheceu a dor dos não-ouvidos? Por que não luta pra vencer outros silêncios, quando o seu já foi vencido? Por que quem conseguiu deixar de ser tão invisível acaba por ceder ao abandono do empenho pelo olhar e à consciência da gente, pra que a humanidade possa ver melhor e não invisibilizar mais a ninguém?
E não esquecendo o tempo histórico desta carta… esta pandemia, Paco, lhe parece algum castigo? Como fosse uma praga do Egito com a diferença fundamental de que a opressão contemporânea é global e as consequências atingem toda a Terra em retorno? Ou será que Deus nunca castiga e o caso agora é bem menos fantástico que o das pragas, de antes… e nós só colhemos o que nós mesmos plantamos?
Para onde será o êxodo? Se não temos mais recantos por aqui e a conquista da lua e de Marte começaram tão terríveis quanto as de África e da nossa América Latina? Aonde é que vamos parar, Paco? Vamos parar?
Parece que todos os dias o planeta emite uma fumaça densa, escura, dizendo ao cosmos que ainda não temos nada decidido por aqui… que não optamos ainda enquanto humanidade por sermos senhora de si.
Talvez eu quisesse escrever uma carta mais leve, sabe? Dizendo que tenho vontade de lhe dar um abraço, convidando você pruma pizza em Roma dia desses ou pra vir à nossa quebrada num domingo de jogo do Grêmio Cafezinho… Mas não deu. Ando meio confuso das idéias nisso tudo. Aliás, você que fala muitas línguas sabe que tiraram o acento de idéia por aqui? Confesso que achei um pecado… e por falar em pecar, Paco, confesso também que minha idéia o segue tendo, como pode ver.
Ah: deve ser muito foda poder olhar tanto quanto queira à Capela Sistina… Queria dizer isso.
E pra fechar, Paco, aqui entre nós… não que eu já não leve a minha cruz, nem que já não me taquem umas quantas pedras por aí… neste sentido até que pode ser bom não ser tão lido, sabe? Digo: no meio de tanta ousadia que já falo, pode pegar mal aqui no meu país. Aliás você acha mesmo que Deus é brasileiro? Se for, talvez ele tenha direito a um auxílio de seiscentos reais pra ajudar neste momento de crise. Ou melhor: mil e duzentos, como mãe solteira. No entanto ele já deve estar sabendo disso, né? Não pela onisciência apenas, mas… imagino a quantidade de rezas e orações que tem recebido. Que pena, tudo isto. Inclusive, que baita quaresma tivemos este ano, não? E ainda tem gente falando que 2020 não está acontecendo…
Mas, como você pode ver, estou fugindo do assunto. O que eu precisava mesmo contar, Paco… confessar aqui pra você e talvez mais uma meia dúzia de leitores da contracultura simpatizante deste controverso eu… é que, no conjunto da obra:
Para mim: Maradona.