Por Synnöve Hilkner
Há exatos 50 anos!
No dia 24 de abril de 1970, aportava em Santos o navio Pasteur, vindo da Europa, de onde desembarcou a família Dahlström (eu sei, é difícil pronunciar, tente Dálestrom), que consistia da mãe, Iris, seus cinco filhos Yngve, Åsa, Bodil, Synnöve e Tove (de novo, tentem pronunciar Ín-vê, Ouça, Búdhila, Síno-vê – ou C9 – e Tú-vê), além do grande Bótsman, nosso cão labrador preto.
Eu tinha 6 anos quando fui comunicada de que a família mudaria para o Brasil. Eu nascera na terra do sol da meia-noite e dos mil lagos, em uma cidade pequena, na costa oeste da Finlândia. Pela janela do quarto que dividia com quatro irmãs, podia ver a primeira neve do ano a cair, a Aurora Boreal, as primeiras flores da primavera, o eterno claro das noites de verão e as folhas vermelhas do outono.
Meu pai, Klas, havia recebido uma proposta de trabalho no Brasil. Como engenheiro, ele trabalhava com o maquinário de fábricas de celulose e, no começo dos anos de 1970, o Brasil vivia seu “milagre econômico”, estava em expansão.
Iris amava a ideia de morar no Brasil, era a ideia do idílio da própria infância, quando ela, filha de capitão de navio mercante, tinha vindo para cá várias vezes e fora feliz. Mas depois a vida dela aconteceu, com guerra, mortes e dificuldades. Então, quando meu pai contou que estava pensando em aceitar um contrato de trabalho para essas bandas, ela foi a mais entusiasmada.
Klas veio antes, de avião, por conta dos compromissos, enquanto a família embarcou no navio com a mudança na carga, no começo de abril. Foram 3 semanas de viagem, passando por portos e vivenciando aventuras a bordo.
Pois imaginem a surpresa de chegar em uma terra diferente, sem falar a língua e onde ninguém falava outra língua além do português, com 5 filhos barulhentos e um cachorro e descobrir que não havia ninguém lá para nos recepcionar. Iris conseguiu, por algum milagre, manter a calma. Em meio à papelada de imigração, ameaça de nos dar vacina contra febre amarela com uma seringa não descartável e os entraves do idioma, um funcionário do porto, que arranhava um inglês, veio em nosso socorro. Depois de muito resolver e nada estar resolvido, esse anjo entrou em contato com Sir John, dono do Hotel Indaiá e que poderia nos ajudar.
Santo Sir John nos ofereceu lanche, refresco e telefone. Iris ligou para Klas, que ligou para o escritório. A secretária do escritório retornou para Iris e disse: ”Mas achávamos que vocês só chegariam amanhã.” Mammy então respondeu: “Sinto muitíssimo, mas chegamos hoje!”
Saímos de Santos naquele mesmo dia, subimos a Serra do Mar, pela Via Anchieta e chegamos ao aeroporto de São Paulo a tempo de ver nosso voo decolar, sem os Dahlström dentro.
Desse modo, passamos uma ou duas noites em um hotel de São Paulo, onde eu, que conto essa história, completaria 7 anos.
Nosso destino era Porto Alegre, de onde iríamos para Guaíba. Havia lá um grande projeto de fábrica de celulose, da norueguesa Borregaard e meu pai, Klas, tinha com eles um contrato de trabalho de 3 anos. Esse era o nosso tempo de Brasil.
Às margens do rio Guaíba, morávamos em uma estância de veraneio (hoje apenas o declínio) de quem morava em Porto Alegre. Eu e minhas irmãs descobrimos tantas maravilhas naqueles anos em que lá moramos. Tudo era novo, passamos quase um ano inteiro dentro do rio, mesmo no inverno, enquanto moradores locais nos achavam loucas. Perguntaram para mim diversas vezes se eu era limão, eu não entendia o porquê da pergunta, mas um dia entendi que queriam saber se eu era alemã. O clube da fábrica reunia as diversas famílias nórdicas que também estavam morando lá e descobrimos o churrasco, a feijoada, nós íamos a escola, corríamos no meio das árvores do quintal, a maioria frutífera, andávamos de cavalo por entre as plantações de eucaliptos. Cresci, fiz amizades e ao final de 3 anos, fui embora.
Muito tempo depois entendi que meus pais nunca tiveram a intenção de voltar para a Finlândia. O plano original era se estabelecer no Brasil. Klas acertou contrato com outras fábricas de celulose, entre elas, a de Camaçari, na Bahia, para onde fomos em 1973. Não para Salvador, mas para uma cidade pequena, vizinha, que carecia de um mínimo de desenvolvimento. Lá descobri que existia a palmatória na escola e vi crianças morrendo de desidratação. Iris passou noites andando com bebês da vizinhança no colo, dando-lhes soro de tempos em tempos e salvou muitas vidas assim. Por outro lado, minhas aventuras de cavalo continuavam, descobri as cantigas de roda, vi as lavadeiras nos riachos e fui a vários vatapás, onde as baianas rodopiavam com seus vestidos brancos e eu, nem de longe, suspeitava que aquilo era algo religioso, acho que essa era uma vantagem de ter crescido em uma família ateia e sem preconceitos. O que hoje é para turista ver, eu vi, aos 10 anos, com a visão do primeiro olhar e a mente podendo absorver as vivências, maravilhada com tudo aquilo.
Certa vez, uma senhora pedinte, parou no portão da nossa casa para pedir dinheiro e, vendo minha mãe loira, de olhos claros, perguntou:
__ A senhora é do sul?
__ Não! Eu sou do norte (da Europa), a senhora é que é do sul (América do Sul) – Iris respondeu.
__ Mas a senhora é americana, não é?
__ Não, a senhora é americana, eu sou europeia.
Dois anos depois, o Cia. Celulose da Bahia ainda não tinha saído do papel e minha mãe deu um basta. Assim, em1975, mudamos para Campinas, São Paulo. A essa altura, meu irmão Yngve estava fora e minha irmã mais velha estava casada. De modo que a família reduzida consistia em Iris, eu e duas irmãs. Meu pai trabalhava em São Paulo e vinha aos finais de semana. O casamento não resistiu. Klas, que amava seu trabalho acima de tudo, acertava contratos em lugares muito distantes, onde fundava fábricas de celulose e comia papel. Klas, que também amava fotografar, registrou muitos momentos da vivência dele, nos lugares mais remotos desse país, entre eles, Pará e a floresta amazônica, onde trabalhou no Projeto Jari. Iris se dedicou às artes, plásticas e cênicas. Os dois já não estão mais aqui, mas aqui no Brasil eles viveram até o fim, sem nunca terem mencionado que gostariam de voltar para a Finlândia.
Em Campinas, tivemos acesso a uma ótima educação e, já adolescentes, entendemos o processo histórico da ditadura militar. Minha mãe recebia, com atraso, os jornais da Finlândia, o que dava mais luz sobre a política do Brasil. Por vezes, chegamos a receber visitas de ‘amigos de amigos’, de São Paulo, que Iris sempre recebia de braços abertos e um sorriso, pois gostava de uma boa conversa. Muitos anos depois, pensando em trechos de conversas e no fato de nunca mais ter ouvido falar dessas pessoas, fiquei com a desconfiança de que, nós estávamos mesmo, era sendo investigadas. Não dá para não rir, mas sim, devíamos ser estranhas por sermos estrangeiras.
Ainda em 1970, quando nos perguntavam se no Brasil, iríamos aprender a escrever na areia e morar em árvores, os Dahlström riam e explicavam que o país era desenvolvido. Expectativas versus realidade. Generais comandavam o país que vivia seu “milagre econômico”. O milagre do desenvolvimento que trouxe meu pai para cá, o milagre que mergulhou o país na recessão econômica, a partir de 1978. Não sei qual a ligação desses fatos, mas achei interessante mencionar.
O tempo foi passando e nós crescendo. Estudamos. Casamos. Tivemos filhos. Trabalhamos. Vivemos a história do Brasil junto com a nossa. Adotamos o país como nosso lar.
Aprendi a ver a vida com “a primeira visão” ou a visão do primeiro olhar, aquele que vê e vivencia, tentando não julgar, pois as coisas não são como sempre foram, tudo está em constante mutação e só cabe a nós tirar o melhor proveito disso. Que assim seja.