Por José Pedro Soares Martins
Campinas, 31 de agosto de 2024
Em julho de 2024, relatório conjunto da Organização Mundial da Saúde (OMS) e Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) sinalizou a reversão de uma tendência que representava grave ameaça à saúde pública no Brasil. De acordo com o relatório, o Brasil deixou o ranking de 20 países com menor número de crianças vacinadas no mundo.
Conforme os dados do monitoramento permanente realizado por OMS e Unicef, em 2021 o Brasil estava em sétimo lugar no ranking. Em função de uma série de medidas, tomadas desde o início de 2023, o país deixou o grupo de 20 países com menores taxas de cobertura vacinal em crianças contra várias doenças.
As informações são animadoras, considerando a queda brusca na cobertura vacinal no país desde 2016. Entretanto, de acordo com especialistas ouvidos pela Agência Social de Notícias, continuam múltiplos os desafios para uma consistente retomada da ampla vacinação no Brasil, que na história recente foi um modelo mundial nessa política pública. O avanço do movimento antivacina e do negacionismo científico, associado à proliferação de fake news, é um desses desafios, mas também existem outros, alertam os especialistas. “O Brasil precisa investir mais na produção própria de vacinas, para reduzir a dependência externa”, afirma por exemplo o médico sanitarista Gonzalo Vecina, fundador e ex-diretor da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa).
A queda na cobertura vacinal
A cobertura vacinal no Brasil vinha apresentando quedas inquietantes desde 2016. As taxas consideradas ideais de imunização são de 90%, mas chegaram a atingir 50,4% em 2016. Em 2021, segundo o DATASUS, o percentual foi de 60,7%. Em 2022, evoluiu a cobertura em algumas vacinas, mas de modo geral com proporção longe do desejável.
“As quedas na cobertura vacinal foram grandes, desde a edição da Emenda Constitucional 95/2016, que impôs sérios cortes em orçamento para a saúde e outras áreas importantes”, nota Gonzalo Vecina. Uma das áreas afetadas pelo corte em investimentos, observa o sanitarista, foram as campanhas de vacinação. “O modelo de vacinação no Brasil é campanhista, depende de campanhas”, completa o médico.
As reduções na cobertura vacinal foram alarmantes no caso de algumas doenças. A cobertura da vacinação contra o rotavírus caiu de 86,3% em 2012 para 68,3% em 2021. Os índices para a vacina tríplice viral (contra sarampo, caxumba e rubéola) também tiveram queda alarmante, de 86,2% em 2017 para 71,4% em 2021. Igualmente preocupante o caso da vacinação contra a poliomielite, que sofreu uma queda de 96,5% em 2012 para 67,6% em 2021, o que acendeu o alerta em termos de risco de volta da doença.
Medidas do novo governo federal
Logo no início do novo governo federal, em 2023, foram tomadas medidas direcionadas para a revitalização do Programa Nacional de Imunização (PNI), criado em 1973 e que se tornou um modelo global de política pública. Foi lançado o Movimento Nacional pela Vacinação, passou a ser adotada a estratégia do microplanejamento e foi implantado o programa Saúde com Ciência, para monitorar e combater a desinformação sobre vacinas. O Zé Gotinha, personagem associado a campanhas de vacinação desde a década de 1980, passou novamente a integrar ações de incentivo por todo o país.
Com as medidas tomadas, os primeiros resultados apareceram. De acordo com dados do Ministério da Saúde, referentes ao período de janeiro a outubro de 2023, houve o aumento da cobertura em sete das oito vacinas recomendadas para crianças de até um ano de idade: Hepatite A (73,0% em 2022 para 79,5% em 2023), Pneumocócica reforço (71,5% para 78,0%), Meningocócica reforço (75,3% para 79,8%), Poliomielite (67,1% para 74,6%), Difteria – tétano – coqueluche (67,4% para 75,2%), Tríplice viral primeira dose (80,7% para 85,6%), Tríplice viral segunda dose (57,6% para 61,6%) e Febre amarela (60,6% para 67,3%). Houve a redução na cobertura de varicela, de 73,3% para 71,6%).
“Quero dizer que o movimento pela vacinação venceu. Todos alcançamos juntos o objetivo de reverter a trajetória de queda das coberturas vacinais. A sociedade atendeu ao chamado e se incluiu nesse movimento”, afirmou a ministra da Saúde, Nísia Trindade, na apresentação desses dados. Ela também destacou o aumento da proporção na vacinação contra o papiloma vírus humano (HPV). Houve um aumento de 30% da população vacinada entre 2022 e 2023 e uma das razões apontadas para o êxito foi a vacinação nas escolas.
Outra iniciativa do novo governo federal foi a adoção de um novo painel de vacinação. Os dados do Sistema de Informação do Programa Nacional de Vacinações (SIPNI) foram transferidos para a Rede Nacional de Dados em Saúde (RNDS), onde as doses aplicadas passaram a ser vinculadas a um número de Cadastro de Pessoa Física (CPF).
Com essa migração de plataformas, foi viabilizada a carteira digital de vacinação. Todo cidadão ou cidadã passou a ter acesso online a sua situação vacinal, por meio do ConecteSUS, o que já ocorre com as doses de vacinas da Covid-19.
Os desafios do movimento antivacina e do negacionismo científico
Justamente durante a crise sanitária da Covid-19 emergiu com mais força no Brasil o movimento antivacina, associado a conceitos do negacionismo científico. Proliferaram diversas fake news associando a vacinação contra o novo coronavírus ao aparecimento ou reaparecimento de doenças. Eram notícias falsas sustentando que a vacina contra a Covid-19 provoca fibromialgia ou Alzheimer, que induz as pessoas idosas ao óbito ou que altera o DNA do ser humano.
“Algumas dessas notícias falsas tinham como motivação a intenção de alguém em vender um produto com falsa eficácia contra a Covid-19. Geralmente logo essas informações foram desmascaradas”, lembra o sanitarista Gonzalo Vecina.
O certo é que a multiplicação de fake news sobre a vacina contra a Covid-19, muitas vezes implicando negacionismo científico, contribuiu para a catástrofe sanitária no Brasil. E não foram raras as situações em que as notícias falsas envolvendo negacionismo tiveram como fonte altas autoridades do país.
Esses retrocessos alimentaram a urgência de enfrentamento do movimento antivacina no Brasil. Muitas iniciativas foram tomadas na época, no âmbito das Universidades e por instituições independentes, mas o desafio permanece.
Curiosamente, a Organização Mundial da Saúde (OMS) já havia apontado – ainda em 2019, antes da pandemia de Covid-19 – o movimento antivacina como uma das dez grandes ameaças à saúde global, ao lado mesmo de doenças como ebola, dengue e influenza ou ou HIV.
A pesquisadora Soraia Jorge, do Instituto Butantan, lembra que o movimento antivacina aparece em meados do século 19, quando argumentos teológicos e anticientíficos passaram a ser utilizados por opositores da vacinação. Emergiu naquele cenário um movimento contra a vacinação anti-varíola, conduzido por ligas anti-vacinas na Europa e nos Estados Unidos.
Na história recente, o movimento antivacina renasceu com força com posições como a do médico Andrew Wakefield que sustentou em artigo na revista “The Lancet”, em 1998, que a vacina contra sarampo, caxumba e rubéola estava relacionada ao desenvolvimento de autismo. Em 2010 a sua licença foi cassada pelo Conselho Médico Britânico, após a comprovação de fraudes. De qualquer modo, o movimento antivacina adquiriu novo vigor, com a relevância adquirida pelas redes sociais na formação da opinião pública.
Para o hematologista Carmino Antonio de Souza, membro do Conselho Superior da Fapesp e presidente do Conselho de Curadores do Instituto Butantan, é necessário indagar sobre as raízes da resistência social às vacinas. “O quanto sabemos sobre a demografia da resistência à vacina e o quão bem realmente entendemos o medo das vacinas, um medo tão avassalador que motivou inclusive, assassinatos? O quanto a resistência social à vacinação varia entre as culturas?”, pergunta Carmino, ex-secretário estadual da Saúde de São Paulo e ex-secretário municipal da Saúde de Campinas.
Na sua opinião, talvez o mais importante seja buscar saber exatamente como o movimento antivacina opera. “Quais são exatamente os dados demográficos por trás desses movimentos? Quais métodos eles usam para espalhar informações? Os que são antivacina estão agrupados em certas áreas geográficas ou redes sociais? Como podemos distribuir melhor as mensagens pró-vacina para atingir as pessoas certas? Todas essas são questões essenciais se quisermos incentivar com sucesso a ampla aceitação dessa ferramenta crucial de saúde pública”, defende Carmino de Souza.
Entre as ações direcionadas para retomar o vigor do Programa Nacional de Imunizações, o novo governo federal lançou o Programa Saúde Com Ciência. Trata-se de uma iniciativa interministerial direcionada para a promoção e fortalecimento das políticas públicas de saúde e a valorização da ciência. O Programa prevê ações que visam identificar e compreender o fenômeno da desinformação, promover informações íntegras e responder, de maneira preventiva, aos efeitos negativos das redes de desinformação.
A iniciativa tem coordenação do Ministério da Saúde e Secretaria de Comunicação Social da Presidência (SECOM) e tem o apoio da Advocacia-Geral da União (AGU), da Controladoria-Geral da União (CGU), do Ministério da Justiça e Segurança Pública (MJSP) e do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI).
Entre as ações deflagradas no âmbito do Programa, o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), com apoio financeiro do Ministério da Saúde, lançou chamada pública de incentivo a pesquisas que contribuam para o desenvolvimento científico e tecnológico e para a inovação do país na área de desinformação em saúde. Os interessados podem inscrever propostas até o dia 2 de setembro de 2024. As propostas selecionadas terão um financiamento global de R$10 milhões. (Mais informações sobre a iniciativa e edital estão no site do CNPq)
Estratégia Saúde da Família é um caminho para fortalecer o PNI
Um dos roteiros para o fortalecimento do Programa Nacional de Imunizações (PNI) e, consequentemente, para revitalizar a vacinação no Brasil é ampliar o alcance e o impacto da Estratégia Saúde da Família. Esta é a posição de especialistas como o sanitarista Gonzalo Vecina. “A Estratégia Saúde da Família coloca o cidadão e a cidadã diretamente em contato com o médico, a enfermeira e outros profissionais. Com isso fica fortalecido o processo, entre outros, de reforço do pedido do médico e equipe de saúde para que a família esteja atenta e vacine seus filhos. O apelo à vacinação é muito maior”, diz o fundador da Anvisa.
A Estratégia Saúde da Família nasceu em 1994, com o nome de Programa de Saúde da Família. Na época, os 55 primeiros municípios que implantaram o Programa contaram com 328 equipes de Saúde da Família. Cada equipe passou a ser composta pelo médico, enfermeiro, profissional de enfermagem e agentes comunitários da saúde. Essa equipe multiprofissional passou a ser responsável por 3 a 4 mil pessoas.
Em 2008 a Estratégia Saúde da Família, novo nome do programa, já cobria 50,9% da população brasileira. Em 2013 o percentual coberto chegou a 53,4% e, em 2019, a 62,6%. Essa proporção foi mantida nos anos seguintes e o governo federal iniciado em janeiro de 2023 anunciou medidas para que a cobertura chegue a 80% em 2026.
“Com a ampliação da Estratégia de Saúde da Família é possível consolidar e revigorar o Programa Nacional de Imunizações. O agente comunitário de saúde pode fazer a busca ativa, visitar os lares, e com isso fica mapeada a demanda. Com um pedido do médico e outros profissionais, é reforçado o apelo para a vacinação”, reitera Gonzalo Vecina.
O sanitarista também acredita que a atuação em conjunto entre escolas e Unidade Básica de Saúde é outro roteiro para reforçar o apelo à vacinação. “A escola pode jogar um papel muito importante na saúde, como já tinha no passado e depois foi um pouco perdido. Com uma integração planejada com a UBS, várias questões de saúde podem ser estimuladas a partir da escola, como exames visuais e outros e, também, a vacinação”, completa.
O papel estratégico da unidade escolar em uma estratégia de fortalecimento da vacinação foi ratificado pela pesquisa “Escola: Uma aliada da vacinação infantil”, realizada pelo Instituto Locomotiva, sob demanda da farmacêutica Pfizer. A pesquisa constatou que 6 em cada 10 mães brasileiras atrasaram a vacina dos filhos por falta de tempo, distância até o local de vacinação, perda da carteirinha ou dificuldade para lembrar as datas do calendário de vacinas.
A pesquisa também revelou que 9 em 10 mães consideram a escola como importante aliada para facilitar o acesso à vacinação infantil. “A taxa de vacinação infantil no Brasil vem sofrendo uma queda importante nos últimos anos, deixando a população mais exposta a doenças que antes estavam sob controle, como o sarampo. Sabemos que essa questão foi agravada pela pandemia, mas estamos falando de um problema multifatorial, complexo, influenciado por vários elementos, sejam eles sociais, econômicos, comportamentais ou de informação. Por isso, com a nova pesquisa, propomos um olhar mais aprofundado desse cenário, como forma de contribuir para a busca de soluções que realmente possam transformar a situação”, afirmou a diretora médica da Pfizer Brasil, Adriana Ribeiro, por ocasião do lançamento da pesquisa.
Brasil tem ações internacionais sobre vacinação
O Brasil tem ampliado ações de alcance internacional na esfera da vacinação. A assessora científica sênior de Bio-Manguinhos, Dra. Cristina Possas, por exemplo, foi a única cientista brasileira convidada a assinar uma carta de recomendações científicas encaminhada aos países-membros da Assembleia Mundial da Saúde, realizada no fim de maio de 2024 em Genebra, na Suíça. O documento ressalta o apelo de dezesseis cientistas e fabricantes envolvidos no desenvolvimento e produção de vacinas em todo o mundo para que seja estabelecido um Acordo Pandêmico “vantajoso para todos”. O Acordo Pandêmico, que vem sendo negociado pelo conjunto das nações, visa o fortalecimento das capacidades nacionais para o enfrentamento de uma próxima pandemia, evitando o que ocorreu durante a catástrofe sanitária da Covid-19.
O documento assinado por 16 cientistas renomados na área de vacinas foi liderado pelo Dr. Jerome Kim, diretor do International Vaccine Institute (IVI), e pelo Dr. Petro Terblanche, da Afrigen Biologics & Vaccines. “Para que os países-membros da OMS cheguem a um consenso sobre os termos deste documento será necessário negociar questões controversas, econômicas, sociais e políticas, especialmente no campo da propriedade intelectual. Esta carta busca conscientizar os países-membros a respeito da urgência de se chegar a um acordo para esta questão crucial para o futuro da humanidade, que é a de prevenir e responder à possibilidade real de uma futura pandemia”, afirmou Cristina Possas no site da Fiocruz por ocasião do lançamento da carta de apelo.
O documento salienta que o Acordo Pandêmico e as reformas no Regulamento Sanitário Internacional, que vêm sendo negociados em escala global, não dão poderes absolutos à OMS para interferir na realidade dos países, ao contrário do que foi veiculado por órgãos de comunicação. A expectativa era a de que o Acordo fosse fechado na Assembleia Mundial da Saúde em maio, em Genebra, mas as negociações foram postergadas por divergências que evitaram o consenso entre os países.
“Embora a OMS seja a guardiã global da saúde humana, a OMS não está negociando esses acordos – os 194 estados membros estão. Além de serem falsas, as falsas alegações prejudicam os objetivos do Acordo Pandêmico e sua capacidade de garantir que ele permaneça centrado nos principais pilares de acesso, equidade e segurança sanitária global”, afirma a carta assinada por 16 cientistas internacionais, inclusive a brasileira Cristina Possas.
Outra ação recente no âmbito internacional foi a assinatura de Memorando de Entendimento entre o Instituto Butantan, Fundação Butantan e o Instituto de Vacinas Humanas da Universidade Duke (DHVI, na sigla em inglês), dos Estados Unidos, objetivando a cooperação na pesquisa e no desenvolvimento clínico de novos imunobiológicos. A parceria contempla discussões e possíveis ações conjuntas relacionadas, principalmente, a vacinas contra HIV (vírus da imunodeficiência humana) e influenza, além do estudo de plataformas de RNA mensageiro e da preparação para futuras pandemias.
“Este acordo permite ao DHVI fazer o que fazemos de melhor como um instituto único de pesquisa interdisciplinar, enquanto colaboramos com outros cientistas renomados mundialmente para desenvolver vacinas e terapias inovadoras”, afirmou o diretor de Operações da organização ligada à Universidade de Duke, Thomas Denny, por ocasião da assinatura do Memorando, no final de agosto de 2024.
O DHVI é um instituto de pesquisa interdisciplinar criado em 1990 visando apoiar os esforços da Universidade Duke no desenvolvimento de vacinas e terapias para o HIV e outras infecções emergentes. “O Butantan está sempre buscando parcerias para aumentar sua capacidade de pesquisa e desenvolvimento de vacinas. Este acordo com o DHVI une dois líderes mundiais em pesquisa e produção de vacinas com a missão de melhorar a saúde global”, destacou por sua vez Esper Kallás, diretor do Instituto Butantan.
O Instituto Bio-Manguinhos, ligado à Fiocruz, no Rio de Janeiro, e o Instituto Butantan, de São Paulo, são as duas principais instituições brasileiras produtoras de vacinas. O seu papel tem sido fundamental no desenvolvimento de vacinas essenciais para a garantia da vida em qualidade para cidadãs e cidadãos brasileiros, que não podem ficar reféns de obstáculos ao Programa Nacional de Imunizações, um dos orgulhos da ciência e da saúde no país.