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Organizações alertam para retrocesso na educação inclusiva
Entidades estão atentas às mudanças que estão sendo articuladas em Brasília (Foto Adriano Rosa)

Organizações alertam para retrocesso na educação inclusiva

O Laboratório de Estudos e Pesquisas em Ensino e Diferença (LEPED), da Faculdade de Educação da Unicamp, coordenado por Maria Teresa Eglér Mantoan, produziu um vídeo-manifesto, comentando os riscos relacionados às mudanças na PNEEPEI, oficializada em 2008 mas que é fruto de debate de pelo menos 25 anos.
Meire Cavalcante, pesquisadora do LEPED, observou no vídeo que o Laboratório e várias entidades encaminharam ofício ao MEC, para participar da discussão sobre as propostas de mudança na PNEEPEI e não apenas não receberam resposta, “como foram vetados de participar”.
O argumento do MEC, de que as propostas de mudanças foram fundamentadas em pesquisas, também foi contestado pelo LEPED. A respeito, Meire Cavalcante nota que, quando o LEPED pediu ao MEC, via Lei de Acesso à Informação, os estudos que estavam sendo realizados, o Ministério não atendeu à solicitação. “Apenas tivemos acesso ao teor dessas pesquisas porque o Ministério Público Federal abriu um inquérito, obrigando o Ministério a dar publicidade aos documentos”, nota a pesquisadora.
Analisando os documentos obtidos, e que seriam segundo o MEC a base das propostas de alteração na PNEEPEI, Meire Cavalcante assinala que se nota que “sequer conhecem direito o que é o Atendimento Educacional Especializado e usam inclusive legislações ultrapassadas para dizer que estão atualizando a Política”.
A representante do LEPED refuta igualmente a afirmação do MEC de que foram ouvidas várias entidades no processo de reformulação da Política Nacional. “Realmente foram ouvidas, mas apenas as entidades que defendem a escola de classes especiais, com segregação dos seres humanos”, lamenta Meire Cavalcante.
Com efeito, o retorno de escolas e classes especiais, como propõe a nova Política do MEC, representa “um completo absurdo”, na opinião de Maria Isabel Baptista, também pesquisadora do LEPED da Faculdade de Educação da Unicamp. Para ela, essa volta ao passado “está em desacordo com os marcos legais da educação brasileira, como a Constituição Federal de 1988, em seu artigo 206 e 208, e também a Convenção sobre os Direitos da Pessoa com Deficiência, no seu artigo 24, e ainda a Lei Brasileira de Inclusão, em seu artigo 27″. Portanto, para Maria Isabel Baptista, “nos causa espanto essa argumentação usada pelo MEC”.
“Em pleno século 21, é imoral, desumano, antiético e inconstitucional o país, por meio de suas diretrizes, voltar a segregar seres humanos em classes e escolas especiais”, reitera o vídeo-manifesto do LEPED/FE-Unicamp. “Lutamos e lutaremos pela inclusão”, ressaltou a coordenadora, Maria Teresa Mantoan.
Pedido de participação cidadã – O pedido para que houvesse ampla participação no debate sobre eventuais mudanças na Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva (PNEEPEI) tem sido permanente por parte da sociedade civil. Este é o teor de documento em que um conjunto de entidades se manifestou a respeito. Foi uma carta dirigida à Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão. Esta é a íntegra do documento:

 

Vitória/ES, 05 de agosto de 2019

A Sua Excelência, a Senhora
Deborah Macedo Duprat de Britto Pereira
Procuradora Federal dos Direitos do Cidadão
SAF SUL, Quadra 4, Conjunto “C” Bloco B Sala 304 – CEP: 70050-900 – Brasília – DF
Tel.: (61) 3105-6001

Em 2018, o Ministério da Educação (MEC) anunciou que alterará a Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva – PNEEPEI (MEC, 2008).

Para tanto, foi realizada em 16 de abril de 2018, em Brasília, uma reunião organizada pela Secretaria Educação Continuada, Alfabetização, Diversidade e Inclusão – SECADI. Percebeu-se que a reformulação proposta pelo MEC não trata apenas de uma atualização da PNEEPEI, mas de uma mudança de perspectiva sobre a política de inclusão no país.

Após a realização desta reunião sem a menor representatividade, uma vez que foram excluídos do debate os educadores, as universidades, os pesquisadores, os movimentos sociais, os sindicatos, as famílias, as pessoas com deficiência, os operadores do direito e as instituições que defendem a inclusão escolar, o MEC colocou em consulta pública um texto-base sem legitimidade, a fim de tentar dar ares de “democrático” a um processo viciado.

Assim, além de o rol de participantes da referida reunião deixar evidente a falta de pluralidade do debate inicial que precedeu a consulta pública, na pressa de concluir o processo ainda na gestão anterior, o governo federal deu um prazo exíguo para a participação da sociedade: de 06 a 21 de novembro de 2018. Apenas quinze (15) dias foram insuficientes para divulgar a consulta e permitir plena participação, considerando o extenso trabalho exigido para preenchimento dos campos obrigatórios e ainda o fato de que dentro desse prazo estão dois feriados (15 de novembro e, em alguns locais do país, 20 de novembro).

O texto apresentado intitulado “Política Nacional de Educação Especial Equitativa, Inclusiva e ao Longo da Vida”, além de excluir do nome da Política o termo “na perspectiva da educação inclusiva”, revela seu caráter revisionista e também evidencia não uma “atualização” do texto em vigência, mas a supressão dos avanços alcançados a partir da PNEEPEI de 2008. Observa-se também um distanciamento do conceito de deficiência constituído na Convenção sobre os direitos das pessoas com deficiência, que hoje é parte de nossa Constituição Federal. Entre outras reformulações, ao alterar a concepção de educação inclusiva que dispõe que alunos com demandas específicas sejam matriculados em classes comuns junto aos demais, a possibilidade da “liberdade de escolha” (conforme foi apresentada) e a diversificação dos espaços de atendimento especializado aos estudantes fora da escola comum são temerárias, pois assumem a dimensão de retrocesso com o retorno às escolas especiais. Nessa perspectiva, a proposta de inclusão deixa de ser uma modalidade de ensino transversal, na qual, como garante o PNEEPEI, as atividades desenvolvidas no atendimento educacional especializado complementam e/ou suplementam a formação dos alunos, e não substituem a sala de aula comum. Possibilita assim, dentre os pontos mais graves, o retorno do modelo de escolas e classes especiais, ou seja, da segregação e exclusão de seres humanos.

Outra mudança significativa é sobre a concepção do Atendimento Educacional Especializado (AEE) e o papel do professor de AEE. A proposta do MEC reduz a Educação Especial ao AEE. Por outro lado, o PNEEPEI orienta a oferta do AEE e a sua institucionalização no projeto pedagógico da escola. Ou seja, o AEE se realiza, na sua totalidade, na articulação entre o professor da sala de aula comum com o professor do AEE, que devem identificar e discutir as necessidades e habilidades de cada criança com o objetivo de eliminar as barreiras que dificultam o desenvolvimento do potencial das pessoas com deficiência.

Nesse sentido, o papel do professor de AEE não se restringe à atuação na Sala de Recursos Multifuncionais, como apresentou o MEC durante a reunião, mas é sobretudo um articulador dos diferentes atores envolvidos nos diversos ambientes da vida da pessoa com deficiência. Não cabe, como parece apontar a nova Política do Ministério da Educação, ao professor de Educação Especial planejar e executar o conteúdo curricular, substituindo o professor de sala comum.

Salientamos que existem ainda outros pontos que merecem atenção e destaque em uma pauta de intensa discussão e que para qualquer proposta que envolva reforma de uma Política de tamanha abrangência, é imprescíndivel a realização de reuniões que garantam debate efetivamente amplo e democrático.

Ressaltamos então que qualquer texto-base que tenha sido elaborado por um grupo restrito e não representativo não tem respaldo para ser apresentado por meio da consulta pública, conforme foi realizado.

Cabe ressaltar também que na ocasião que precedeu a referida consulta pública, diversas entidades e instituições se posicionaram criticamente às mudanças. Dentre elas estão a Federação Brasileira das Associações de Síndrome de Down (FBASD); a Associação dos Magistrados do Estado do Rio de Janeiro (Amaerj); a Associação dos Membros do Ministério Público de Defesa dos Direitos dos Idosos e Pessoas com Deficiência (Ampid); a Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação (CNTE); o Grupo de Atuação Especial de Defesa da Educação (Geduc) do Ministério Público Estadual da Bahia; o Movimento Interfóruns de Educação Infantil do Brasil (Mieib); o Departamento de Educação da USP de Ribeirão Preto; a Comissão de Defesa dos Direitos das Pessoas com Deficiência da OAB de Campinas; o Grupo de Estudos e Pesquisas em Aprendizagem e Inclusão da UnB; Laboratório de Estudos e Pesquisas em Ensino e Diferença (LEPED); Associação Brasileira de Pesquisa em Educação Especial (ABPEE) além de professores e coordenadores pedagógicos de redes estaduais e municipais e de centros de pesquisas de varias universidades brasileiras.

Nesse contexto, reivindicou-se que nos diálogos organizados pelo MEC e que tenham o objetivo de debater as propostas de alterações na PNEEEI não somente sejam apresentadas amplamente as razões para a alteração da atual Política Nacional da Educação Especial na Perspectiva Inclusiva (2008), motivo da consulta pública mas que sejam envolvidos os diversos atores, como professores, gestores públicos, sindicatos, movimentos sociais, entidades, universidades, entre outros que se ocupam do debate dos avanços da PNEEPEI no país.

No entanto, contrariando todas as reivindicações que clamam por participação democrática nas discussões acerca da PNEEEPEI, foi realizado na data de hoje, 05 de agosto, no horário de 9h as 11h, na sala 126 do Conselho Nacional de Educação, um evento intitulado “Inclusão Educacional: políticas, caminhos e possibilidades” convocado pela relatora da Comissão que trata a Revisão das Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Especial. Novamente preocupa-nos a pouca representatividade das entidades que atuam no âmbito da inclusão educacional brasileira neste ato.

Diante do exposto e considerando que: o governo federal não pode retroceder no cumprimento do direito à educação das pessoas com deficiência; que a PNEEPEI é uma conquista histórica da sociedade brasileira; a inclusão escolar de pessoas com deficiência é um fato, porque a educação especial deixou de ser uma modalidade substitutiva do ensino comum para pessoas com deficiência, tornando-se uma modalidade transversal e complementar/suplementar da formação do aluno com deficiência; que a atual conjuntura política não permite mudanças e atualizações na política de educação especial; e que há falta de transparência no processo de “atualização” da PNEEPEI, solicitamos ao Ministério da Educação:
1. Tornar sem efeito qualquer decisão que tenha sido tomada e/ou encaminhamento que por ventura tenha surgido a partir do evento “Inclusão Educacional: políticas, caminhos e possibilidades” convocado pela relatora da Comissão que trata a Revisão das Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Especial e realizado com pouca representatividade em 05 de agosto de 2019, no horário de 9h as 11h na sala 126 do Conselho Nacional de Educação;
2. Agendamento de reunião com especialistas do Ministério da Educação, centros de pesquisa e entidades representativas para que, em ato democrático, discuta-se a necessidade ou não de elaboração de diretrizes que possam garantir o que já está definido na Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva de 2008 – PNEEPEI/2008 e nas normativas publicadas pelo próprio Ministério da Educação ao longo dos últimos anos.
3. Não alteração da PNEEPEI, que está em plena implementação e que, em seu décimo ano de execução, já apresenta avanços significativos, analisados por importantes instituições de pesquisa em educação, por organismos de acompanhamento das políticas públicas e pelo monitoramento da ONU sobre o cumprimento da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência;
4. Aprofundamento da implantação da atual PNEEEI por meio de apoio técnico e financeiro.

Por fim, alertamos que sua ação em sentido contrário pode ser motivo para acionar judicialmente o Ministério da Educação por violação dos direitos das pessoas com deficiência.

Assinam esse documento:

Comitê Capixaba da Campanha Nacional pelo Direito à Educação
Conselho Municipal de Educação de Vitória (COMEV)
Federação Catarinense das Associações de Síndrome de Down (FECASD)
Federação Brasileira das Associações de Síndrome de Down (FBASD)
Fórum Permanente de Educação Infantil do ES (FOPEIES)
Fórum Metropolitano de Educação Especial do ES
Fórum de Gestores da Educação Especial do ES
Fórum Estadual de Aprendizagem, Proteção ao Adolescente Trabalhador e Erradicação do Trabalho Infantil do ES
Fórum Permanente de Educação Inclusiva do Estado do Espírito Santo (FPEI-ES)
Frente Capixaba pela Escola Democrática
Frente pelas Liberdades Democráticas
Laboratório de Estudos e Pesquisas em Ensino e Diferença (LEPED/FE/Unicamp)
Laboratório de Pesquisa, Extensão e Apoio Educacional em Linguagem e Educação Especial (Lalede/USP)
Laboratório Didático de Educação Especial da Feusp (Ladesp)
Movimento Interforuns de Educação Infantil do Brasil (MIEIB)
Movimento Paratodos
Núcleo de Acessibilidade da Ufes
Núcleo de Ensino, Pesquisa e Extensão em Educação Especial do Centro de Educação da Universidade Federal do Espírito Santo (Neesp/CE/UFES)
Núcleo de Psicologia e Pessoas com Deficiência do Conselho Regional de Psicologia de SP

Esta é a íntegra do vídeo do LEPED/Unicamp, alertando para os prováveis retrocessos na política nacional de educação especial, que vinha sendo praticada na perspectiva de inclusão e não da segregação:

 

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