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Carta #04
Recorte de "Morte e Vida" (Gustav Klimt, 1916)

Carta #04

Por Rafa Carvalho

Esta é a carta mais difícil que escrevo.

Não necessariamente pelo conteúdo – que contudo não é fácil – mas pelo seu destino. Eu comecei minha história nas cartas, pelas cartas de amor. E de repente retorno a isto. No entanto por um novo prisma. Afinal, o amor é imenso e nos permite incontáveis ângulos. Pontos de vista.

Há uma diferença entre o amor e a atração; a sedução, o envolvimento. Às vezes, uma coisa leva à outra… às vezes. Quando monge eu aprendi que este amor nominal, privado, íntimo, mora mesmo no coração da gente, do jeito que desenhamos quando infantes; podendo também ativar condições residentes mais embaixo; na base da coluna, no fundo do umbigo, no plexo solar. O ódio, que é uma forma madura do desamor, também mora lá, no peito; e irradia suas consequências pelo mesmo trajeto. Daí é que saem então, todos os crimes passionais; do coração da gente: ponto em que somos humanos realmente; e lidamos com a dualidade do mundo. Do peito pra baixo ainda somos mais bicho; pra cima dele, algo um pouco já além.

Assim, o amor maior, que começa a merecer um A maiúsculo na nomenclatura, que existe por todas as pessoas e vidas e mistérios, e que condiciona cada vez menos sua existência, por sua vez: mora nas gargantas. Essas que inflamam, contrariadas, habitantes de nossos maus hálitos. Bem essa onde o corona vírus se gruda, como metal num ímã. Dada dizia que ali, no pescoço, vive também nossa capacidade de transmutação: todo veneno pode ser transformado em néctar; todo o contrário, também.

Talvez nós nasçamos num misto de ainda muito bicho, com traços de instintos por sobrevivência e seus comportamentos automáticos; e amor. Puro amor. Um amor advindo da inocência, quem sabe. Que faz das crianças: seres inseparáveis do amor. Mas isto, só até certo ponto. Dependendo da cultura onde mergulhamos – inclusive antes de nascermos, ainda na barriga, dependendo dos estímulos a que somos expostos; vamos perdendo, tanto os resquícios mais previamente animais do nascimento, quanto esse amor mais inocente e, por isso, puro.

Eu mantive uma certa inocência por um tempo até; que logo se tornou ingenuidade; e que mais tarde: era já estupidez. Às vezes quero acreditar que o momento dessa estupidez acabou, mas a verdade é que não posso vacilar 5 minutos. E daí, quem não vacila? Mas tudo isso também me permitiu experimentar o amor de um jeito… não sei se raro, mas: importante.

Tanto que minha primeira desilusão amorosa veio ali aos 4 anos. Certamente eu lhe contei esta história: comprei uma maria-mole e levei o anel azul de prenda pra ela. No recreio do jardim, dei-lhe a joia e pedi que casasse comigo. Sabe que hoje não consigo mais saber se ela me disse não, ou se só virou as costas… e foi embora. O corredor pequeno daquela escola assistencial evangélica ficou imenso enquanto se afastava. Levei uma bronca enorme por estar contra os desígnios de Deus.

Como se Deus fosse contra o amor.

E enfim, quando me distraía dele, do amor, é que qualquer coisa acontecia. Atraía as mulheres mais velhas da rua; nas festas do cortiço, na viela; nas pequenas viagens que fazíamos em visita aos parentes; nas viagens mais longas; na caatinga baiana; pelo mar de Santa Catarina; na outra escola depois, estadual, com as alunas das séries maiores. É como se eu seduzisse involuntariamente, sempre quando estava distraído de mim, sem esperança de amar.

Foi assim que uma mulher me prendeu em seu quarto, trancando-nos com chave, e despiu-se. Ela com 19 e eu com 7. Foi assim que com 16, estúpido, eu não entendia os sinais daquela que com 6 a mais me queria tanto, pra tanto. Eu gostava muito de ouvir à vitrola, quando criança, a voz e o francês de Gainsbourg, numa faixa única do lado B da coletânea com capa sexy e temas eróticos que meus os pais tinham. Não sabia seu nome, sua cara, muito menos sua história. Nem entendia as coisas que falava. Mas talvez tivéssemos nossa semelhança… talvez eu fosse um tanto parecido com Serge: só que com menos esforço consciente, quase nada de malícia; e detestando cigarros mais outros sinais da vida adulta.

Fora da distração, quando o amor me estalava dentro forte, súbito, e eu ganhava aí um foco, uma luz: só me dava mal. Sentia aquelas palpitações e tremeliques todos, as ansiedades do sentimento, suas pancadas hormonais, o coração saindo do peito, a boca seca, gaga, a barriga fria, doendo… credo: era terrível. Não sabia o que fazer, fazia tudo errado. Escrevia cartas, que depois viravam objetos de chacota; provas físicas da estupidez humana… da minha estupidez, unicamente. Via os corpos se atracando nos recreios, trás do muro, na viela… pensava que tudo aquilo fosse amor. Tentava também amar e não podia, mas: quando distraído, estava lá com a mão nalguma coxa adolescente de colega da sala; uma menina erguia a blusa pra mim, escondida; deitava com a amiga do bairro pra ver um filme embaixo do mesmo cobertor com as mãos confusas.

Sei lá… eu cheguei a lhe pedir em namoro antes mesmo de ficarmos, darmos um primeiro beijo. Como se eu tivesse nascido em 1885 e não um século mais tarde. Fui crescendo, ganhando novas atividades internas, hormônios decisivos; entendendo um pouco mais do mundo, então; perdendo enfim algumas ingenuidades, assimilando melhor as atrações, as seduções, envolvimentos. E a confusão só aumentava: esta é a verdade. Talvez parecesse que não, mas lá estava eu… estúpido.

Tentei juntar tudo para finalmente amar. No começo propus aliança de compromisso, depois propunha as utopias mais loucas: subir no observatório para olhar a lua com aquela garrafa de vinho e a nossa nudez; rodar a América Latina com palhaçaria, a caminhonete e um teatro de bonecos; comprar aquele pequeno veleiro de Sifnos por 3 mil euros; fazer dois empréstimos no banco e fugirmos pra Indonésia. Percebi que por meus caminhos – não os de Gainsbourg – terminei poeta. Percebi depois que, sensivelmente, amar ainda doía; e que poetas são tão passíveis de estupidez quanto qualquer humano – se não forem mais. Resolvi abandonar o amor e virar um cafajeste duma vez. Perdi-me num réveillon da Eslováquia, nevasca, vilarejo à meia-montanha, menos 17, 6 doses de slivovitz. Fui um putão exímio mas no dia seguinte já me apaixonei de novo, perdidamente, por ela.

Afinal, nunca consegui deixar de amar. E amar do melhor jeito. O pior jeito. Meu amor não cabia no meu tempo, não cabia na minha roupa, minha carteira, nem na minha geografia, meu mundo, meu modus operandi, não cabia na minha fala, meus poemas, nos silêncios… minhas cartas. Meu amor não cabia em mim. Não cabia em nós.

Descobrir que eu não conseguia amar a uma só de minha espécie, como um pinguim ou um joão-de-barro simplesmente foi um pavor, ao mesmo tempo em que foi uma delícia. E as confusões sempre me rondando. Deixei ela ir embora por achar que deveria ser um monge, que era preciso dedicar-me ao celibato, acabar com aquelas dores, aqueles problemas, na raiz. Fiz isso por amores passados quando estávamos tão bem. Chorei com as fotos do seu casamento anos mais tarde, de saudade, desespero; e de alegria: ela parecia feliz. Achei que ela fosse demorar mais pra voltar da China aquele dia, e de ansiedade, tomei um vinho pelo centro… cheguei atrasado. Não soube me fazer mais perto depois da nossa primeira vez, ainda que extasiado com tudo o que vivíamos. Fiquei com remorso do tinto que derrubei no tapete; de estar de pijamas com você em sua sala, bem num dia de preceito; de não acompanhar seu raciocínio por ter aceito aquele trago. Eu fui com muita sede ao pote. Era jovem demais e não soube lidar com aquele nome na parede. Aquela tatuagem, confesso… me estraçalhou. Seus pais foram os primeiros sogros que me detestavam. Queria que aquele voo tivesse umas 12 horas a mais… ter dito sim no restaurante japonês. Aquele ano foi um caos, um turbilhão. Não disse que a canção era pra você, apenas que tinha seu nome. Saí mesmo de mim, naquele tempo… cheguei ao auge das inconsequências, fui rude. Não fui até a sua casa pois tive vergonha. Por que você tinha que sair pra dar aula bem naquele horário? Você não me disse nada sobre as suas expectativas. Não consegui segurar. Enfim, eu era muito imaturo… Estúpido.

Lembra daquele beliche? Da lua cheia, a tempestade de estrelas cadentes? A nossa mão, o lago? O arco-íris, os espelhos e depois ainda o retrovisor? Lembra dos choques, tremores? Todo mundo no vizinho, o show da virada, e a gente no colchão, na sala? Lembra do cinema, da bolha em que nos enfiamos depois da meditação? Da piscina, do banho? Do rio? Lembra da laje? Do frio naquela noite na universidade? Da cara do segurança olhando a gente sem roupa ouvindo Dave Matthews? Da ponta do Atlântico e aquela madrugada de Lisboa? Lembra o por do Sol? A pizza? E que pinotage sul-africano? Aquela venda nos olhos? A noite de lado, aquele baile? Da casinha do fundo? O cartaz no aeroporto, aquele cheiro de madeira, o farol? Lembra da espera no cais de Heraclião, da parada súbita no Cambuí? Lembra a sua música? Aquela dança? No seu aniversário? Do experimento culinário? A muda de peroba rosa, o sorvete de amora, o cappuccino? Lembra do fusca amassando na pilastra, aquele gato, cavalo, aquela varanda? Lembra a chuva? A neve? A festa? A rede… O mar?

Eu sofri muito com isso de ter peito e garganta, sabe? E memória. Sei que pode ser ruim de acreditar. Sofri muito com o tanto de impressão que tive, de ter feito tanta gente sofrer também… junto; não mais junto. De um jeito ou de outro. Ela… Você. Eu sofro com as distâncias; às saudades, com a falta de paz, às vezes. Quem sabe se tivéssemos todos os perdões. Se olhássemos pros encontros e víssemos a trama da vida trançada nos destinos nossos. Os caprichos do universo. Se sentíssemos essa gratidão. Pelos voos, as quedas, cada outono, inverno, primavera… verão. Se esse nó do pescoço dissolvesse. O oco em nosso tronco desfizesse e amaciasse. Se eu tivesse mais… pra dar.

E no fim: amar, amei. Não teve jeito. Mesmo poeta. Mesmo que estúpido. O amor não tem hora; não espera. Ou vai ver que seria só besteira esperar… viver é tão breve. Machuquei, mas nunca quis machucar. Me fodi – mas nunca quis isso, no sentido mau do termo. Não que isso deva servir pra absolver ninguém… sou culpado e responsável, sim. Nasci num tempo determinado, nasci homem nesse tempo. Tive e tenho cá meus privilégios; meus pontos cegos, minha insensatez. Ainda me cabe o conflito de não saber exatamente se posso me arrepender de algo. Tão pouco sei se devo ou não me orgulhar por qualquer coisa.

Mas queria que tivéssemos um comum acordo no entender o que pedir perdão signifique. Queria que coubesse falar que ainda lhe amo. Que lhe desejo toda a alegria desse mundo. E força. E firmeza. Pra lidar com toda a tristeza do mundo também. Que apesar do jogo existir… apesar das transgressões em sua beleza: este mundo pra nós é trabalho. Como amar nos deu: trabalho. E como ainda dá. Queria que coubesse toda a gratidão. Que coubesse essa dança suave nesses ritmos-mistérios. Que coubéssemos ainda. Conscientemente. Transcendentalmente.

Só que nada disso caberia ainda, é provável. Não cabemos. O amor… não cabe.

Queria apenas enfim que cê soubesse: eu só queria que bastasse…

Eu, você, nós dois, nós todas. Esta vida.

Mas não basta. Para sempre,

Rafa

Sobre Rafa Carvalho

Rafa Carvalho é poeta apesar de tudo. Em 15 anos de carreira, são 21 países, por quase todos continentes, trabalhando com Arte, Educação e fazendo de tudo, porque tudo é o que a Poesia pode ser. E, para quem acha que Poesia não é profissão, ele já trabalhou de garçom em inúmeros estabelecimentos, na demolição civil escandinava como imigrante parcialmente legal e, atualmente, está desempregado.