Capa » Blog Cultura Viva » Carta #07
Carta #07
(Imagem Reprodução)

Carta #07

Por Rafa Carvalho

Orionas, querido. É a primeira vez que revelo o nome do destinatário, nesta série de cartas que escrevo, assim: tão depressa. Porém, ninguém que porventura leia esta carta – que é sua, mas também aberta, pública – saberá quem você é. A menos que contemos.

Queria hoje lhe escrever uma carta cheia de futuro… ou mesmo: de presente. Mas devo fracassar, meu querido. Em poucos dias estaríamos nos conhecendo pessoalmente se não fosse a quarentena, a pandemia. Há poucos dias, a polícia assassinou uma criança aqui no Brasil. Negra; linda. Seu nome, Orionas, era e é: João Pedro. Ele estava já bem maior do que você, sabe? Mas ainda era só um menino… Outra criança.

Há menos dias o ex-curador de um prêmio literário nacional – que é tido como o mais importante – negaceou as tantas mortes por Covid-19 em nosso país. Ele também debochava das pessoas na fila para um auxílio emergencial do governo neste momento, Orionas, de 600 reais a cada uma… mais ou menos 450 Złotys. E falava sobre um outro abuso: exibindo seu poder de dizer sim ou não para livros e escritores, escritoras… de um jeito parcial demais. Sabe? Projetando sua pessoa acima de outras…

E há menos dias ainda, Orionas, a polícia americana assassinou George Floyd. Um homem lindo; negro como o João Pedro. O policial ficou por cima dele, apertando seu pescoço com o joelho até à morte. Pessoas em Mineápolis, sua cidade, estão queimando muitas construções; em protestos. Na cidade de João Pedro, porém, nada se queimou ainda.

Lamento que fatos assim manchem esta carta, querido. Mas confesso que quase deixei de lhe escrever esta semana, por conta destes dentre outros fatos. Sinto ser – provavelmente – o primeiro a lhe informar que… nosso mundo não é perfeito. Ironicamente, isso gera coisas ótimas, às vezes… como o cinema vívido de seu país. Contudo – é triste: injustiças, como as três que lhe conto, são produzidas em muito maior velocidade – e eficiência – que as artes que possamos desenvolver no contraponto.

A polícia, Orionas, em qualquer lugar do mundo… deveria servir à comunidade. Mas estranhamente, em tantos lugares, parece persegui-la e estar em guerra com ela. Os livros, meu querido, deveriam ser lidos. Só que tantas vezes: não são. Tão pouco são julgados pela capa – o que sem deixar de ser injusto, já seria alguma coisa. Depois que um francês inventou um troço chamado cartesianismo, muitas pessoas morreram ou ficaram presas dentro disso. Queremos que seja isto: ou aquilo. Sempre. Pensamos que a arte é boa, que os artistas talentosos têm bom coração; são humanos. Mas não, Orionas. Nenhum ofício nos garante isso. Tente se lembrar, amanhã: excelência técnica, virtuosismo; marketing… não têm nada a ver com alma; necessariamente.

Vivemos em tramas complexas, querido. Você nasceu homem. Loiro; branquinho. Aqui no Brasil, você alcançaria a idade de João Pedro; e a ultrapassaria. Ali nos EUA, você alcançaria o tempo de George Floyd; e a ultrapassaria. Muito possivelmente. Saiba disso, Orionas. É importante. Mesmo que agora não faça sentido. Ainda que hoje não saiba porquê.

Ter nascido com um pipi ou com uma cor: podem fazer toda a diferença.

Sabe o que acontece com esses policiais assassinos? Nada; na maioria das vezes. E quando acontece, não quer dizer que chegamos ainda às raízes: esses policiais são como cães; não seus donos que os adestram. Aliás, todos nós somos tratados assim, Orionas… você tem um cachorrinho? Somos treinados para achar esta cor melhor que aquela; este pipi melhor que aquela – e ainda que todos os outros pipis de todo o mundo; este país, melhor que o outro… maior, soberano. Nos educam: para acharmos normal. Um tiro nas costas, um estrangulamento no meio do dia, um insulto aos pobres… Para acharmos esta escritora má, sem jamais lê-la; e aquela outra ótima, mas também sem uma leitura… Quando alguém é bom: tudo que vem dele deve ser bom, entende? E se um algum outro qualquer não tiver este selo, do bom, estampado por listas, jornais, prêmios e universidades… por que perder tempo com ele?

Aqui as coisas ficam ruins para você, Orionas… sinto muito. Mas, você vê? Seus pais são artistas porém não são ricos, nem famosos, nem têm parentes importantes nalguns termos; não são mega conhecidos, reconhecidos, valorizados; não cultivaram as amizades de interesse ideais. Isso não lhe dará, digamos assim: a facilidade com que um filho de Bruce Lee teria para gravar um filme de luta. Entende? Você será o novo, querido. E uma parte do mundo – a que adestra os humanos; que nem lembra mais o que é ser… humano; essa que não larga o osso – não quer saber disso: o novo.

Apesar de tanto, finge-se bem. Basta olhar para a expressiva maioria de chefes de estado nas democracias representativas do globo. A imagem das polícias nos filmes populares. O chamado para a inscrição nesses prêmios literários – quase no valor de um auxílio daqueles, lembra? Hoje lamentam o roubo de um Van Gogh… mas deixou-se o artista morrer como um cão de rua abandonado; como um cão na fila dos 600. Dizem do imenso prejuízo ao patrimônio cultural da humanidade mas: qual parcela real da humanidade tem acesso a isso? Não foi um prejuízo maior distratar o artista enquanto vivo? Não o é fazendo-se o mesmo ainda, com os vivos da vez? Estivesse ativa, a alma de Vincent: ele estaria com o sistema, ou com o ladrão?

O mundo vai doer, Orionas. Perdoe se lhe digo. Aquele ex-curador do prêmio mostrava um suposto cachorro na fila do auxílio. Uma fila que parecia desesperada. Mesma fila onde minha mãe, empregada doméstica e meu irmão, com dezenas de microlesões cerebrais, dislexia severa, agenesia do corpo caloso, com érneas operadas, sem vesícula e amígdalas: esperam até hoje, sem sucesso. Zero reais pra eles, Orionas. Zero reais até agora… mais ou menos zero Złotys.

Talvez Van Gogh estivesse ali. Caso fosse brasileiro, contemporâneo. Como grandes pintores que conheço estão. Como estariam muitos dos hoje cânones de nossa literatura. Vê? Esta Terra está cheia de padrões impostos pela raça humana, querido. Padrões desumanos. Como se estivéssemos subdivididos em sub-raças, além da nossa: única; como se não corresse os sangues mais imprevisíveis nestas suas arteriasinhas sob a pele branca; como se não fôssemos todos vira-latas e como se houvesse um único homem – com seu pipi em riste – que seja deveras melhor que sua mãe. Como se só pudessem existir os ricos no planeta… ou como se o dinheiro fizesse, realmente, alguém mais importante do que é. Como se lastros e fronteiras não fossem rudes mentiras. Como se vocês, crianças, não soubessem mesmo de nada.

Sabe, Orionas… pessoas como nós são mortas todos os dias, injustamente. Às vezes por completo, como foi com João Pedro e George Floyd. Mas em muitas e muitas outras: apenas parcial… como a pessoa que volta pra casa, da Caixa, sem seu auxílio nas mãos, cabisbaixa… sentindo-se pior que um cachorro de rua, abandonada por seus responsáveis. Embora parciais, estas também são muito sofridas… vive-se por inércia, se arrastando; uma sobrevida já um tanto agonizante.

Funciona assim: se você escreve um bom texto, mas sua minibiografia não está cheia de títulos, menções, medalhas… os tais prêmios consagrados… você não será lido. Mas se sua minibiografia contiver tudo isso, ou a do seu pai, avô… ou se você se enquadrar no novo fetiche do mercado, no escopo dos atravessadores; se seu uso fizer sentido estratégico pra eles… seu texto pode até vir a ser. E se for, as pessoas não se sentirão no direito de não amá-lo. Entende? Ou ainda, se quiserem tomar o seu posto: terão, ao invés, o dever de odiá-lo, mesmo se gostando – pior: nem lendo – pela simples tática baixa da deposição. Cada vez mais, porém, é provável que nem assim lhe leiam, querido… de um jeito ou de outro. Mas: emitindo você qualquer sinal de status relevante, saiba que interagirão constantemente, fazendo cenas… dá mesma forma que muitos pseudo-cinéfilos esbanjam críticas e considerações sobre o cinema do seu país, não raro sem nunca terem visto uma película sequer.

Aparece um rico qualquer, bem sucedido na carreira, que diz: começar a divulgar literatura. Este homem ganha espaço numa velocidade alucinante, vira pop mas… até que ponto ele divulga a literatura, trabalha por ela de fato? Até que ponto trabalha pra si, divulgando-se apenas a ele próprio? Até que ponto seu serviço é o mesmo velho esforço perverso e suave da manutenção de classes? Até que ponto ele só sabe valorizar um pobre, se este já estiver morto? E os pobres: não podem fazer boa literatura?

Como vê, meu querido Orionas, esta não é uma carta tranquila. O ex-curador renunciou: mas virão outros. João Pedro e George Floyd: não virão mais… O auxílio de tanta gente como minha mãe talvez não venha a tempo e, depois desta pandemia: ninguém sabe o que virá…

No entanto, crianças sempre me salvaram. No Japão, quando não podia tocar ninguém – nem sequer um aperto de mão – e, de repente, estava soterrado bem embaixo do abraço de cem delas numa escola onde cheguei pra trabalhar. Na Dinamarca, quando crianças loirinhas como você eram as únicas pessoas que me tiravam a sensação de estar invisível na calçada. Em Cuba quando jogávamos bola na rua, na Eslováquia quando pacientemente me ensinavam com os patins – ou a esquiar; e em Angola, quando dançavam comigo. Crianças me salvaram muito neste Brasil donde lhe escrevo, Orionas. Num determinado momento, porém, foi preciso que minha própria criança interior me salvasse. E ainda depois: eu tive um filho, sabe? O Fé, que tem exatamente a sua idade… que parece ter vindo para salvar o que nem eu mesmo, menino, poderia fazer por mim. E assim fui vindo com elas sempre salvando. E assim também, Orionas querido: você me salvou.

Precisamos contar aqui – pela abertura da carta – que você é um bebê polonês, de um ano e quatro meses de vida. E que seus pais me enviaram esta semana um vídeo seu, ouvindo uma canção que gravei – simples de tudo, à capela, sem quaisquer elaborações – num vídeo feito aqui em casa. Você que nem domina a língua polonesa ainda… não faz idéia do que diz a letra. Como não faz idéia do que escrevo aqui; nem de que agora dizem ser errado acentuar a idéia – mas eu continuo fazendo, sem fim.

Mesmo assim, Orionas, você gosta. Você gosta porque você sente. Sempre achei estranho que às vezes eu não gostasse de uma voz que todo mundo dizia linda, super técnica… e ia me encantar por outra, suficientemente desafinada, semitonando, mas que cantava cheia de sentido. Mas depois eu acho que entendi. Por trás de um vídeo, de um livro, de 600 reais, querido… 450 Złotys… há pessoas. Com ou sem heranças; também nas editoras pequenas e publicações independentes; sem parentes importantes, dinheiro no banco, na informalidade absoluta; entre anônimos, sob qualquer tom de pele, com ou sem pipi e por qualquer país do mundo… com qualquer idade: pessoas. E até os cães tem alma.

Você me salvou esta semana, querido. Pessoas pequenas – ou apequenadas – têm medo. Um político rouba à vontade. Ele tem grana, advogados, recorrências das decisões, habeas corpus, sei lá quantas instâncias. Isso lhe dá o direito – entenda desde já o quanto os sentidos das palavras, em qualquer idioma, são relativos – de roubar 1 milhão de litros de leite; sem crise nenhuma. A mãe preta que rouba a bagatela de 1 caixinha num mercado… pra dar de beber a um filho faminto: não tem. Não tem essa paz, esse sossego, garantia; essas costas quentes… pode passar anos na cadeia por isso. Pode morrer como o George Floyd. E o seu filho como o João Pedro.

Nós estamos muito totalitaristas, Orionas. Espero que você cresça e não tenha pela frente, um mundo completamente afetado por isso… que seja ali, então, uma fase já passada. Que você veja além das cores, das peles. Ou melhor: que veja também elas… e o quanto a diversidade nos faz tão mais lindos, em cada singularidade. Que veja os cães e todos os outros animais, as plantas, a vida elementar em cada gesto do planeta…

E por fim… espero que você cresça: e me escreva você uma carta-resposta; cheia de futuro.

Presente… Prometo seguir cantando, querido. Por você. Por João Pedro, pelo George Floyd. Por minha mãe na fila que o ex-curador debocha. Pela mãe preta que rouba o leite. Pelo meu filho e todas crianças que me salvaram… e que ainda podem se salvar. Prometo seguir escrevendo… sem ligar definitivamente pros títulos, prêmios e medalhas – não que eu os negaria, um dia. Mas sem por as coisas na frente das pessoas; as críticas na frente das leituras; a disputa à frente do humanismo; ou o humano, acima da vida plena desta Terra. Prometo cultivar as amizades pelas amizades simplesmente – como esta nossa, amiguinho. Morrer um pouco a cada não… Mas voltar mais íntegro ainda, teimoso: seguindo cantando, mantendo a escrita. Porque… mesmo que um curador deboche de você, querido; ainda que a corda tenda a arrebentar do seu lado, junto com seu povo, sua gente; e que pareça invisível… que lhe doa ver a rasgação de seda, a passação de pano; esse baile das solidões gesticulantes… ainda que sua sensibilidade alcance assim as mentiras das redes e a angústia profunda das pessoas nas noites de sono ou sem ele; e que tanta coisa mais aconteça… sempre haverá uma criança num país distante, querido. Sem que você faça qualquer idéia disso. Sempre haverá alguém que pode ganhar o dia com uma arte que se aterrou no mundo pela via de seu corpo… lhe atravessando para se dispor no plano; e assim poder atravessar aos demais. Sempre haverá alguém que fará valer a pena, Orionas: um sorriso, acalanto; o bem-estar de uma criança… valem mais que qualquer resenha, menção ou barganha.

E mesmo que você perder, de si, esta criança que é hoje… Um dia vai poder reencontrá-la, querido. Eu lhe garanto. Espero contudo que esta sua geração nem sequer perca, mas… se acontecer: tenho vivido a solidariedade de muitos adultos, sabia? Muitos muito mais velhos que eu. Há esperança, querido. Seja bem-vindo a este mundo… em que ainda há esperança, sim. Seja parte dela, Orionas. Com Fé. E com todas.

Mas pensando bem: talvez não seja este mundo o que lhes espera. Por falar em pessoas mais velhas… minha avó… sempre me dizia isto: que o mundo já havia acabado uma vez, há muito tempo atrás, com água. E que, já já, acabaria de novo; uma outra. Só que desta vez: em fogo. Olhando esta foto que hoje lhe envio com a carta, Orionas… eu vejo que sim.

Vê? O fogo não é bom, nem mau – lembra… aquele tal cartesianismo? Tem o fogo que queimou mulheres na inquisição, quilombos e aldeias; e favelas até hoje. Tem o fogo da arma de fogo que matou João Pedro. Tem o fogo simbólico que editais e instituições e prêmios, com seus curadores, tacam nos que estão por baixo – não significando que sejam inferiores. O fogo do banho-maria em que o mercado mantém os seus fantoches, fetiches… as bolas da vez. E tem esse fogo em Mineápolis… o fogo que talvez devesse pegar no Rio de João Pedro; nos fascismos todos pelo mundo.

Desde pequeno nos ensinam que quem mexe com fogo, Orionas, faz xixi na cama. Não ligue. Apenas aprenda a respeitá-lo, querido. Proteja-se enquanto lhe ensina. Faz dele seu mestre, querido. Forje ali a paixão das suas palavras. Faz de si um mestre. Há vários lugares não-convencionados no mundo onde é importante se mijar. E o mesmo valerá ao fogo.

Guarde esta foto para que se lembre.

Com Amor,

Rafa

Sobre Rafa Carvalho

Rafa Carvalho é poeta apesar de tudo. Em 15 anos de carreira, são 21 países, por quase todos continentes, trabalhando com Arte, Educação e fazendo de tudo, porque tudo é o que a Poesia pode ser. E, para quem acha que Poesia não é profissão, ele já trabalhou de garçom em inúmeros estabelecimentos, na demolição civil escandinava como imigrante parcialmente legal e, atualmente, está desempregado.