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Perucas que salvam vidas
Bob, Shangela e Eureka, o trio de We’re Here (Foto Divulgação)

Perucas que salvam vidas

Por Eduardo Gregori

O enredo não é novidade: três drag queens visitam uma cidade minúscula no meio do nada e tentam interagir com os moradores, que de tão distante das coisas do mundo, acreditam até que sejam seres de outro planeta. Esse argumento é o mesmo de As Aventuras de Priscilla, a Rainha do Deserto (1994) e Para Wong Foo Obrigado por Tudo, Julie Newmar (1995) dois dos primeiros longa-metragens que levaram para a telona o universo drag.

Em sua primeira temporada We’re Here (HBO) tenta se destacar em um momento que as drag queens ocupam as rádios, as paradas, as telinhas, as redes sociais e plataformas digitais. Vivemos uma overdose drag. Elas falam sobre tudo, de culinária a filosofia. Este fenômeno não deixa de ser incrível do ponto de vista da inclusão, mas como entretenimento, com o tempo, só mesmo quem tiver um bom conteúdo é que vai sobreviver.

We’re Here é um spin-off do bem-sucedido show RuPaul’s Drag Race. Para quem não sabe do que se trata, é uma competição entre drag queens na qual a vencedora é aquela que melhor absorve os ensinamentos de Ru Paul e, ao final da temporada, reúne todas as qualidades que uma drag deva ter, de acordo com Ru Paul e seus jurados.

Lynn (esq.) e Eureka: superação após amputação de dois membros por causa de um acidente de moto (Foto Divulgação)

Lynn (esq.) e Eureka: superação após amputação de dois membros por causa de um acidente de moto (Foto Divulgação)

 

Confesso que assisti até a 11ª temporada, mas só porque há sempre bons momentos para descontrair e dar boas risadas. Para mim, o formato já se esvaiu como em um looping e sem muita novidade a não ser pelas candidatas. Pode ter deixado de ser interessante para mim, mas ainda assim não deixa de ser um bastião para a comunidade LGBTQQI+ mostrar sua arte para os mais jovens e para o público em geral.

Se o roteiro de We’re Here remete a filmes feitos no passado, a série ganha relevância ao seguir duas frentes: tratar da auto-estima e apoiar pessoas da comunidade LGBTQQI+ e mostrar que ser gay, lésbica ou ter qualquer outra orientação sexual diferente da heterossexualidade é perfeitamente normal.

Outro trunfo do show é ter como protagonistas Shangela, Eureka e Bob. Shangela é uma das drags mais divertidas de RuPaul Drag Race e participou (competindo e não) de várias temporadas e episódios. Eureka ficou conhecida na série de RuPaul como uma das mais perseverantes. Entrou na 9ª temporada mas uma lesão no joelho a deixou fora da competição, mas conseguiu voltar na 10ª e se destacou pelo humor, má língua e por sua sensibilidade. Bob, a mais ativista das três, venceu a 8ª temporada e colocou em evidência a arte das drags queens negras.

Ao percorrer o interior dos Estados Unidos o trio mostra a realidade de comunidades em que a discriminação dita as regras e não apenas contra quem não é heterossexual, mas também contra negros. Em um episódio as drag queens percorrem o calçadão principal de uma cidade e são convidadas a se retirar. Em outro, são expulsas de um teatro apenas por estarem paradas na frente do local. Além de lidar com a homofobia, Bob ainda enfrenta o racismo ao visitar lojas em que a bandeira confederada norte-americana, um dos símbolos da escravidão, fica hasteada.

Bob (dir.) durante show de mãe que apoia o filho a superar o conflito de ser gay e cristão (Foto Divulgação)

Bob (dir.) durante show de mãe que apoia o filho a superar o conflito de ser gay e cristão (Foto Divulgação)

A missão do trio é buscar membros da comunidade LGBTQQI+ e ajuda-los a superar seus medos. Fora da comunidade buscam simpatizantes que possam apoia-los e pessoas que se arrependeram de atitudes preconceituosas que tiveram no passado. Tudo isso é alinhavado por um grande show que terá no elenco as três drags e alguns moradores.

Durante uma semana as três percorrem a cidade panfletando o grande show, ensaiando e conversando com a população. Os sete dias rendem muitas lágrimas, como uma mãe que sofre com a morte de sua filha, que suicidou-se por não saber lidar com sua homossexualidade em uma cidade homofóbica e também uma lésbica que perdeu uma perna e um braço em um acidente e que sofre com sua auto-estima.

Mas para além da superação destes personagens é a atuação de heterossexuais que mergulham no universo drag para mostrar que roupa de mulher, peruca e maquiagem não deixa ninguém menos masculino. É impossível não rir de um bombeiro tipicamente macho e o líder de uma ONG contra o racismo vestirem-se de drag e dublarem músicas.

Além das cenas de humor, a mensagem de apoio e de normalização das orientações sexuais é poderosa. Em outro episódio, uma mãe coloca a família inteira para fazer show com um dos filhos, que vive o conflito de assumir-se gay e ser cristão. No final, mãe e filho se abraçam ao som de Born This Way, de Lady Gaga e se esvaem em lágrimas.

Os Estados Unidos da era Trump podem não mudar com o show, mas com certeza estas pequenas cidades tiveram seu cotidiano e muita cabeças chacoalhadas por perucas que tem o poder de mudar e salvar vidas.

Sobre Eduardo Gregori

Eduardo Gregori é jornalista formado pela Pontifícia Católica de Campinas. Nasceu em Belo Horizonte e por 30 anos viveu em Campinas, onde trabalhou na Rede Anhanguera de Comunicação. Atualmente é editor do blog de viagens Eu Por Aí (www.euporai.com.br) e vive em Portugal