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Utopias, Por Que Não?
A antropóloga e professora Regina Márcia Moura Tavares (Foto Martinho Caires)

Utopias, Por Que Não?

Por Regina Márcia Moura Tavares

Reg3mar@gmail.com

Participei, recentemente, da 3ªedição do Congresso Nacional de Leitura – CONALER, online, no qual o historiador e professor francês ROGER CHARTIER discorreu, entre outros temas, sobre a importância de se manterem abertas as livrarias, a despeito do avanço da comunicação digital, visto o livro ser insubstituível como o espaço onde podemos sonhar e desenvolver a criatividade essencial ao caminhar da Humanidade.

Não discordo dele, mas penso ser no seio da família nuclear e extensa, ao longo da infância, que além de apreendemos padrões comportamentais necessários à vida em sociedade, vivenciamos experiências concretas e fantasiosas que sempre farão parte de nossa identidade futura e orientarão nossas vidas em todos os momentos, fáceis ou difíceis. O livro será buscado, sempre, a partir do interesse despertado nos tenros anos, contribuindo para a expansão da consciência, dos sonhos e da criatividade.

No isolamento em que nos encontramos, por força de um vírus desconhecido que amedronta e ataca o Homem em todos os recantos da Terra, percebo serem essas memórias que me identificam e me acalmam, em meio à ansiedade e a depressão generalizada. Brincadeiras na calçada, pés descalços na enxurrada imaginando dilúvios, sorrisos de mães trocando receitas, noites musicais estimulando sonhos. Dias, tantos, com alguém muito querido narrando fatos ocorridos em terras e batalhas distantes, alegres amigos comemorando a chegada de alguém…

As memórias pessoais estão intimamente ligadas ao grupo do qual fizemos parte um dia e precisamos de tempo e espaços adequados para o Convívio Humano! A tão falada criatividade que se está a exigir do Homem no mundo cibernético não aflorará exuberante sem que tenhamos cultivado a fantasia, os devaneios, os sonhos, as lembranças, os afetos.

A revolução industrial nos trouxe a sociedade de consumo e a indústria cultural, sua irmã gêmea. Temos, diariamente, a divulgação pelos “mass media” de novos produtos, das mais variadas naturezas, sem os quais “não se pode viver”. Oito horas de trabalho por dia, quando não mais, grandes distâncias, cansaço, desagregação familiar, pouco ou quase nada sobra para o convívio familiar e comunitário. Não somos mais Homens, seres sociais, somos Consumidores em potencial.

Nesse contexto, as memórias individuais e coletivas vêm sendo suprimidas na percepção do “Eu sou Eu”, dando lugar ao vazio existencial e à falta de limites em todas as áreas da atividade humana, na busca de um sentido. Estamos perplexos diante do descompasso de nossa sociedade tão desumana, violenta, depressiva, cheia de solidão, tédio, ansiedade e suicídios! Então, por que não uma fantasia útil?

Primeiramente, pode-se pensar na limitação do tamanho das cidades. As grandes metrópoles já provaram serem ótimas para a feérica exposição de outdoors, os grandes shoppings, bancos e grandes negócios, a monumentalidade da arquitetura, o consumo das artes e a violência institucionalizada, entre outros. Porém, nada adequadas à necessária convivência entre diferentes crianças, encontros de vizinhança, festas verdadeiramente comunitárias. Somos estranhos em nosso próprio bairro e conversamos nos clubes que frequentamos, onde as crianças brincam com seus iguais, crescendo sem empatia. A rua, o espaço por excelência da socialização, ficou para o carro e os fora a lei!

A instituição do trabalho remunerado por quatro horas ao dia, no espaço público e privado, permitirá efetiva convivência familiar, complementação educacional a genitores, recreação infantil, convívio comunitário e o usufruto de um tempo livre para o desenvolvimento das aptidões individuais de várias naturezas. Por qual motivo há de se esperar a aposentadoria para a realização de um talento inato ou de um sonho? Se nos mobilizarmos para que a OIT incorpore a proposta, já será suficiente para preencher parte do vazio existencial e, certamente, resolverá o tão alarmado problema do desemprego mundial que virá com a Inteligência artificial, pois dois indivíduos farão o trabalho de um.

Finalmente, podemos optar por um novo processo de desenvolvimento sustentável baseado em referências econômicas, sociais e históricas próprias de cada país, deixando de lado os modelos globais, já provados deletérios e concentradores de riqueza em mãos de poucos e miséria disseminada em todas as partes do globo.

São utopias?  Sim, mas factíveis por um Homo Sapiens que ocupa este planeta há 300mil anos, aproximadamente, com capacidade criativa excepcional há quase 60.000, capaz de enfrentar desafios múltiplos em todas as épocas, latitudes e longitudes, com seus deuses e ideologias justificando atos e existência. Não nos esqueçamos, jamais, de que grandes impérios surgiram e desapareceram pela busca permanente de uma sobrevivência digna!

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Regina Márcia Moura Tavares (reg3mar@gmail.com) é antropóloga, consultora da Rede de Cooperação Acadêmica em Patrimônio Cultural Imaterial da América Latina e Caribe, membro da Academia Campinense de Letras, do Instituto Histórico, Geográfico, Genealógico de Campinas e demais entidades culturais nacionais e internacionais.

 

 

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