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O Alimentador de Palavras

O Alimentador de Palavras

Cacalo Fernandes

Meu Tio Fernando era um espanhol porreta. Meu pai Alexandre era carioca e gostava de novidades. Aliás, eles eram dois novidadeiros. E ambos se encontraram num domingo de manhã em São Paulo para uma conversa limpa.

Eles estavam na rua Monte Alegre, bem próximo da PUC São Paulo, no Bairro de Perdizes. Estavam no boteco da esquina, local ideal para novidades. E para tomar cachaça.

Eles conversavam animadamente naquele domingo de manhã. Tudo acontecia ali. A conversa era maravilhosa sob o embalo da pinga. O boteco era um alimentador de palavras.

Entre uma conversa e outra, olhavam o carro quase novo de tio Fernando. Perceberam o quanto era grandioso e com que leveza o dono da fábrica em que tio Fernando atuava, desfizera-se do automóvel – praticamente deu o carro para ele.

Naquele cenário, chegaram a entender que o carro de tio Fernando se distanciava lentamente dos carros – pelo raciocínio, o carro se aproximava cada vez mais da esquina. Olharam para a pinga e deram um sorriso sarcástico. Talvez estivesse ali a causa do distanciamento dos veículos.

Pensaram em perguntar ao dono do bar se o carro, por um acaso, não estaria fugindo da posição dos demais. Notaram, de repente, que o carro em movimento era o de tio Fernando – um Dodge Dart importado da EUA, um carro mais velho, mas um Dodge.

Só o carro de tio Fernando escorregava pela pista. Tiveram a certeza disso. Olharam um para o outro: hora de correr!!! No começo da correria, assim que encostaram no Dodge, mais ou menos brecado, tentaram abrir a porta do condutor.

Meu pai ficou na frente para ajudar a conter o Dodge. Tio Fernando corria feito um louco do lado do motorista apontando a chave à porta para abri-la. Tinha que ter uma mira perfeita. Mas não achava a fechadura nem a pau. Seria um milagre. Meu pai estava se esforçando para conter o carro com seu corpo obeso. Até perceberem que o carro estava para vencer a luta. E venceu.

Deixaram o carro descer a ladeira. Só taparam os ouvidos. O carro caiu numa lixeira e levou duas almas. Os dois observavam a cena com as mãos na cabeça. Deixaram as mãos escorrerem para cobrir os ouvidos. A impressão era de que o bairro todo iria notar o barulho. Foi o que aconteceu.

Assim que o povo foi chegando, os dois comparsas foram se afastando da confusão. Quando perceberam, estavam ao lado do boteco. Os dois se olharam. E concluíram: “Vamos pensar? ”. Tomaram uma sopa. Olharam-se.

De volta pra casa, quase noite, tio Fernando abaixou a cabeça e entrou. “E o carro novo”? Gritaram os filhos.

Levantou a cabeça. “Não tem carro novo. Teve um acidente”.

Nem o parceiro acreditaria. “Está tudo em paz. Em um mês trago o carro novo”, garantiu tio Fernando. Quase todo mundo desconfiou.

Um mês depois.

“Vamos tomar uma pinga”?

“ Não, não, não…Nem a pau, Juveval! Chega! ”, brincou.

 

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Sobre Cacalo Fernandes

Ser paulistano foi o início de uma história de quem certo dia decidiu ser um escrevinhador. Mas quando a calça deixou de ser curta, lá no início, ajudou a construir esse lado que um dia pareceu esquisito. E hoje acho que não poderia ser outro.