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PATRIMÔNIO RURAL DE CAMPINAS COMO INSTRUMENTO DO ORDENAMENTO DO TERRITÓRIO
Foto Martinho Caires

PATRIMÔNIO RURAL DE CAMPINAS COMO INSTRUMENTO DO ORDENAMENTO DO TERRITÓRIO

Maria Rita Amoroso

A questão de defesa do patrimônio arquitetônico e cultural de Campinas é uma questão delicada, a começar pelo fato de que, antes de um bem material ser tombado (com fins de preservação patrimonial), existe a fase de “Bens em estudo de tombamento”. Esta fase, sendo necessária e fundamental à análise do bem em questão por parte dos órgãos públicos responsáveis, infelizmente não tem primado pela agilidade em suas decisões: vale dizer, os “Bens em estudo de tombamento” se mantém por muitos anos ou mesmo décadas neste estado. E, enquanto não são efetivamente tombados (de acordo com a responsabilidade do CONDEPHAC de zelar pela patrimônio material e imaterial campineiro), o resultado é que ficam vulneráveis ao tempo (perda do patrimônio) e ao mercado (perda de um bem público que deveria pertencer a todos os cidadãos). As fazendas históricas de Campinas ainda não tombadas, por exemplo, algumas há mais de dez ano em “estudo de tombamento”, podem acabar sendo vendidas e seu futuro passar às mãos de setores “não-públicos”, digamos.

É o que aconteceu recentemente em Campinas com a antiga Fazenda Santo André, localizada próximo ao Shopping Galleria (no lado oposto da Rodovia Dom Pedro), através de um loteamento para implantação de mais um  “Alphaville”. Construída por volta de 1883, a sede (o casarão) da Fazenda Santo André foi edificada através da técnica de taipa de pilão, tanto no exterior quanto no interior, através de mão de obra abundante na época (escrava e imigrante), coisa rara de se encontrar ainda conservada hoje em dia. Mas com sua venda e decorrente implantação do loteamento, a sede da fazenda permanecerá “intacta”, mas não preservada na integridade de seu edificado, pois receberá diferentes ambientes: sala de jogos adultos, brinquedoteca, salão de festas e salão gourmet. Assim sua arquitetura interna e suas características originais serão apagadas através de conceitos ligados a arquitetura de interiores como  “conceito aberto”, a fim de modernizar o patrimônio, descaracterizando.

Antes de mais nada, é uma forma incompleta de preservação do patrimônio arquitetônico, pois transforma a história de uma época passada em atualidade, sem a preocupação de recontá-la; ou seja, esta “transformação” implica em esquecimento do passado. E mais uma vez, infelizmente neste caso nosso patrimônio rural será desperdiçado em nome de uma “conservação” que não serve para contar a história da cidade, e sim para modificá-la em outras narrativas, adaptá-las a outras vivências, inviabilizando o papel do bem antigo, ainda existente, de representar aquilo que deveria ser um patrimônio preservado.

Como dito, é uma questão delicada, sobretudo porque percebe-se como a questão de defesa do patrimônio de Campinas não tem levado em consideração a relação de seus habitantes com a sua história, o pertencimento de seus cidadãos aos locais históricos de seu território, enfim, a identidade de uma comunidade em sua integridade – que desconhecida, é perdida para sempre ao final, identicamente à história do patrimônio arquitetônico em questão.

Existem modos diversos de lidar com esta questão, que é mais complexa – e mais bonita – do que parece. Insistimos aqui em refletirmos sobre uma proposta cultural e econômica para a questão de preservação patrimonial e socioambiental das áreas rurais de Campinas. Uma delas seria a criação de um Circuito de Antigas Fazendas de Café, um roteiro cultural para somar e potencializar efeitos positivos sobre a cidade e seus habitantes.

Assim seria possível e viável contar a verdadeira história das fazendas de café em Campinas, através do patrimônio rural material conservado, não permitindo que ele desapareça (ou se transforme a ponto de perder sua integridade). Seria criada uma rota que poderia ser entendida como um grande Parque patrimonial do café. Este parque faria a “leitura” deste circuito em Campinas e região, unindo a ferrovia (ou o complexo ferroviário) através das estações que existem conservadas até hoje, mas que não são locais isolados, e sim pontos de encontro dentro deste circuito das antigas fazendas. Porque passavam dentro de cada uma das fazendas, um passeio de Maria Fumaça em Campinas, por exemplo, equivale a revisitar estes locais onde existem o patrimônio rural a fim de conhecer suas principais edificações e seus aspectos ambientais característicos (paisagem rural, flora, fauna). Mais ainda, assim como neste caso de uma estrutura ferroviária já existente, pode ser planejado um circuito maior que integre as diversas estações a suas respectivas áreas rurais pelas quais passam, coligando ainda outras vias de acesso: automobilísticas, mas também de ciclismo, pedestre e assim por diante). Esta “logística turística” aproveitando aqueles recursos preexistentes em tais áreas rurais, coligados às zonas urbanas da cidade, é apenas uma característica entre tantas outras que permitiriam, atualmente, fazer das fazendas de café um atrativo para Campinas em forma de sustentabilidade e preservação, trazendo benefícios para a natureza e ao patrimônio, às cidades e aos cidadãos.

Este circuito de antigas fazendas de café pode unir a grande quantidade de área rural remanescente em Campinas e região que convive em maior ou menor contato com as áreas urbanas, beneficiando proprietários e a população em geral. Seria a união das antigas fazendas de café, suas construções, seu meio ambiente e todo entorno possível de ser “visitado” (pois existem locais que devem ser respeitados, havendo pessoas que ainda habitam em tais áreas). Isso é possível através de novas dinâmicas e implementação de diversas atividades que permitiriam concretizar as demandas socioambientais, econômicas e culturais de Campinas e municípios vizinhos.

De imediato, é preciso lembrar de que não estamos propondo tomar posse de bens ou mesmo áreas rurais: o Patrimônio Rural deve servir como instrumento do ordenamento do território, e não para uso de apenas uma parte dos habitantes de Campinas. O Circuito de Antigas Fazendas de Café não iria desapropriar o privado e torná-lo público (como querem fazer com as áreas verdes do Condomínio Rio das Pedras em Barão Geraldo, por exemplo), e sim adicionar outras maneiras de conhecer a rota e o patrimônio rural da cidade.

Pois para a efetiva conservação de patrimônio (de fazendas antigas neste caso), em primeiro lugar seria necessário este roteiro em forma de “Parque Patrimonial” que conservasse as edificações como um elo da história: a Fazenda Santo André poderia ter feito parte deste roteiro, se o projeto arquitetônico de requalificação do casarão incluísse a preservação do interior– e não apenas da parte externa – do conjunto arquitetônico original que ali existe. Como o CONDEPHAC e a Coordenadoria Setorial do Patrimônio Cultural têm como missão também “fiscalizar e supervisionar todos os serviços necessários à conservação e restauração de bens culturais do Município”, estes devem ter sido consultados no caso deste projeto, aceitando a descaracterização do patrimônio histórico já que o mesmo nem entrou na lista para  estudo de tombamento.

Em segundo lugar, existe uma implicação pedagógica na implementação de um modelo de circuito cultural interligando fazendas e estações ferroviárias antigas, áreas verdes e atividades ligadas ao patrimônio imaterial (visitas guiadas, por exemplo). Basta pensarmos que até hoje a maioria dos moradores de Campinas só conseguem enxergar tais estações antigas de trem como estações isoladas, isto é, como ramais ferroviários sem ligação com as antigas fazendas de café. E novamente devemos repor que a Coordenadoria Setorial do Patrimônio Cultural de Campinas tem duas obrigações correspondentes entre si: “1) estudar e propor ações integradas de requalificação, proteção e manutenção dos patrimônios culturais; 2) coordenar e executar programas de educação patrimonial”. Ambas devem ser atendidas, com o risco de não corresponder à preservação patrimonial integral na ausência de uma delas.

Detalhe: chamamos de Parque patrimonial do café este circuito das estações coletoras (Maria Fumaça), somado a todo o complexo MOGIANA-FEPASA (sentido São Paulo/Santos), porque integra cada uma destas antigas fazendas de café possuidoras de singularidades e particularidades, não sendo idênticas entre si. Isto deve estar claro aqui: elas foram feitas com técnicas construtivas diversas. Daí a necessidade de preservação de cada uma delas, porque são exemplares únicos e em cada fazenda (sede e demais construções) o visitante conhece aspectos diferentes de um mesmo modo de agenciamento das antigas fazendas e áreas rurais – todos parte de uma mesma “história” que traz consigo saberes e fazeres a serem conhecidos pela população.

Em outras palavras, fazendas dos séculos XIX e XX feitas com técnicas construtivas diferentes significa que uma não é cópia da outra. O agenciamento das fazendas de café pode ser padrão, ou seja, muito parecidos entre si (sede no alto, lago para água que lava o café, o terreiro de secagem, casa das máquinas). A técnica construtiva, porém, é outra coisa; equivale a pensar na elaboração e implantação da casa, que se relaciona com o planejamento e a elaboração do complexo cafeeiro através das demais construções (o agenciamento acima), tudo isso somado aos usos e aos demais habitantes da fazenda.

Assim, os resultados ao longo da história desta área rural campineira não foram iguais, porque antes houve técnicas de escravos (taipa), depois técnicas de imigrantes europeus, todas com influência de gostos estrangeiros, e assim por diante (no Sul do  Brasil, por exemplo, as construções foram outras, pois usava-se mais a madeira, dando origem a uma arquitetura brasileira também singular).

Todas estas estruturas têm que ser mantidas, e preservadas cada uma destas fazendas e seus remanescentes arquitetônicos (patrimônios). Mantendo o edificado, não há problemas em usar as demais áreas para loteamentos de moradia e outras ações para desenvolvimento urbano. O problema é descaracterizar esta arquitetura, ao lado de seus aspectos ambientais, porque assim inviabiliza o papel do patrimônio ao impedir a imersão em nossa história e em nossa cultura.

Também o patrimônio ambiental está presente nestas áreas “rurais” (entre parênteses, porque na verdade algumas são “periurbanas”, na nomenclatura do Plano Diretor anterior). Veja o exemplo do Condomínio Rio das Pedras (mencionado antes), com lagos tratados, pássaros e animais locais, etc. Este é um exemplo de preservação de patrimônio ambiental que, aliás, concretiza-se através de iniciativas privadas, o que é muito válido e não pode ser visto como um problema, e sim como solução das demandas coletivas urbanas locais. Esta é a razão pela qual a prefeitura não poderia transformar a área verde do Rio das Pedras em parque público, porque ali a preservação funciona porque já foi pensada incluindo o loteamento para moradia (condomínio) que conseguiu manter o equilíbrio entre área construída e área verde – tal qual nas fazendas antigas.

Sejamos sinceros: transformar uma antiga sede de fazenda histórica em “sala de jogos e festas, brinquedoteca e salão gourmet”, através do “Conceito aberto” que descaracteriza a arquitetura original, é a mesma coisa que dizer que, visitando um zoológico localizado dentro da cidade, você pode estar conhecendo a selva e todo o habitat onde viveu aquele animal que ali está (enjaulado ou livre no ambiente). Ali não é seu habitat, ainda que seja uma boa simulação; qdo vamos ao zoológico ou aos aquários na cidade, não estamos visitando seu meio ambiente original, não estamos na natureza existente fora das áreas povoadas pela civilização.

Da mesma forma, visitar uma sede de fazenda que foi transformada em uma área de lazer moderna não significa conhecer um patrimônio, e sim um “simulacro”, algo que lembra aquilo apenas, que remete àquilo que foi aquele espaço. Ou seja, não se pode falar de patrimônio conservado nestes casos, e sim de apagamento do patrimônio, pois se há grandes intervenções e modificações na estrutura original de uma sede de fazenda de café como esta, o que há é o apagamento de sua história; em outras palavras, equivale à destruição do patrimônio, e não conservação. O exterior da casa pode remeter à construção que pertenceu ao passado, como um leão visitado no Zoológico do Bosque remete ao rei dos animais, mas a verdade é que aquele ali deixou de ser rei, deixou de ser o grande e poderoso animal que é porque não está no local a que pertence: a Sede de fazenda, modificada e modernizada nos padrões atuais de vida, deixa de ser quem foi, deixa de ser patrimônio, passa a ser outra coisa, uma edificação nova que substitui a antiga, e a relega ao esquecimento.

Não é esse o caminho da preservação do patrimônio, portanto precisamos exigir dos órgãos responsáveis a devida responsabilidade pela gestão de nossa cidade e seu território, sua história que é a nossa, o futuro que deve ser feito de maior consciência e atitudes correspondentes a suas missões.

A arquiteta e urbanista Maria Rita Amoroso (Foto Martinho Caires)

A arquiteta e urbanista Maria Rita Amoroso (Foto Martinho Caires)

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