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Campinas e os 60 anos do golpe militar (III): sindicalistas foram alvo de monitoramento permanente
Documento do SNI sobre Caravana Democrática (Foto Reprodução)

Campinas e os 60 anos do golpe militar (III): sindicalistas foram alvo de monitoramento permanente

Por José Pedro Martins

Especial para Hora Campinas

e Agência Social de Notícias

 

      O dia era 19 de março de 1984, em plena campanha pelas diretas-já, que levou milhões às ruas para pedir eleições diretas para presidente da República, marcando o fim da ditadura militar iniciada em 31 de março de 1964. Naquela data, no contexto de uma euforia cívica, um grupo de 36 ativistas brasileiros, reunidos na chamada Caravana Democrática, foi retido na aduana de Chuy, no Uruguai. O grupo iria até Montevidéu, participar das atividades de libertação do general Líber Seregni, líder da esquerda daquele país, que estava preso desde 1973. Mas a Caravana foi impedida de entrar no Uruguai e seus integrantes tiveram que regressar a Porto Alegre. Entre os membros do grupo estava o sindicalista de Campinas, Demétrio Vilagra. “Voltamos a Porto Alegre sim, mas logo eu e mais duas pessoas da Caravana fomos para Buenos Aires, onde chegamos a participar de uma greve convocada pelo movimento sindical argentino, que sempre foi muito forte”, lembra Vilagra.

        A retenção da Caravana Democrática na fronteira com o Uruguai, com os consequentes interrogatórios de todos os membros e retenção de materiais “de cunho político e sindical” levados pelos integrantes, foi devidamente registrada em um informe do Serviço Nacional de Informações (SNI), de 23 de abril de 1984, dois dias antes, portanto, da votação pela Câmara dos Deputados da Emenda Dante de Oliveira, a das diretas-já. A emenda do deputado do MDB do Mato Grosso recebeu 298 votos a favor, com 65 contra e 3 abstenções. Não houve número suficiente, portanto, para a aprovação da emenda, em uma votação ocorrida com Brasília em estado de Medidas de Emergência.

       Neste clima político foi redigido o Informe 052|16|APA|84, do SNI, relatando os fatos na fronteira do Uruguai com o Brasil. “Já de retorno a Porto Alegre, compareceram ao ´plenarinho`da Assembleia Legislativa\RS, onde, perante a Comissão de Justiça e Direitos Humanos (CJDH), relataram todo o ocorrido naquela fronteira”, afirma o documento, em trecho que mostra como o monitoramento da Caravana Democrática, por membro da “comunidade de inteligência”, prosseguiu mesmo após o episódio em Chuy.

Demétrio e o cartaz do show em apoio aos petroleiros demitidos na greve de 1983 (Foto José Pedro Martins)

Demétrio e o cartaz do show em apoio aos petroleiros demitidos na greve de 1983 (Foto José Pedro Martins)

       “Durante os depoimentos perante a CJDH\AL\RS, todos, sem exceções, enfatizaram a necessidade de continuar-se lutando em prol da democracia e anistia no Uruguai”, continuou o Informe do SNI. O documento também registra que, no dia 21 de março de 1984, representantes de várias organizações gaúchas, lideradas pelo presidente e vice da CJDH\AL\RS, deputados José Ivo Sartori e Hélio Musskopf, respectivamente, compareceram ao consulado do Uruguai em Porto Alegre, para entregar ofício protestando contra o impedimento da entrada da Caravana Democrática naquele país.

Monitoramento sistemático dos sindicalistas

       O documento sobre a Caravana Democrática, que iria ao Uruguai, é um dos vários sobre a atuação sindical de Demétrio Vilagra que podem ser encontrados no site Memórias Reveladas, do Arquivo Nacional. Esse conjunto de documentos registra toda a trajetória de Vilagra como membro atuante do Sindicato dos Petroleiros de Campinas, Paulínia e Região, desde o final da década de 1970. O mesmo pode ser dito em relação a outras lideranças sindicais atuantes naquele período, como Jacó Bittar, que também atuou junto ao Sindicato dos Petroleiros e em 1988 seria eleito prefeito de Campinas, pelo Partido dos Trabalhadores, que ajudou a fundar com Luiz Inácio Lula da Silva e com quem depois romperia, ainda no mandato na Prefeitura.

     O monitoramento sobre Demétrio Vilagra inclui, por exemplo, o Informe 0308/310/ASP/79, da Agência de São Paulo do SNI, registrando a eleição da nova diretoria do Sindipetro-Paulínia em 1979, tendo Jacó Bittar como presidente. Demétrio Vilagra aparece no documento como membro do Conselho Fiscal dos Petroleiros.

      “Neste final da década de 1970, o Jacó liderou uma chapa de oposição no Sindipetro. Nós éramos funcionários da Petrobras e participamos de vários cursos de formação sindical incentivados por Jacó, com a participação de muitos professores da Unicamp. Tivemos aulas de capitalismo, socialismo etc, foi um ótimo período”, recorda Vilagra.

        Foi esta diretoria que, em julho de 1983, nos estertores da ditadura, liderou uma greve de petroleiros de Campinas e Paulínia, em conjunto com metalúrgicos do ABC paulista. O movimento grevista também foi devidamente monitorado e documentado pelos agentes da “comunidade de inteligência”. Segundo um desses documentos, esse movimento grevista, “apesar de aparentar ser uma manifestação de caráter puramente trabalhista, conforme apregoaram seus líderes na imprensa, foi na realidade o resultado de um trabalho organizado há vários meses”, afirma o Relatório Especial de Informação Movimento Sindical, elaborado pela Polícia Militar do Estado de São Paulo.

       O Relatório Especial faz uma análise do movimento sindical em São Paulo e cita vários eventos anteriores à greve de julho de 1983. O documento registra vários fatos ocorridos durante o movimento grevista, que paralisou a Refinaria do Planalto (Replan) em Paulínia por alguns dias e empresas metalúrgicas do ABC.

Informe sobre nova diretoria do Sindipetro, com Jacó Bittar e Demétrio (Foto Reprodução)

Informe sobre nova diretoria do Sindipetro, com Jacó Bittar e Demétrio (Foto Reprodução)

      O Relatório da PM também inclui a relação de funcionários da Replan demitidos em função da greve e, igualmente, dos membros da diretoria do Sindipetro que foi destituída, sob a presidência de Jacó Bittar. O Sindipetro sofreu intervenção e Demétrio Vilagra aparece na relação como tesoureiro da diretoria destituída.

      Mas os dirigentes destituídos do Sindipetro continuaram a militar na oposição sindical e participaram de atividades de organizações como o Centro de Formação e Estudos Sindicais (CEFES), situado no centro de Campinas. O Informe 0438/19/ASP/83 da Agência de São Paulo do SNI registra o lançamento pelo CEFES da publicação “O Petroleiro”, que documenta a greve na Replan. 

       “Foi um período muito difícil, estávamos sem trabalhar. Foi fundada uma Associação para ajudar os companheiros em dificuldades”, conta Vilagra. Ele lembra que nesta época ele e outros ativistas montaram o Bar Resistência, que se manteve por alguns anos em Campinas. Uma das atividades de apoio aos demitidos da Replan foi o show VemSer, realizado no Ginásio do Taquaral, em Campinas, e que teve a participação, entre outros, de Gonzaguinha, Língua de Trapo e Jards Macalé. 

Documento de reintegração dos petroleiros destituídos na greve de 1983 (Foto Reprodução)

Documento de reintegração dos petroleiros destituídos na greve de 1983 (Foto Reprodução)

      Aos poucos os demitidos da Petrobras foram buscando outras atividades e em 1988 Jacó Bittar foi eleito prefeito de Campinas. Vilagra e outros também participaram na época da Articulação Nacional de Movimentos Populares e Sindicais (Anampos), também monitorada pela “comunidade de inteligência”. 

        No dia 18 de março de 1985 os membros da diretoria do Sindipetro que haviam sido destituídos foram anistiados em ato do ministro do Trabalho do governo José Sarney, Almir Pazzianotto. Esse ato foi documentado pela Divisão de Segurança e Informações do Ministério das Minas e Energia. Ao todo, foram 164 sindicalistas anistiados. Prosseguiu, porém, a luta, que durou anos, para que eles recebessem os devidos direitos trabalhistas. Demétrio Vilagra seria eleito vice-prefeito de Campinas e cumpriu o mandato entre 2009 e 2011, quando o prefeito Helio de Oliveira Santos foi cassado. 

       O site Memórias Reveladas do Arquivo Nacional, composto por milhares de documentos elaborados pelos “órgãos de inteligência” durante o regime militar, documenta a trajetória de praticamente todas as principais lideranças sindicais naquele período da vida brasileira. “É importante que esses fatos sejam lembrados para que não se repitam. E que os órgãos de inteligência atuem a favor do país, de sua segurança, e não contra os cidadãos”, resume Vilagra, um dos sindicalistas com o todo o percurso monitorado pelos “órgãos de inteligência” durante a ditadura militar.       

Esta reportagem é fruto de parceria entre

Portal Hora Campinas

e Agência Social de Notícias

 

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