Regina Márcia Moura Tavares
Com profundo pesar, recebi ontem, 4 de junho de 2025, a notícia da morte de Niéde Guidon, arqueóloga que mudou para sempre a história da ciência brasileira. Para mim, sua perda é também pessoal. Fui sua estagiária no Museu Paulista em 1963, onde tive o privilégio de aprender com sua generosidade intelectual e rigor científico. Anos depois, reencontrei-a no Musée de l’Homme, em Paris, onde pude testemunhar a continuidade de sua trajetória brilhante. Mais recentemente, viajei até São Raimundo Nonato, no Piauí, para ver de perto os frutos de sua luta em defesa do patrimônio arqueológico do Brasil. Tive a honra de manter com Niède uma relação de amizade e profunda admiração, que carrego com gratidão.
Em meio às paisagens áridas e escarpadas do sertão piauiense, Niède fez história ao revelar ao mundo que o passado das Américas poderia ser muito mais antigo do que supunha a arqueologia tradicional. Formada em História Natural pela Universidade de São Paulo nos anos 1950, iniciou sua trajetória profissional como professora de biologia em cidades do interior paulista. Ali enfrentou os desafios de um meio conservador, em que o ensino científico era pouco valorizado. Sua inquietação intelectual a levou à Europa, onde se doutorou em arqueologia na Sorbonne.
Antes disso, no Museu Paulista, trabalhou ao lado de nomes como Herbert Baldus e Wilma Chiara, adquirindo sólida formação em pesquisa arqueológica e etnográfica. Foi um período decisivo para sua futura atuação.
Em 1970, um convite do então prefeito de Petrolina, Carlos Wilson Campos, levou-a a conhecer a Serra da Capivara, no sul do Piauí. Chegando a São Raimundo Nonato, Niède deparou-se com um verdadeiro santuário pré-histórico: formações rochosas esculpidas pelo tempo e abrigos naturais que preservavam milhares de pinturas rupestres, além de vestígios materiais da ocupação humana antiga.
Reconhecendo de imediato o valor daquele patrimônio, Niède articulou a criação da Missão Arqueológica Franco-Brasileira, com apoio do governo francês e do CNRS (Centre National de la Recherche Scientifique) — o principal organismo público de pesquisa da França, reconhecido mundialmente por seu suporte à ciência de excelência em diversas áreas do conhecimento. Foi com esse respaldo que se iniciaram escavações sistemáticas, cujos resultados desafiaram paradigmas estabelecidos.
As escavações revelaram datações surpreendentes, indicando a presença humana na região há mais de 30 mil anos, talvez até 50 mil — um dado que abalava a tese tradicional do povoamento das Américas via Estreito de Bering há apenas 13 mil anos. Com mais de 1.200 sítios arqueológicos documentados e cerca de 30 mil pinturas rupestres, a Serra da Capivara tornou-se um dos maiores patrimônios pré-históricos do mundo.
Em 1991, após anos de esforço político e científico, foi criado o Parque Nacional da Serra da Capivara, que se tornaria Patrimônio Mundial da UNESCO. Niède não parou aí: investiu na formação de comunidades locais, na criação do Museu do Homem Americano e no incentivo ao turismo cultural como estratégia de desenvolvimento regional sustentável.
Incansável, mesmo diante de obstáculos burocráticos e financeiros, Niède jamais recuou. Sua vida é testemunho de paixão pela ciência, compromisso com a verdade e dedicação à memória dos povos antigos que habitaram nosso território.
Hoje, ao nos despedirmos dessa grande mulher, fica o legado de sua coragem e de sua visão. A arqueologia brasileira perde uma de suas figuras mais luminosas. Que seu exemplo continue a inspirar novas gerações de pesquisadoras e pesquisadores
Regina Márcia é antropóloga, especialista em Preservação do Patrimônio Cultural, escritora, conferencista, membro da ACL, do IHGGC e demais entidades culturais.
Reg3mar@gmail.com