Por José Pedro Martins
O feminismo vem sendo remodelado no século 21 com novas ideias, novas vertentes e abordagens. Pois o ecofeminismo também continua sendo reinventado, sempre como uma das mais ousadas e libertárias propostas para uma nova visão da vida e do mundo na turbulência e complexidade da sociedade contemporânea.
Em 1974, na esteira da contestação radical dos valores do capitalismo, aberta por episódios como o Maio de 68 francês, Françoise D´Eaubonne lançou na França uma das obras fundamentais para o feminismo contemporâneo: O Feminismo ou a Morte. No livro, D´Eaubonne praticamente cunhou a palavra ecofeminismo, para codificar as semelhanças que apontava entre o movimento ecológico e o movimento feminista.
A emergência do ecofeminismo foi mais uma demonstração de como todos os valores sociais, políticos e culturais foram questionados nos anos 60 e parte dos 70, em estreita sintonia com a crítica dos rumos insustentáveis do modelo de desenvolvimento da sociedade industrial.
Pois o ecofeminismo assume uma dimensão particularmente importante no início do século 21, quando a reflexão sobre uma nova sociedade abraça necessariamente novos paradigmas, na medida em que a crise capitalista continua deixando suas marcas e o pensamento socialista ainda se ressente do abalo derivado da queda do Muro de Berlim, de fatos que se sucederam no Leste Europeu e de uma autocrítica em relação a sua posição frente à crise ambiental planetária.
Quatro princípios – Em artigo publicado originalmente na revista “Mulheres e Meio Ambiente”, Katherine Davies, diretora do Escritório de Proteção Ambiental de Toronto, no Canadá, recuperou, em 1988, o sentido do ecofeminismo, sob os influxos da emergência do movimento ecológico mundial. Observava Katherine que o ecofeminismo está baseado em quatro princípios: holismo, interdependência, igualdade e processo.
O ecofeminismo assume uma visão holística da vida, o que pressupõe a interação dos múltiplos ciclos vitais e ecossistemas existentes no planeta. Consequentemente, para o ecofeminismo, todas as espécies, animais, vegetais, minerais, microbiológicas, estão vivendo um freqüente processo de interação – um depende do outro, a crise em alguma parte incide sobre o funcionamento perfeito do todo.
O terceiro princípio do ecofeminismo, o de encarar a vida como processo, subverte a concepção tecnoindustrial do futuro como tempo ideal. A vida, para o ecofeminismo, é um fluir constante, ininterrupto. Mas ela deve ser vivida agora, seus prazeres e – por que não – suas crises não podem ser adiados em função das promessas de um futuro radioso que pode não acontecer.
A visão de vida como processo não implica, porém, que a luta utópica, o desejar um mundo melhor – um mundo mulher – é uma atitude despida de sentido. Para o ecofeminismo, o que acontece é que nem sempre os fins justificam os meios – em nome de um futuro radioso, pode-se cometer os maiores crimes agora, seja na direita ou na esquerda?
Outra característica da visão processual do ecofeminismo é que o ser humano, e a vida toda, estão sempre em construção. Não existe nada acabado, nem mesmo a natureza, que se desenvolve ao longo de milhares de anos. Esse é um dos motivos, aliás, que justificam a preservação da biodiversidade, construída e reconstruída por várias gerações, constituindo uma biblioteca viva do rico patrimônio biológico que os seres humanos herdaram e com relação ao qual têm o dever ético de cuidar com ternura e reverência.
Clara Gallini, uma das principais teóricas do novo feminismo italiano, assim define a plataforma do movimento, como um resumo do que seria o ecofeminismo, essa alternativa à guerra e à barbárie do início do século 21:
“Queremos viver como mulheres uma experiência totalizante: buscar uma vida na qual a pessoa deixe de ser fragmentada e atomizada – o ser racional de um lado, o ser emotivo de outro – e deixe de falar linguagens diversas, uma para o trabalho, outra para a família, outra para a escola, outra para o casal. Recuperar uma certa unidade. Recuperar uma totalidade de pessoa também através de uma totalidade da linguagem. E recuperá-la através de uma experiência solidária, como terreno de identidade: eu sou tanto mais ou mesma quanto mais reconheço que o meu destino passa através do destino dos outros” (em artigo no livro “Le Altre”, organizado por Rossana Rossanda, Ed.Bompiani, Milão, 1979).