Por Adriana Menezes
Viver na rua foi uma escolha, mas era a última alternativa da campineira Priscila Cristiane Francisco, de 30 anos, que se recusou a conviver com as sucessivas tentativas de estupro do sogro, com quem morava desde que o ex-companheiro foi preso. Preferiu sair de casa e achou melhor enfrentar os riscos do desconhecido. Na rua, já não podia mais fazer escolhas porque a sobrevivência passou a ser impositiva.
Há um ano, porém, com a criação do primeiro abrigo feminino de Campinas para mulheres em situação de rua ligado à rede de assistência social do município, Priscila teve mais uma chance de escolha. Desta vez, preferiu sair da rua e foi acolhida por voluntários e técnicos do espaço pioneiro na cidade, onde o objetivo é promover a reconstrução e a autonomia da mulher, sem limitar-se ao assistencialismo. Após 12 meses no abrigo, ela refez sua vida e vai para Minas Gerais com o filho de dez meses, onde pretende viver com um novo companheiro.
Quando foi criado o Abrigo Feminino Casa Santa Clara, em outubro de 2014, Priscila era uma das 106 mulheres que viviam nas ruas de Campinas, o equivalente a 17% do total desta população majoritariamente formada por homens – eles são 83% dos 642 moradores de rua, de acordo com contagem oficial da Prefeitura e entidades assistenciais em 2014.
Em um ano, passaram pelo abrigo feminino 28 mulheres e nove crianças. Entre as 16 mulheres (e três crianças) que já foram embora, 50% encontraram novas alternativas de moradia (com companheiros ou em pensões pagas pelo próprio trabalho), quatro voltaram para suas famílias e quatro saíram espontaneamente, algumas delas retornando para a rua após períodos muito breves no abrigo (veja gráficos em link no final do texto).
Protagonismo
“Na metodologia do abrigo, nós trabalhamos a autonomia e o protagonismo. Elas não são obrigadas a entrar ou a sair, mas as que realmente mudaram de vida permaneceram em média sete a oito meses”, diz Roberto Naiber Willis Torrico, coordenador do Abrigo Feminino Casa Santa Clara, que é ligado à Cáritas, entidade da igreja católica. “Nosso trabalho é feito para pessoas excluídas que tiveram seus direitos violados”, define o coordenador.
Há 19 anos, a Cáritas cuida de pessoas de rua em Campinas, afirma a voluntária Terezinha Y. Ikeda Shibuta, diretora do Abrigo Feminino Casa Santa Clara. A Cáritas também foi pioneira em 1995, quando criou a Associação Casa dos Amigos do São Francisco, que deu origem à cooperativa de reciclagem. Naquela ocasião, era um abrigo/dia no Centro da cidade, com banho, café da manhã, barbeiro, lavanderia, assistente social e psicólogo. Antes da criação do abrigo feminino noite/dia, portanto, já existiam outros abrigos, mas não havia um só para mulheres (com ou sem filhos), alinhado à Tipificação Nacional de Assistência Social, voltado portanto para a reconstrução de vida.
O cenário
Em 1997, nasceu ao lado da Casa São Francisco o espaço Santa Clara, basicamente com a mesma estrutura de serviço dia misto. Em pouco tempo, as duas casas se fundiram em uma só, com mais de 30 voluntários. O trabalho teve início com doações e depois passou a receber verba da Prefeitura. Passavam por lá uma média de 130 pessoas atendidas. Em 1998 foi criado o Serviço de Atendimento e Recolhimento Social (Sares) de Campinas e o Centro Pop, também em conformidade com a Tipificação Nacional de Assistência Social.
O cenário da assistência social aos poucos foi se transformando na cidade. Até que, em julho de 2014, a antiga Casa Santa Clara foi fechada e surgiu a proposta de criar um abrigo feminino para mulheres que viviam nas ruas. “Havia mulheres com crianças nas ruas, grávidas ou sozinhas, em situação de risco, que não tinham para onde ir”, lembra Terezinha. A Prefeitura fez o levantamento do perfil dessa população, divulgou o edital em 2014 e a Cáritas apresentou o projeto.
“Achamos uma casa grande no Jardim Leonor, contratamos gente para a capacitação e montamos o projeto”, conta a voluntária. “Se o homem sofre violência na rua, imagine o que sofrem as mulheres”, preocupa-se Terezinha. “Elas são muito fortes.” Essa pauta já aparecia no Fórum de Situação de Rua que acontece mensalmente há quatro anos em frente à Catedral Metropolitana de Campinas, todas as terceiras terças-feiras do mês. Os próprios moradores de rua já se preocupavam com isso.
Noite e dia
Desde o dia 29 de setembro de 2014 as mulheres que viviam nas ruas de Campinas passaram a ter um abrigo aberto 24 horas onde podem ser acolhidas. A inauguração oficial aconteceu dia 19 de outubro de 2014. As mulheres são encaminhadas pela rede de assistência social mantida pela administração municipal. O trabalho de abordagem na rua e o recolhimento espontâneo são realizados pelos técnicos da Prefeitura.
A primeira mulher a morar no abrigo foi Natalícia, enfermeira que veio de Minas Gerais para tentar uma vida melhor em Campinas. Ela fazia curso de Teologia no Colégio Pio XII quando sofreu um acidente e ficou na rua. Aceitou permanecer sete meses no abrigo e saiu com a vida reorganizada. “O objetivo é que aqui seja uma passagem”, destaca a voluntária Terezinha. “Se a seguramos demais, ela fica dependente”, completa o coordenador Naiber. “Se ela quer fazer arte, nós encaminhamos; se quer esporte, também indicamos. E no abrigo ela pode ficar com o filho.”
Conforto e segurança
Uma assistente social, uma psicóloga e uma terapeuta ocupacional atendem as moradoras das 8h às 21h. O atendimento é individualizado. Elas podem entrar e sair da casa sempre que quiserem, desde que cumpram as regras: é proibido entrar com droga ou arma, não pode haver briga física e cada uma tem de construir o seu projeto de vida, o que eles chamam de Plano de Desenvolvimento do Usuário (PDU). Todas têm cama, banheiro, refeições, acesso a televisão e computadores, lavanderia e tudo que necessitam. As famílias só são procuradas pelos voluntários ou técnicos se elas assim desejarem. Hoje o abrigo tem 13 mulheres e quatro crianças. A capacidade é para 25 pessoas.
“São elas que escrevem suas histórias, não somos nós. Apenas ajudamos a encaminhar”, conta Naiber. Ele lembra do caso de Leila (nome fictício), a menina que chegou ao abrigo aos 18 anos depois de passar por abrigos de menores. A adolescente deu mais trabalho que as demais mulheres, em função da idade, mas hoje trabalha como vendedora em um shopping e mora em uma república de meninas.
Mais valor à vida
Priscila, que preferiu as ruas à submissão ao sogro, já está com a mala pronta para viver em Minas Gerais. Ela também se sente pronta agora para uma nova vida, longe das drogas e bebidas. “O abrigo me ajudou muito”, fala sorridente a primeira grávida a chegar ao Abrigo Feminino Casa Santa Clara, onde ela teve o bebê e todas as condições para cuidar dele.
“Se eu não estivesse aqui, ele não estaria comigo, porque eu teria perdido. O Conselho (Tutelar do Menor) veio aqui conhecer o lugar, porque como moradora de rua eu perderia meu filho”, diz já em outro tom de voz, citando nomes e idades dos outros quatro filhos que foram afastados dela.
“Viver em situação de rua é horrível. A gente dorme e não sabe se vai levantar. Eu usava crack, maconha, pinga, tudo”, lembra Priscila, criada pelos avós paternos enquanto sua mãe estava presa. “O abrigo mudou minha vida e eu aprendi com meu último filho a dar mais valor à vida.”
Voluntariado
A voluntária Terezinha, hoje com 70 anos, também é protagonista de sua própria história. “Nasci com raquitismo porque minha mãe, que saiu do Japão por causa da guerra (II Guerra Mundial), não tinha o que comer. Sei o que é passar fome. Mas tudo que passamos é experiência de vida, sempre falo isso para elas. Eu recebi muita ajuda, desde um vizinho que nos dava um sabonete até coisas maiores. Em Fartura, onde nasci, meus pais trabalharam na lavoura e tiveram 9 filhos. Depois fomos para São Paulo, onde o diretor de uma escola mudou minha vida porque foi nos chamar para ir à escola. Eu tinha 11 anos e havia parado de estudar. Mais tarde, cursei Fisioterapia na USP em 1968. Eu não estaria aqui se não fosse o diretor. Com a luta, nós vemos que é possível. Na universidade, fui excluída por ser pobre, ninguém me cumprimentava, mas eu seguia.”
Terezinha é voluntária desde a década de 80, teve quatro filhos com seu marido que há cinco anos faleceu, e hoje vive sozinha, mas dedica-se ao abrigo feminino e ao trabalho de fisioterapia. “O trabalho voluntário não é tempo gasto. Nós ganhamos por ajudar. O objetivo é ver uma comunidade mais feliz”, diz a fisioterapeuta.
O Abrigo Feminino Casa Santa Clara conta com o trabalho voluntário de cerca de 35 pessoas, entre digitadores, diretores e mantenedores. Parte do grupo fica em São Paulo, cerca de 16 pessoas, que contribuem com o abrigo arrecadando fundos para a entidade. Eles vão de loja em loja procurar cupons fiscais. “A verba da prefeitura, as doações e os mantenedores não cobrem todas as despesas. Em abril, conseguimos R$ 13 mil só de cupons arrecadados. Precisamos de mais voluntários e mais doações”, apela Terezinha, que comemora a criação de um site para o abrigo, previsto para entrar no ar ainda em 2015. A expectativa é aumentar a visibilidade, tornar-se mais conhecida e conseguir atender as mulheres de rua que precisam da ajuda voluntária das pessoas.
A elaboração do site é parte do trabalho de Rita Lunardi, jornalista e professora de Marketing da PUC-Campinas. Ela desenvolve com a direção da Cáritas um projeto de Extensão em Comunicação Integrada, pela PUC-Campinas, capacitando voluntários para serem divulgadores da Cáritas Arquidiocesana de Campinas. “O trabalho da entidade é sério e de muita dedicação. Os resultados são vidas que se transformam.”
Bela reportagem , me emocionei ao imaginar um lugar onde mulheres aprendem a conhecer o seu melhor , o respeito a autonomia é tão importante para realizações pessoais , parabéns as mulheres que fazem a diferença na vida de outras mulheres e delas mesmas.
abç
Heloisa Bertasoli
Muita linda mesmo essa reportagem!!
Precisamos ajudar mais e criticar menos.
Parabéns à todos (voluntários, meninas, mães, etc.
Abçs
Elisabeth Boldrini
Deus abençoe, de muita força, fé e coragem à Caritas, ao coordenador , técnicos e funcionários, para que juntos possamos alcançar a vitória tão esperada e acreditada que é a inclusão de cada uma das moradoras
Eu tenho orgulho de fazer parte desta luta
Parabéns e boa sorte a todas vocês!!!!
Obrigada, Rosana, pela mensagem e pelo incentivo! Contamos com sua leitura aqui, sempre. Abraço
Boa tarde, alguém tem o endereço ou telefone da Casa? Gostaria de me juntar aos voluntários.
Olá Leandro. Desculpe pela demora. Você pode ligar no número 32372631, falar com a Zezé. Boa sorte e obrigada pela mensagem. Abs