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Pama Loiola, a reconfiguração do popular, do tradicional e do moderno
Pama Loiola em seu ateliê recheado de memórias e desejo do novo (Foto Martinho Caires)

Pama Loiola, a reconfiguração do popular, do tradicional e do moderno

Por José Pedro Martins

É preciso descer uma escada para chegar ao ateliê, localizado portanto abaixo do nível da rua. São doze degraus, como os meses do ano que indicam a retomada permanente de ciclos. Senhas para a entrada no universo artístico de Pama Loiola, uma pesquisadora incessante, que vai fundo, desce abaixo da terra, na busca de novos materiais e formas, mas sempre em respeito às próprias raízes e às matrizes culturais brasileiras. Uma amostra de sua estética particular, comovente, está na Exposição Relicarium, que fica até o dia 18 de abril na Enoteca Decanter, no Gramado Mall, em Campinas (Alameda dos Vidoeiros, 455).

O ateliê é um canto aconchegante que resume a trajetória dessa artista cuja evolução demonstra uma preocupação permanente com o novo, mas sem esquecer, nunca, os pés plantados no chão de Sacramento, no Triângulo Mineiro. A arte de Pama Loiola não cabe na tela, esta talvez possa ser uma síntese para a sua trajetória.

Obra da fase inicial na trajetória da artista, sinalizando a ânsia de novas formas para o tradicional (Foto Martinho Caires)

Obra da fase inicial na trajetória da artista, sinalizando a ânsia de novas formas para o tradicional (Foto Martinho Caires)

Os sinais de que ela não temeria trilhar caminhos muito próprios, blindados em relação a modas e estilos padronizados, foram emitidos já em sua formação em Artes na década de 1970 na Unaerp, em Ribeirão Preto, cidade referência para muitos mineiros, do Triângulo ao Sul das Gerais.

No ateliê ela mantém algumas obras dessa época. Não são telas com o figurativo típico de muitos artistas em início de carreira. São pinturas em que os personagens não são retratados de modo exatamente realista, embora alguns temas evoquem as origens tradicionais de muitas famílias mineiras, com forte presença das manifestações de religiosidade popular. Um traço que ela manterá, apesar da metamorfose constante que vai caracterizar o seu repertório.

Algumas das peças que a artista colecionou em suas viagens, como um "Grito" e um "Beijo" (Foto Martinho Caires)

Algumas das peças que a artista colecionou em suas viagens, como um “Grito” e um “Beijo” (Foto Martinho Caires)

A formação sólida implicou em um mergulho de cabeça na história da arte. “Eu sabia muito dessa história, mas depois essas referências foram ficando distantes”, lembra Pama, que continua, entretanto, apreciando o que grandes nomes fizeram. Ela guarda com carinho em seu estúdio, por exemplo, pequenas peças com releituras de “O Grito”, de Munch, e “O Beijo”, de Klimt, objetos que trouxe de suas viagens à Europa.

Passo importante para a formação da artista foi a mudança para Salvador, em função das obrigações profissionais do marido. “Liberdade é a palavra que designa Salvador. Lá você pode viver como quer e desenvolver e apresentar a sua arte do jeito que achar melhor”, ela conta, salientando o ambiente propício à pesquisa, à experimentação.

Obra que espelha a influência das pinturas rupestres do norte de Minas Gerais (Foto Martinho Caires)

Obra que espelha a influência das pinturas rupestres do norte de Minas Gerais (Foto Martinho Caires)

E desde a capital baiana Pama foi aprofundar seu próprio trabalho com os estudos sobre a arte rupestre, sobretudo a do Vale do Peruaçu, no norte de Minas Gerais. Com o apoio de profissionais da Sociedade Brasileira de Espeleologia, ela fez várias incursões ao Parque Nacional Cavernas do Peruaçu, onde estão situadas cerca de 140 cavernas, entre os municípios de Januária e Itacarambi. O rio Peruaçu é um afluente do São Francisco, o rio tão castigado e tão vital, em termos materiais e espirituais, para tanta gente de cinco estados brasileiros.

Neste importante conjunto de sítios arqueológicos abrigado em terras brasileiras, há evidências de presença humana de 11 mil anos atrás. O Parque Nacional foi criado em 1999, com o objetivo de proteger a riqueza natural e cultural ali presente e que, como tudo o que diz respeito a patrimônio histórico no Brasil, sempre está sujeita a riscos e violações.

Frases por todo lado, a escritura como inspiração (Foto Martinho Caires)

Frases por todo lado, a escritura como inspiração (Foto Martinho Caires)

Aquela tendência inata de Pama Loiola, de ser fiel às raízes, às origens, não poderia encontrar condições melhores para florescer. Assim como havia mergulhado na história da arte, agora teve oportunidade de fazer uma imersão ao vivo na própria pré-história da criação. E sem dúvida esse banho de passado, de imemorial, marcou a sua identidade artística e pessoal. Pama credita muito de sua ânsia por novas texturas, novas perspectivas, a essa fase em que se dividiu entre Salvador e o norte de Minas Gerais.

E se aquela arte rupestre, impressa nas paredes das cavernas e que até hoje assombra pesquisadores e visitantes, fez parte da gênese da expressão estética da humanidade, Pama acabou levando aquele desejo de permanência no tempo para o seu próprio espaço de criação, para a sua própria existência. Quase todas as paredes do seu ateliê contêm frases, de sua própria autoria ou de nomes como Mário Quintana, com impressões de momento, reflexões, pensamentos sobre a vida e a arte.

Uma pedra no meio do caminho que se transformou na primeira assemblagem de Pama Loiola (Foto Martinho Caires)

Uma pedra no meio do caminho que se transformou na primeira assemblagem de Pama Loiola (Foto Martinho Caires)

“A materialidade e a poética não se separam”, diz uma dessas frases, como um resumo da nova estética que está despertando especial interesse no momento para a artista, moradora em Campinas há cerca de 20 anos. É a assemblagem, um gênero que é praticado sim em muitas partes do Brasil, mas que ainda não recebeu a devida valorização.

Trata-se de uma mistura, um mix, de muitas fontes onde a artista vai buscar sua inspiração. Fotografias, pedras, notícias de jornal, miçangas, enfim, uma infinidade de objetos que ela mistura, rearranja, reconfigura, para dar origem a um novo objeto, uma obra de arte. Uma estética privilegiada para a vocação já citada para combinar o novo, o contemporâneo, com as origens mais profundas de uma comunidade, de uma cidade, de um povo.

Objetos diversos que, costurados, adquirem novas formas e novos sentidos (Foto Martinho Caires)

Objetos diversos que, costurados, adquirem novas formas e novos sentidos (Foto Martinho Caires)

No ateliê, abaixo da rua, onde se chega por uma escada de doze degraus, Pama Loiola guarda várias caixas e outros recipientes com pequenos e grandes objetos que poderão vir a se transformar em arte, em uma nova assemblagem. A primeira obra que ela produziu com esse viés está lá, a partir de uma pedra que encontrou pelo caminho.

Até móveis presentes no cotidiano de tantas pessoas são ressignificados pela técnica cada vez mais refinada de Pama. “Fragmentos do Matrimônio” é o título de uma dessas obras, a partir de um armário redesenhado. Outro, “Criado Mudo”, é uma obra premiada em salão em Sorocaba.

"Criado Mudo", o objeto ressignificado que fala (Foto Martinho Caires)

“Criado Mudo”, o objeto ressignificado que fala (Foto Martinho Caires)

Peças especiais nessa linha são as malas que a artista reformatou. As malas que representam o sonho humano da mobilidade, da procura incessante por novas paisagens, naturais, culturais e existenciais. As malas que a artista deu novo sentido com os itens que ela realinhou. “Camarim” e “Mala dos afetos” são destaques nesse âmbito.

“Mala dos afetos” adquiriu uma relevância ainda maior para ela, quando percebeu, ao final do trabalho, que a criação ficou muito parecida com um quadro de Santo Antônio que a avó mantinha, em Sacramento. Em volta do santo, a avó ia colando fotos de membros da família, a quem pedia proteção especial. A “Mala dos afetos” ficou muito parecida, com exceção da coleção de cartas que ela guarda. Cartas para o marido, então namorado, e de outras e para outras pessoas. A escrita, de novo, como uma inspiração, como aquela que nossos antepassados deixaram em cavernas na noite dos tempos.

"Mala dos Afetos", evocando avós e cartas do coração (Foto Martinho Caires)

“Mala dos Afetos”, evocando avós e cartas do coração (Foto Martinho Caires)

A lembrança da avó reforça uma visão que a curadora Ligia Testa (responsável por levar a artista à Decanter) tem de Pama Loiola e sua obra. “Ela evoca a religiosidade, a afetividade, do interior de Minas Gerais, e transforma em algo contemporâneo, dá um novo sentido ao antigo. Ela muda a saudade em arte”, resume a curadora.

Pama volta sempre a Sacramento, onde permanecem muitos familiares. “Vou me reabastecer de energia”, a artista confessa. Momento especial é a Folia de Reis, que continua visitando as casas das pessoas e com as bandeiras onde votos e doações são anexados, em ato de muita fé e esperança. O carinho com o popular é imenso em Pama Loiola. Ela faz questão de participar da Bienal Naifs, em Piracicaba, e tem um projeto muito próprio de documentar a assemblagem que é feita em todas as regiões brasileiras.

É essa inquietação que ela apresenta em suas obras expostas até o dia 18 de abril na Enoteca Decanter, no Gramado Mall, em Campinas.

Tintas, pinceis, frases: companhias da artista (Foto Martinho Caires)

Tintas, pinceis, frases: companhias da artista (Foto Martinho Caires)

 

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