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Documento chave da outorga do Cantareira “isenta” governo e Sabesp pela crise hídrica
Cantareira secou em 2014: mudanças climáticas e desafios para a gestão (Foto Adriano Rosa)

Documento chave da outorga do Cantareira “isenta” governo e Sabesp pela crise hídrica

O documento chave que está orientando o processo de renovação da outorga do Sistema Cantareira “isenta” o governo paulista e a Sabesp de responsabilidade na crise hídrica de 2014 e 2015, apesar do evidente despreparo para enfrentar a forte estiagem que quase levou a uma catástrofe no abastecimento de água na região mais rica e populosa do país. Pelo calendário do processo de renovação da outorga, que acontecerá até maio de 2017, está terminando nesta quinta-feira, dia 30 de junho, o prazo para a apresentação de sugestões, por parte dos órgãos do sistema de gestão das águas na região de Campinas e Piracicaba, ao documento de referência, formulado pela Agência Nacional de Águas (ANA) e Departamento de Águas e Energia Elétrica (DAEE).

O Sistema Cantareira entrou em operação em 1974. Foi a solução encontrada durante o regime militar para abastecer a Grande São Paulo, então em fase explosiva de crescimento. O Cantareira abrange um conjunto de reservatórios, construídos entre o Sul de Minas Gerais e a região de Bragança Paulista, com águas retiradas das nascentes da bacia do rio Piracicaba. As águas são transportadas, por um conjunto de canais e túneis, para a bacia do rio Juqueri, de onde ocorre a transposição para a bacia do Alto Tietê, onde está a Grande São Paulo.

A primeira outorga para a Sabesp gerenciar o Cantareira durou até 2004 e estipulava a autorização de retirada de até 31 metros cúbicos, ou 31 mil litros por segundo, para abastecer cerca de metade da Grande São Paulo. Para a própria bacia do rio Piracicaba, na região de Campinas, passaram a ser liberados até 5 metros cúbicos por segundo.

Em 2004 aconteceu a primeira renovação da outorga do Cantareira, desta vez pelo prazo de 10 anos. Foram estabelecidos na época pela portaria 1213/2004, várias condicionantes para a Sabesp continuar gerenciando o Sistema. O cumprimento dessas condicionantes é comentado no documento da ANA e DAEE, com os dados de referência para a renovação da outorga, que deveria acontecer em agosto de 2014 mas acabou sendo adiada para maio de 2017 em função da crise hídrica.

Condicionantes de 2004 –  O documento da outorga de 2004 previa sete condicionantes para a Sabesp continuar administrando o Cantareira. A avaliação da ANA e DAEE sobre o cumprimento delas representa, na prática, uma “isenção de responsabilidade” da Sabesp – e consequentemente do governo paulista – na crise hídrica de 2014 e 2015.

Uma condicionante estipulava a implantação, manutenção e operação de uma rede de monitoramento com estações fluviométricas e limnimétricas no Cantareira. Segundo a ANA e DAEE, a elaboração de programa de implantação de estações de monitoramento de quantidade e qualidade foi atendida pela Sabesp, nos termos do relatório “Redes de Monitoramento Quantidade/Qualidade de Água no Sistema Cantareira”, de 4 de maio de 2005.

Outra condicionante referia-se à atualização das curvas cota-área-volume dos reservatórios do Sistema Cantareira, no prazo de 12 meses (portanto, até agosto de 2005), refazendo, posteriormente, as Curvas de Aversão a Risco. Devido aos problemas ocorridos nos processos licitatórios, a Sabesp solicitou prorrogações de prazo para o atendimento a esta condicionante em 2006, 2007 e 2008.

De acordo com o documento da ANA e DAEE, “a dilação de prazos para a conclusão dos levantamentos de campo para a atualização das curvas cota-área-volume acabou estendendo, também, o atendimento aos artigos 11 e 14, até 2009. O Relatório da Sabesp de título “Equações Consolidado Cota x Área x Volume – Sistema Cantareira – Contrato nº. 22541/06C”, encaminhado ao DAEE em 30/06/2008 e executado pela empresa “Azimute Engenheiros Consultores S/C Ltda.”, atende ao solicitado na condicionante”.

Mais uma condicionante tratava da revisão dos estudos hidrológicos e hidráulicos para verificação da capacidade das estruturas extravasoras relativamente às vazões de cheia de projeto (considerando as restrições de vazões para jusante das barragens), no prazo de 12 meses, portanto também até agosto de 2005.

Conforme o documento de ANA e DAEE, em vista dos atrasos para atendimento da atualização das curvas cota-volume, “a Sabesp desenvolveu parte da revisão dos estudos hidrológicos e hidráulicos das barragens do Sistema Cantareira, numa primeira fase, até o final de 2008. Em 2009, o DAEE solicitou complementações, que foram apresentadas em outubro de 2009. Após análises do DAEE e da ANA, os relatórios, em suas versões finais, foram entregues em maio de 2010″. A condicionante teria sido, então, cumprida, embora também fora do prazo estipulado inicialmente no momento de renovação da outorga, em agosto de 2004.

Uma quarta condicionante previa a assinatura de um Termo de Compromisso (da Sabesp em conjunto com municípios e entidades operadoras dos serviços de saneamento na área do Comitê PCJ) estabelecendo metas, para os próximos 10 (dez) anos, portanto até 2014, de tratamento de esgotos urbanos, de controle de perdas físicas nos sistemas de abastecimento de água e de ações que contribuam para a recarga do lençol freático.

O Termo de Compromisso deveria ser firmado em até 90 (noventa) dias da publicação da outorga, por proposta do Comitê PCJ. O Termo de Compromisso, firmado por Sabesp e municípios (não operados pela concessionária), com metas de tratamento de esgotos, foi assinado em 23 de dezembro de 2004, com um primeiro Termo aditivo firmado em 11 de maio de 2006. “O controle e acompanhamento desta condicionante estão sendo efetuados no âmbito dos Comitês PCJ”, afirma o documento de ANA e DAEE.

A quinta condicionante indicava a manutenção, pela Sabesp, de programas permanentes de controle de perdas, uso racional da água, combate ao desperdício e incentivo ao reuso de água, apresentando, anualmente, relatórios ao DAEE e à ANA que disponibilizariam os dados ao Comitê das Bacias Hidrográficas do Alto Tietê e dos Rios Piracicaba, Capivari e Jundiaí. Com a entrega em 29 de dezembro de 2005 do relatório “Programa de Redução de Perdas, Alto Tietê e PCJ – Plano 2006 a 2014 – dez/05”, ANA e DAEE consideraram atendida esta condicionante.

Cantareira operou com o uso do Volume Morto durante a crise hídrica (Foto Adriano Rosa)

Cantareira operou com o uso do Volume Morto durante a crise hídrica (Foto Adriano Rosa)

As outras duas condicionantes tem relação direta com a forma como foi gerenciada a crise hídrica em 2014 e 2015 pela Sabesp e governo paulista. Uma delas demandava a elaboração de Plano de Contingência, em articulação com DAEE, ANA e CBHs PCJ e AT, no prazo de 12 meses, ou seja, até agosto de 2005.

ANA e DAEE consideram que, “em vista de sua dependência com a revisão das curvas cota-volume dos reservatórios (concluídas em 06/2008), dos estudos hidrológicos e hidráulicos, das verificações das curvas de descarga das estruturas hidráulicas e das análises de volumes de espera e vazões de restrição, concluídos em 2009, o prazo fixado se mostrou impraticável”.

Com isso, a Sabesp apresentou seus planos de contingência para todos os aproveitamentos componentes do Sistema Cantareira (barragens e seus reservatórios) posteriormente ao prazo original. Entretanto, após as chuvas intensas e persistentes, de caráter extraordinário, que se abateram sobre a região Sudeste ao final daquele ano e no princípio de 2010, novos estudos sobre as regras operacionais dos reservatórios foram desenvolvidos.

Após as chuvas do início de 2010, DAEE, ANA e Sabesp, ouvindo os Comitês PCJ, deram prosseguimento a entendimentos visando estabelecer critérios, limites e formas de operação dos aproveitamentos do Sistema Cantareira para o período de cheias 2010 – 2011, continua o documento dos órgãos nacional e estadual. Após novos entendimentos, ANA e DAEE assinalam que, “em função da evolução tecnológica das operações dos aproveitamentos do Sistema Cantareira e da nova versão de plano de contingência produzido pela Sabesp, considera-se atendida a condicionante expressa no Art. 11 da Portaria DAEE nº. 1.213/2004″, apesar da evidente ausência de um plano de contingência durante os momentos mais profundos da crise hídrica em 2014, quando houve o recurso à utilização do Volume Morto para assegurar a continuidade do abastecimento na Grande São Paulo que, entretanto, aconteceu de forma irregular em várias regiões. Um efetivo plano de contingência eliminaria ou atenuaria muitos dos transtornos ocorridos em 2014, devidamente registrados pela imprensa nacional e internacional.

Outra condicionante previa providências da Sabesp para realização de estudos e projetos que viabilizassem a redução de sua dependência do Sistema Cantareira, considerando os Planos de Bacia dos Comitês PCJ e AT, no prazo de 30 meses, isto é, até, até janeiro de 2007. Em 2006, informa o documento-base da renovação da outorga do Cantareira, a Sabesp apresentou ao DAEE o Plano Diretor de Abastecimento de Água da RMSP – PDAA, com horizonte de planejamento de 2025 para a região do Alto Tietê e suas vizinhanças.

O relatório, a partir de estudos de evolução da população e das demandas na RMSP, notam ANA e DAEE, analisava “as possibilidades de expansão dos sistemas existentes, bem como a incorporação de novos mananciais, sintetizando as ações necessárias de curto, médio e longo prazos”. Com isso, a Sabesp pretendia atender à condicionante.

Entretanto, a avaliação do DAEE foi que o PDAA não considerou o atendimento às demandas das Bacias PCJ e somente às da RMSP e, portanto, não atendia plenamente ao anseio expresso na condicionante, conforme ofício DPO nº. 2.963/2007, de 03 de outubro de 2007. Em decorrência, o Governo do Estado de São Paulo “decidiu por promover estudos mais abrangentes compreendendo as bacias do Alto Tietê e Piracicaba, Capivari e Jundiaí e também as regiões circunvizinhas”.

Foi então encomendado um novo estudo, relacionado à Macrometrópole Paulista, tendo sido contratado pelo DAEE, em novembro de 2008, com o título “Plano Diretor de Aproveitamento de Recursos Hídricos para a Macrometrópole Paulista” e executado pela COBRAPE – Cia. Brasileira de Projetos e Empreendimentos.

ANA e DAEE notam que, na página 24 do Sumário Executivo desse estudo, “encontra-se o exame dos arranjos alternativos à luz do atendimento à exigência da condicionante constante do artigo 16 da Portaria de outorga do DAEE. De acordo com o documento, embora não estivesse explícito na expressão utilizada no artigo 16 da mencionada Portaria, a intenção foi a de buscar alívio à situação de “estresse hídrico” nas bacias PCJ, aumentando as vazões disponibilizadas nessas bacias”.

O incremento de água nas bacias PCJ poderia ser atendido basicamente por meio de três medidas, não excludentes e não sequenciais: Redução da transferência das águas do Sistema Cantareira para São Paulo; Transferência de águas de outro manancial para a bacia do Piracicaba (ou Sistema Cantareira); e Construção de reservatórios de regularização na bacia do Piracicaba, aumentando as disponibilidades hídricas durante a estiagem.

O próprio estudo afirmava que a primeira medida, de redução de transferência das águas do Cantareira (e portanto da Bacia do Piracicaba) “não é recomendada, a priori, por absoluta necessidade de água para o suprimento de uma metrópole situada nas cabeceiras das bacias hidrográficas, sendo cada vez mais inevitável sua dependência aos mananciais externos”. As outras duas medidas, destacam ANA e DAEE, são contempladas pelo menos uma vez por todos os dez arranjos estudados no Plano Diretor, visando internalizar o estabelecido na condicionante do artigo 16 da Portaria de outorga.

ANA e DAEE consideram que “a Sabesp vem desenvolvendo projetos e promovendo parcerias para fazer frente aos investimentos necessários à implementação das soluções apontadas pelos estudos”, o que significaria que a empresa estatal teria cumprido a condicionante de redução de sua dependência do Sistema Cantareira.

De novo, entretanto, o desdobramento da crise hídrica, em 2014 e início de 2015, deixou evidente que continua a dependência do Cantareira para abastecimento da Grande São Paulo. Foram iniciadas, sim, várias obras para assegurar novas fontes de abastecimento da Grande São Paulo, mas somente quando já estava absolutamente crítico o quadro no Cantareira, inclusive com o recurso de uso do Volume Morto.

Somente com o acirramento da crise, foram também iniciados os procedimentos para executar a terceira medida proposta no estudo para a Macrometrópole Paulista, a de “Construção de reservatórios de regularização na bacia do Piracicaba, aumentando as disponibilidades hídricas durante a estiagem”. No caso, trata-se das barragens de Pedreira e Amparo, nos rios Jaguari e Camanducaia, que está em processo de discussão e licitação e com prazo de pelo menos três anos de execução.

Em síntese, houve demora por parte da Sabesp no cumprimento da maioria das condicionantes estabelecidas em 2004. Apesar de tudo, e dos impactos da crise hídrica de 2014 e 2015, quando boa parte da Região Sudeste passou por forte estiagem, o documento chave para a renovação da outorga do Cantareira “isenta” a estatal paulista de responsabilidade pelos transtornos registrado no período.

"Cemitério" de carros no Cantareira seco: alternativas para ampliar abastecimento são urgentes em São Paulo  (Foto Adriano Rosa)

“Cemitério” de carros no Cantareira seco: alternativas para ampliar abastecimento são urgentes em São Paulo (Foto Adriano Rosa)

Propostas dos Comitês PCJ – Termina nesta quinta-feira, dia 30 de junho, o prazo para os Comitês PCJ e do Alto Tietê e demais órgãos envolvidos apresentarem propostas ao documento de referência de renovação da outorga do Cantareira. Na última sexta-feira, dia 24, os Comitês PCJ ratificaram e mantiveram a proposta original oficial das Bacias PCJ – e portanto da região de Campinas e Piracicaba – para renovação da outorga do Cantareira, em reunião realizada na cidade de Extrema, no sul de Minas Gerais. Deste modo, a região manteve a solicitação de garantir vazão média anual de 10m³/s para as Bacias PCJ, liberadas a partir das barragens do Sistema Cantareira, quando o volume útil operacional estiver entre 20% e 85%.

Essa vazão representa o dobro permitido pela última portaria de renovação 1213/2004, que prevê 5 m³/s para a região. Atualmente, diante do estresse hídrico em decorrência da crise hídrica 2014/2015, a ANA limitou ainda menos para as Bacias PCJ, sendo permitido o envio de no máximo 3,5 m³/s, com o objetivo de recuperar os reservatórios do Cantareira.

Outras regras sugeridas pelas Bacias PCJ consistem na gestão por faixas de armazenamento de água nos reservatórios. Assim, quando o volume útil estiver igual ou abaixo de 20% e igual ou acima de 85% a gestão será realizada por organismos gestores, no caso, ANA e o Departamento de Água e Energia Elétrica do Estado de São Paulo (DAEE), com regras definidas previamente garantindo a liberação de vazões mínimas à jusante do Sistema Cantareira que não comprometam o regime, a quantidade e a qualidade da água.

Também foi ratificado na reunião dos Comitês PCJ, em Extrema, segundo comunicado do Consórcio PCJ, que o prazo de validade da nova outorga do Sistema Cantareira será de 10 anos, com revisão obrigatória da proposta a quando se completar cinco anos da emissão da mesma. O documento destaca ainda que caso as barragens de Amparo e Pedreira não sejam construídas até 2020, a partir desse ano deverá ser acrescido 1m³/s anualmente a vazão enviada pelo Sistema Cantareira para as Bacias PCJ. (Por José Pedro Martins)

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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