O pensamento conservador “saiu do armário” no debate sobre algumas questões ligadas aos direitos da população afro-brasileira, como as cotas para etnias em universidades e reconhecimento das terras quilombolas. A afirmação é da ex-ministra da Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial, Matilde Ribeiro, e foi feita na manhã desta quarta-feira, 3 de dezembro, em discussão na Câmara Municipal de Campinas sobre a Lei 10.639, que dispõe sobre a obrigatoriedade do ensino da história e cultura africanas e afro-brasileiras em todas as escolas do país.
Matilde era ministra quando foi editada a Lei, a 10 de janeiro de 2003. Foi portanto uma das primeiras leis com a assinatura de Lula. “O presidente Lula encontrou um instrumento legal que é fruto de séculos de luta do movimento negro, que aliás começou quando o primeiro africano escravizado pisou no país, como lembrava Abdias Nascimento”, afirmou a ex-ministra, citando um dos ícones da mobilização da comunidade afro-brasileira.
Para Matilde Ribeiro, a Lei 10.639 já ensejou “iniciativas importantes”, mas ainda não foi aplicada em sua totalidade, de Norte a Sul na rede escolar brasileira. Para ela, ainda falta a revisão de livros didáticos e a capacitação de professores, entre outros desafios para a efetivamente implementação da lei.
De qualquer modo, ela considera fundamental essa implementação, pela contribuição da lei em termos de “desmontar as mentiras históricas sobre a presença do africano escravizado no Brasil”. “Mentiras como as de que os negros não lutaram por sua liberdade, que os negros não gostam de trabalhar, entre outras”, disse.
A ex-ministra observou que a Lei 10.639 integra um “conjunto de medidas tomadas recentemente pelo Estado brasileiro, na linha de reconhecer o racismo no país e de buscar a sua superação”. Ela lembrou que, após a Abolição da Escravatura, em 1888, a primeira lei que de fato beneficiou os afro-brasileiros foi a Lei Afonso Arinos, de 1951, proibindo a discriminação, “mas que não veio acompanhada de um programa real de inclusão”.
Um marco se deu em 1955, observou, com os estudos de Florestan Fernandes e Roger Bastide, “reivindicando políticas públicas efetivas para a superação do racismo e inclusão da população negra”, afirmou Matilde. Somente em 1988, contudo, os direitos de igualdade foram consagrados na Constituição, incluindo os direitos das comunidades quilombolas a suas terras.
“O Brasil tem cerca de 5 mil comunidades quilombolas, sendo cerca de 3.500 identificadas pela Fundação Palmares, mas somente pouco mais de 100 já estão devidamente regularizadas”, destacou a ex-ministra, ilustrando as dificuldades de execução dos direitos previstos na própria Constituição. Para ela, o pensamento conservador “saiu do armário” no momento do debate sobre questões como as comunidades quilombolas e as cotas raciais. No caso dos quilombos, “são áreas muito cobiçadas pela especulação imobiliária”, ressaltou.
A polêmica sobre as cotas raciais nas Universidades, para Matilde, é outro exemplo da reação do pensamento conservador. “As cotas são uma oportunidade para quem sempre foi excluído de seus direitos”, salientou. A ex-ministra citou a “lógica perversa da educação no Brasil, pela qual o pobre estuda em escola pública e, depois, é obrigado a pagar para frequentar a Universidade, enquanto o contrário acontece com os privilegiados, que estudam em escolas particulares e vão frequentar as melhores Universidades públicas”.
Na opinião da ex-ministra, o racismo é “uma forma de manutenção do poder, de manutenção do status quo”. A violência contra a população negra está inserida nesta lógica, afirmou. Matilde Ribeiro comentou as recentes eleições gerais, que reiteraram a sub-representação da população negra, e também das mulheres e indígenas, no Congresso Nacional.
Foram eleitos 106 deputados que se declararam negros (pretos+pardos), somando 20,7% dos eleitos. Foram eleitos cinco senadores negros e 22 brancos. No total, o Congresso terá 20,5% de negros, sub-representação em relação aos 52% da população que se declararam negros no Censo de 2010. Os partidos que mais elegeram negros para a Câmara foram o PT (18), PSB (10), e PRB (10). Os cinco senadores negros eleitos são do PT, PSB, PP, PDT e DEM. Não foi eleito nenhum indígena para o Congresso. Outro segmento sub-representado é o dos jovens. Somente 4,3% dos eleitos têm menos de 29 anos.
Para Matilde Ribeiro, “o conjunto das instituições admite o racismo mas não sai da retórica, e com isso nos partidos, por exemplo, na luta interna cabem alguns nichos para os negros, como algumas secretarias, mas ainda não chegamos ao topo, à direção concretamente”.
O debate sobre a Lei 10.639 foi promovido pelo vereador Carlão do PT. Recentemente o vereador foi eleito presidente da Comissão Especial de Estudos (CEE) criada na Câmara para avaliar a implementação da Lei 10.639 em Campinas.
Após a discussão na Câmara, Matilde se encaminhou para a Fazenda Roseira, onde participou de almoço e roda de conversa e, à noite, lançaria o seu novo livro, “Políticas de Promoção da Igualdade Racial no Brasil (1986-2010)”, editado pela Garamond.
Matilde Ribeiro foi ministra da Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial entre 2003 e fevereiro de 2008. Atualmente, é professora da Universidade da Integração da Lusofonia Afro-Brasileira (Unilab), que apoia a integração dos países africanos de língua portuguesa: Moçambique, Angola, Cabo Verde, Guiné Bissau e São Tomé e Príncipe. (Por José Pedro Martins)