Por José Pedro Soares Martins
Ele servia ao exército dos Estados Unidos quando, um dia, viu um caminhão passando com uma cruz na carroceria. Leu a imagem como um sinal e resolveu que seria sacerdote para atuar entre os mais pobres. Tornou-se jesuíta pelo sentido missionário que a ordem fundada por Inácio de Loyola carrega. Depois de um trabalho de 12 anos com jovens marginalizados, atendidos na organização Our Lady`s Youth Center, que criou na cidade de El Paso, ele viajou ao Brasil e chegou no início de 1964 a Campinas, onde criaria cursos e serviços que alcançaria milhões de pessoas. Essa é uma síntese, entre tantas possíveis, da trajetória do Padre Haroldo Rahm, falecido na tarde deste sábado, 30 de novembro. Aos 100 anos de uma vida intensa, em uma biografia que inclui a rápida e ampla expansão da Renovação Carismática, movimento que mudou a Igreja Católica no Brasil.
Momentos da biografia do Padre Haroldo, nascido no Texas, e de sua atuação social em Campinas foram descritos nos meus livros “FEAC – Biografia de um pacto social” (Editora Átomo), de 2005, e “FEAC 50 anos; uma história de inovação e solidariedade” (Arte&Escrita Editora), de 2014. O nome e a atuação do religioso aparecem com destaque nas duas obras porque a parceria e o apoio da Fundação FEAC foram determinantes para o êxito atingido pelas iniciativas do Padre Haroldo.
No dia 8 de dezembro de 1965, já muito envolvido com ações sociais em Campinas, onde tinha fundado por exemplo o Centro Kennedy, para a formação profissionalizante, o religioso apresentou um plano para desenvolvimento de atividades em área da Fazenda Vila Brandina (doada pelo casal Odila e Lafayette Álvaro para a FEAC).
Depois de muitas conversas, o plano foi aprovado e no dia 4 de maio de 1969 aconteceu a inauguração oficial, na casa-sede da fazenda, em um evento que contou com a participação de André Franco Montoro (então na Democracia Cristã) e sua esposa, a assistente social Luci Montoro. Estava selada a aliança do padre Haroldo e a Fundação FEAC, a instituição criada em abril de 1964, fruto de um movimento liderado por Eduardo de Barros Pimentel e Darcy Paz de Pádua, pela integração das obras sociais da cidade, em um modelo pioneiro e ousado até hoje.
As ações foram se multiplicando. Em poucos anos o Treinamento de Lideranças Cristãs (TLC), criado em 1965, envolveu 4 mil pessoas e o sucesso foi tão grande que logo foram criadas representações em Minas Gerais, Paraná e Bahia. Depois viriam, entre outras, o Amor Exigente (que se dilatou sob a direção de Mara Menezes) e a Federação Brasileira de Comunidades Terapêuticas (Febract), com ativa participação de Saulo de Monte Serrat.
O tratamento de dependentes químicos foi, de fato, uma das marcas da atuação do Padre Haroldo. Milhares, de várias partes do Brasil, passaram pelos cursos e clínicas que ele estruturou. Em 1998, foi co-fundador da Pastoral da Sobriedade. Mas também viriam serviços para meninos e meninas de rua e, ainda como resultado de encontros na Fazenda Vila Brandina, nasceu um centro social no Jardim Itatinga, que se transformou no Centro de Estudos e Promoção da Mulher Marginalizada (Cepromm).
Renovação Carismática – Ações impulsionadas pelo Padre Haroldo foram decisivas para a gênese e enorme crescimento no Brasil da Renovação Carismática Católica. Funcionaram como embrião as reuniões da Experiência de Oração no Espírito Santo, lançada com a participação de outro jesuíta, o padre Eduardo Dougherty. O livro “Batizados no Espírito”, publicado pelo Padre Haroldo na virada dos anos 1960/70, foi fundamental para alavancar o movimento.
Os Cursilhos de Cristandade, Grupos de Oração, Encontros de Casais e Grupos de TLC alimentaram a expansão da Renovação Carismática, que seguiu uma linha diversa de outra corrente fortalecida na Igreja Católica naquele período, a Teologia da Libertação, sob a influência de nomes como os brasileiros Leonardo e Clodovis Boff e o peruano Gustavo Gutiérrez.
Instituto Padre Haroldo – Em 1978 o Padre Haroldo fundou a entidade filantrópica “Associação Promocional Oração e Trabalho” (APOT). A APOT consolidou a atuação social do religioso, com ênfase no tratamento de dependentes químicos, em ações preventivas e em diversos cursos e oficinas. Em 2003, por exemplo, a APOT firmou parceria com Fundação Municipal de Educação Comunitária (Fumec), no âmbito da Educação de Jovens e Adultos (EJA).
Em 2006, a instituição foi reconhecida como uma das três melhores comunidades terapêuticas para recuperação de dependentes químicos do mundo. Padre Haroldo recebeu em Nova York o prêmio Harry Sholl Award durante a 23ª Conferência da Federação Mundial de Comunidades Terapêuticas.
Três anos depois o sacerdote deixaria a direção da APOT, que se tornou o Instituto Padre Haroldo, por decisão da nova direção, presidida por Luis Roberto Sdoia, que já colaborava há anos com o padre. Há alguns meses, a presidência do Instituto foi assumida por Lucia Decot Sdoia, esposa de Luis Roberto.
Lucia conta que tinha 15 anos quando participou de um curso em São Paulo, de uma das iniciativas criadas pelo Padre Haroldo. Quando ela e o marido se mudaram para Campinas, fizeram o TLC e entraram para a diretoria da APOT. “Padre Haroldo sempre foi um homem determinado, firme, exigente, alegre e amoroso e muito estudioso”, resume Lucia.
O Instituto Padre Haroldo atua hoje em vários eixos. Um deles, o da Educação e Prevenção, contempla o SCFV – Serviços de Convivência e Fortalecimento de Vínculos – Crianças e Adolescentes e o CCII – Centro de Convivência e Inclusivo Intergeracional, para Adolescentes, Jovens e adultos.
O SCFV desenvolve, na sede do Instituto, o Aprender Mais. Uma equipe de educadores desenvolve oficinas, vivências e atividades para crianças entre 6 e 14 anos. Uma equipe do Aprender Mais também implementa ações no Jardim Campo Belo, região de alta vulnerabilidade social. Já o CCII desenvolve projetos educativos e de convivência intergeracional com pessoas a partir de 15 anos. “Estes serviços contribuem para os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) da Agenda 2030, das Nações Unidas”, destaca Lucia Sdoia.
Os outros eixos do Instituto Padre Haroldo: Acolhimento Institucional e Residencial, Programa de Recuperação, Programa de Trabalho e Renda, TLC (o Instituto é sede nacional do TLC) e Projetos Sociais como GERE Costura – Marias cheias de graça (grupo de empreendedorismo em costura, desde 2016), Esporte no Campo Belo (parceria com o City Esperança, 2018 a 2019), Arte para as crianças (parceria com o Instituto Mahle, 2018 a 2019), Entre as malhas do Campo Belo (parceria com a FEAC, 2019), Comunicaí – agência jovem de comunicação (parceria com a FEAC, 2019) e Cultura Viva – o Instituto Padre Haroldo é fomentador do Cultura Viva na comunidade do Menino Chorão, no Campo Belo.
Através do Instituto que leva o seu nome, e sempre com o necessário apoio da comunidade, o legado do Padre Haroldo Rahm continua e continuará impactando a vida de muitos. Mais de 50 livros publicados, múltiplos serviços criados. Depois do velório no Paço Municipal, o corpo do religioso será enterrado às 17h30 deste domingo na Cripta do Mosteiro de Itaici, em Indaiatuba.