Por José Pedro Soares Martins
Campinas, 2 de fevereiro de 2021
“Três meses de atraso. Preciso da medicação pro meu filho!!!”, contou a mãe de um portador de hanseníase, moradora na região Sudeste. “Com o diagnóstico positivo no dia 22 de dezembro de 2020, sem entender da doença, mas com a consciência que é grave e que já está em um estado avançado, nos deparamos com a falta de medicamentos para iniciar o tratamento. Estamos nos sentido sem chão. Incapacitados. Paralisados. Enfim, estamos impotentes diante dessa situação, estamos desassistidos. Socooooorro!!!”, afirmou outra pessoa, familiar de pessoa do Nordeste, que soube recentemente ter a doença. “Já tem 30 dias de atraso. Estou no início do tratamento, seria minha terceira dose. Sinto muitas dores, não consigo ficar em pé por muito tempo pois tenho muitas dores nas pernas e nos pés. Não durmo direito. Tudo muito triste, fora o preconceito das pessoas”, declarou outro portador, morador na região Centro-Oeste.
Estes são apenas três entre centenas de relatos, de brasileiros de todas as regiões do país, confirmando uma das dolorosas consequências da pandemia de Covid-19 e que têm permanecido invisíveis para a sociedade em geral: o colapso na entrega de medicamentos aos portadores de hanseníase, que não têm conseguido dar sequência ao tratamento que, realizado da forma correta, garante a cura da doença, há séculos fonte de preconceito e isolamento social. O cenário devastador chegou ao conhecimento do Conselho de Direitos Humanos da ONU. Em comunicado divulgado em Genebra, na Suíça, no último dia 28 de janeiro, a Relatora Especial das Nações Unidas sobre a Eliminação da Discriminação contra as Pessoas Afetadas pela Hanseníase, Alice Cruz, advertiu que o “impacto desproporcionalmente negativo” da pandemia sobre as pessoas portadoras de hanseníase pode levar ao “retrocesso no controle e transmissão” da doença e também na “prevenção de deficiências”. Se não é diagnosticada e tratada a tempo, a hanseníase pode ser incapacitante e provocadora de graves sequelas nos afetados.
Relatos desde março de 2020
Datam de março de 2020, portanto já no início da pandemia de Covid-19, os primeiros relatos de que pessoas com hanseníase não estavam conseguindo acesso, em unidades do Sistema Único de Saúde (SUS), aos medicamentos usados na poliquimioterapia (PQT) empregada no tratamento da doença. A PQT prescrita pela Organização Mundial da Saúde (OMS) contempla medicamentos como rifampicina, dapsona e clofazimina.
Como as denúncias começaram a se intensificar, no dia 17 de agosto o Movimento de Reintegração das Pessoas Afetas pela Hanseníase e seus Familiares (Morhan) pediu providências ao Ministério da Saúde. “É importante salientar que a falta de medicamentos para tratamento de pessoas acometidas pela hanseníase é uma situação gravíssima, pois os mesmos podem ser prejudicados por problemas de incapacidade física e psicológica, o que historicamente temos combatido com muito esforço”, afirmou o coordenador nacional do Morhan, Artur Custódio, em carta encaminhada à Coordenação Geral de Hanseníase e Doenças em Eliminação do Ministério da Saúde.
Custódio citou no documento relatos recebidos de pacientes de cidades como Escada e Recife, em Pernambuco, e Aparecida de Goiânia, de Goiás. Mas as denúncias prosseguiram e no dia 3 de setembro a Sociedade Brasileira de Hansenologia (SBH) e o Morhan protocolaram representação junto ao Ministério Público Federal (MPF), solicitando instauração de inquérito civil para garantir a regularização do abastecimento de medicamentos para tratamento de hanseníase no país e responsabilizar o poder público por prejuízos causados à saúde e vida dos usuários que dependem do SUS. A representação foi protocolada pelo advogado integrante da Rede Jurídica e de Direitos Humanos do Morhan, Carlos Nicodemos.
Além disso, a Sociedade Brasileira de Hansenologia também encaminhou questionamento à Organização Mundial da Saúde (OMS), sobre se teria conhecimento da falta de medicamentos para tratamento da hanseníase. A OMS é a fornecedora da maior parte dos medicamentos utilizados na poliquimioterapia aplicada em acometidos pela doença.
Documento divulgado pela SBH informou que o comunicado à OMS foi feito no dia 28 de outubro de 2020. A resposta da Organização Mundial da Saúde chegou dois dias depois, com estas informações, segundo o documento da SBH: “1. Que a OMS estava ciente da falta de PQT no Brasil desde agosto de 2020; 2. Que a quantidade de PQT solicitada pelo Brasil à OMS era suficiente para tratar os pacientes de 2020; 3. Que havia problemas com o envio da PQT para o Brasil; 4. Que há problemas com o suprimento de antibióticos da PQT do fornecedor para a OMS; 5. Que espera que um novo envio seja feito ao Brasil por via aérea dentro de 10 dias, “para diminuir o impacto da falta de PQT nos pacientes brasileiros”; 6. Que a produção dos blisters continua, mas que a capacidade de produção permanece limitada e, finalmente; 7. Que não é somente no Brasil que há falta de PQT”.
No documento datado de 3 de novembro, o presidente da SBH, Claudio Guedes Salgado, declarou ser “inexplicável não haver um estoque de emergência de PQT tanto na OMS quanto no próprio Brasil, primeiro país no mundo na taxa de detecção de casos novos”. O Brasil é o segundo país em número de casos novos de hanseníase (cerca de 28 mil casos por ano), atrás da Índia, mas é o primeiro com as maiores taxas de infecção por 100.000 habitantes.
No documento, o presidente da Sociedade Brasileira de Hansenologia informou que havia “sinalização pela OMS de problemas com a produção de alguns dos antibióticos da PQT desde dezembro de 2019, se repetindo agora”. Também sustentou que “não há explicação” para o Ministério da Saúde “não ter ainda disponibilizado antibióticos substitutivos, tanto para os pacientes que ficaram sem a PQT convencional, como para os pacientes que não respondem à PQT”.
No dia 26 de novembro, a Coordenadoria Geral de Doenças em Eliminação (CGDE) do Ministério da Saúde, em webinário com serviços públicos de saúde das regiões Sul e Sudeste, alertou que a falta de medicamentos para tratamento da hanseníase no país seria agravada.
Alerta de relatora da ONU
Com a continuidade dos casos, o Morhan abriu um canal para receber relatos de pessoas com problemas para ter acesso aos medicamentos usados na poliquimioterapia de hanseníase. Esse canal aberto pelo Morhan é a fonte dos relatos citados no início da reportagem e cujos autores permanecem anônimos para garantir a sua privacidade. Alguns dos depoimentos foram reunidos em um vídeo produzido pelo Morhan, com relatos lidos por voluntários do Movimento.
O coordenador nacional do Morhan, Artur Custódio, alerta que, ao lado da gravidade da situação provocada pelo desabastecimento de medicamentos usados na PQT, outro elemento inquietante é a subnotificação de novos casos de hanseníase. “Com a desorganização dos serviços de saúde pela pandemia de Covid-19, o Brasil tem diagnosticado muito menos casos de hanseníase do que deveria”, sustenta Custódio, reforçando o temor de que os desarranjos nas políticas públicas relacionadas à hanseníase, no contexto da pandemia em curso, podem levar a graves retrocessos no combate à doença, como advertiu a relatora das Nações Unidas, Alice Cruz.
Em sua mensagem de 28 de janeiro de 2021, a relatora lembrou que, muito antes a pandemia de Covid-19, os acometidos pela hanseníase já sofriam com o isolamento social e o confinamento. “Inúmeras pessoas com
hanseníase foram isoladas das sociedades, embora nunca tenha havido evidências para apoiar tais políticas. Seus filhos foram separados dos pais e muitas vezes institucionalizados. E até hoje, permanecem esquecidos, sem
reparações ou uma vacina”, destacou a relatora, fazendo referência à política de separação dos filhos dos hansenianos, aplicada durante décadas pelo Estado Brasileiro, como já divulgou a Agência Social de Notícias (aqui).
Depois de salientar que a falta de distribuição e acesso aos medicamentos essenciais “está agravando tanto as deficiências quanto a transmissão e vem causando grande sofrimento” a acometidos pela hanseníase, Alice Cruz recordou que “a história da hanseníase mostra o quanto a discriminação e as desigualdades podem ser custosas, não apenas para os pacientes e seus familiares, mas também para as sociedades como um todo”.
A relatora das Nações Unidas concluiu: “Várias das violações e intersecções bem conhecidas pelas pessoas afetadas pela hanseníase – o medo da sociedade, a estigmatização, o isolamento e seu impacto na saúde mental, segregação, violência de gênero, racismo, xenofobia, entre outras – estão vindo à tona com a pandemia atual. Há muito a aprender com a história
da luta das pessoas afetadas pela hanseníase contra todas essas formas de
violência e discriminação. E a principal lição é que não há nenhuma
reconstrução melhor se os Estados não conseguem colocar aqueles deixados
para trás no centro da recuperação”.