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Aos 75 anos, Declaração Universal dos Direitos Humanos é desrespeitada todos os dias no Brasil
Violência no meio rural agride direitos humanos no Brasil (Foto Adriano Rosa)

Aos 75 anos, Declaração Universal dos Direitos Humanos é desrespeitada todos os dias no Brasil

Por José Pedro Soares Martins

Campinas, 9 de agosto de 2023

No dia 10 de dezembro de 2023 a Declaração Universal dos Direitos Humanos vai completar 75 anos. Para o Brasil, a lembrança do lançamento do documento mais importante do século 20, ainda repercutindo no século 21, coincide com um momento especial para a luta pelos direitos humanos, desrespeitados diariamente no país, em particular no caso das populações mais vulneráveis: mulheres, afrodescendentes, povos indígenas, quilombolas, trabalhadores rurais, população LGBTQIA+, crianças, adolescentes e pessoas idosas, entre outras. São essas populações que sofrem diversas modalidades cotidianas de violência, de acordo com informes de várias organizações oficiais e da sociedade civil, bem como lideranças históricas do movimento pelos direitos humanos, ouvidas pela Agência Social de Notícias.

A vulnerabilidade dessas populações a múltiplas formas de violação ficou evidente por ocasião de ações recentes, de iniciativa das duas organizações internacionais multilaterais mais importantes na área de direitos humanos: o Conselho de Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas (ONU) e a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), vinculada à Organização dos Estados Americanos (OEA). As duas ações ocorreram após a posse do governo do novo presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva.

Entre os dias 14 e 19 de maio, esteve no Brasil uma delegação oficial da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, visando o monitoramento da implementação de onze medidas cautelares concedidas anteriormente, para a proteção de povos indígenas e quilombolas, pessoas defensoras dos direitos humanos e LGBTQIA+, pessoas desaparecidas, adolescentes em conflito com a lei penal e pessoas privadas de liberdade. A delegação manteve contato com várias autoridades públicas, representantes dos grupos que foram objeto das medidas cautelares e locais como áreas indígenas e penitenciárias.

Ao final da visita, a delegação da CIDH reconheceu o “compromisso das novas autoridades do Estado brasileiro em cumprir as medidas cautelares e buscar fortalecer os canais de diálogo com as pessoas e comunidades beneficiárias e seus representantes, bem como implementar ações de proteção e mitigação dos riscos que levaram à concessão das medidas”. Em todas as situações que foram objeto das medidas cautelares a delegação da CIDH constatou a permanência de riscos para a população afetada.

Por outro lado, nos dias 26 e 27 de junho, durante sessão do Conselho de Direitos Humanos da ONU, em Genebra, Suíça, o Brasil foi interpelado a respeito do terceiro relatório periódico do governo federal sobre o cumprimento do Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos, um dos instrumentos que regulamentam a implementação da Declaração Universal dos Direitos Humanos.

A apresentação do terceiro relatório foi iniciada ainda no governo do ex-presidente Jair Bolsonaro e complementada no governo de Luiz Inácio Lula da Silva. Uma comissão de 18 peritos do Conselho de Direitos Humanos da ONU examinou os documentos  oficiais e recebeu relatórios de organizações da sociedade civil brasileira e a maioria de seus questionamentos se deu justamente em relação às medidas de proteção necessárias para as populações mais vulneráveis. Na avaliação dos peritos, as diferentes formas de violência contra essas populações tomaram proporções ainda maiores durante o governo de Jair Bolsonaro, opinião que coincide com os especialistas ouvidos pela Agência Social de Notícias.

Assembleia das Nações Unidas que aprovou a Declaração Universal dos Direitos Humanos, em 10 de dezembro de 1948 (Foto Site ONU/Reprodução)

Assembleia das Nações Unidas que aprovou a Declaração Universal dos Direitos Humanos, em 10 de dezembro de 1948 (Foto Site ONU/Reprodução)

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Momento de reconstrução

Para vários desses especialistas, o estágio da luta pelos direitos humanos no Brasil, no momento em que são lembrados os 75 anos da Declaração Universal, é de reconstrução. “É um momento de reconstrução, porque na verdade o governo de extrema-direita, de Jair Bolsonaro, desmontou toda a operacionalidade oficial de implementação de políticas de proteção aos direitos humanos no Brasil, construída após a Constituição Federal de 5 de outubro de 1988, a Constituição pós-ditadura militar de 1964 a 1984″, lembra Paulo Sergio Pinheiro.

Uma das principais referências no Brasil na temática dos direitos humanos,  Pinheiro é autor dos Princípios de restituição de moradia e propriedade para refugiados e deslocados internamente da ONU [Pinheiro Principles] e integrou a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), da Organização dos Estados Americanos (OEA). Pinheiro cita, entre outros, o caso da extinção pelo governo Bolsonaro da Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos Políticos (CEMDP), que havia sido criada em 1995, no governo de Fernando Henrique Cardoso, para investigar os crimes ocorridos pela ditadura militar.

“O legado do governo de extrema-direita é muito pesado para a área de direitos humanos. O governo de Bolsonaro extinguiu todos os conselhos que previam a participação da sociedade civil nas diferentes esferas do poder público e agora tudo tem que ser reconstruído. Será uma tarefa gigantesca para o Ministério dos Direitos Humanos e demais áreas do novo governo, justo nesse momento de lembrança dos 75 anos da Declaração Universal”, assinala Paulo Sergio Pinheiro, que foi ministro de Direitos Humanos no governo de Fernando Henrique e que desde 2011 preside a Comissão de Investigação das Nações Unidas sobre a República Árabe da Síria.

Paulo Sergio Pinheiro: "Escravocratas persistem no Brasil do século 21" (Foto UN independent international commission of inquiry on the Syrian Arab Republic, Geneva)

Paulo Sergio Pinheiro: “Escravocratas persistem no Brasil do século 21″ (Foto UN independent international commission of inquiry on the Syrian Arab Republic, Geneva)

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Pinheiro considera “muito positivo que o atual governo federal não considere a sociedade civil como inimiga, como o anterior”, e destaca a criação dos ministérios da Igualdade Racial, das Mulheres e dos Povos Indígenas. Para chefiar esses ministérios, o governo Lula nomeou mulheres que são lideranças históricas em suas áreas: Aparecida Gonçalves no Ministério das Mulheres, a líder indígena Sônia Guajajara no Ministério dos Povos Indígenas e Anielle Franco no Ministério da Igualdade Racial. Anielle Franco é irmã de Marielle Franco, socióloga, ativista e política assassinada a 14 de março de 2018, no Rio de Janeiro, sendo uma das muitas lideranças em direitos humanos mortas nos últimos anos no Brasil.

Para Paulo Sergio Pinheiro, que atualmente também integra a Comissão Arns de Direitos Humanos, os primeiros gestos do governo Lula são sinais de esperança, mas ele adverte que ainda há muito a caminhar até o pleno respeito à Declaração Universal dos Direitos Humanos. “Temos um histórico muito forte de racismo, derivado de séculos de escravidão, e também de autoritarismo e de dificuldades em enfrentar a violência”, adverte Pinheiro. Ele lembra que os mecanismos criados para a implementação da Declaração Universal, que é de 1948, foram acolhidos tardiamente no Brasil.

São dois os instrumentos principais criados na esfera da ONU para a implementação da Declaração Universal pelos Estados que compõem as Nações Unidas. O Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos foi adotado pela XXI Sessão da Assembléia-Geral das Nações Unidas, em 16 de dezembro de 1966, mas o Congresso Nacional brasileiro aprovou o documento somente a 12 de dezembro de 1991, por meio do Decreto Legislativo n° 226. A Carta de Adesão do Brasil ao Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos foi depositada em 24 de janeiro de 1992 e em 6 de julho de 1992 foi editado o decreto presidencial n° 592, pelo qual o Pacto passou entrar em vigor oficialmente no Brasil. A partir daí o Brasil passou a elaborar relatórios periódicos sobre o cumprimento do Pacto Internacional, como o terceiro examinado recentemente pelo Conselho de Direitos Humanos da ONU.

Por sua vez, o Pacto Internacional sobre os Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, o segundo instrumento criado para garantir a implementação da Declaração Universal dos Direitos Humanos, também foi adotado pela XXI Assembleia Geral das Nações Unidas em 16 de dezembro de 1966, entrando em vigor em 3 de janeiro de 1976. Da mesma forma, o Congresso Nacional brasileiro aprovou o Pacto em 12 de dezembro de 1991, pelo Decreto Legislativo n° 226, com a Carta de Adesão sendo depositada em 24 de janeiro de 1992 na ONU. O Pacto entrou então em vigor no Brasil também em 6 de julho de 1992, pelo decreto presidencial n° 591.

Os especialistas ouvidos pela ASN manifestaram que um ingrediente adicional que dificulta a plena implementação da Declaração Universal no Brasil é a ausência de uma Instituição Nacional de Direitos Humanos (INDH). Na América do Sul, somente Brasil, Guiana e Suriname não possuem uma Instituição nesse sentido. A criação de uma Instituição Nacional é defendida por órgãos como o Conselho Nacional de Direitos Humanos (CNDH), Procuradoria Federal dos Direitos Humanos (PFDC) e Defensoria Pública da União (DPU).

“Destaque-se que uma INDH seria um obstáculo mais sólido a situações anômalas, como a vivida pelo Brasil no último quadriênio”, afirmou por exemplo o procurador federal dos Direitos do Cidadão, Carlos Alberto Vilhena, em evento realizado por ocasião do último Dia Internacional de Direitos Humanos, lembrado a 10 de dezembro de 2022. Abaixo, como o Brasil tem-se comportado em relação a cada um dos 30 artigos da Declaração Universal dos Direitos Humanos.

Coleta e destinação de resíduos continuam sendo um dilema em grande parte do Nordeste, região com muitas doenças consideradas negligenciadas, um dos sintomas da desigualdade social estrutural no Brasil (Foto Adriano Rosa)

Coleta e destinação de resíduos continuam sendo um dilema em grande parte do Nordeste, região com muitas doenças consideradas negligenciadas, um dos sintomas da desigualdade social estrutural no Brasil (Foto Adriano Rosa)

Artigo 1

Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos.

Igualdade que não tem sido a marca da história do Brasil e muito menos para a população negra, que passou pelo horror da escravização durante mais de três séculos. “A partir do fato de que a nossa sociedade foi construída por um processo agressivo contra uma vasta população, plural, diversa, pluriétnica, com as pessoas sendo impedidas de serem sujeitos e sendo tratadas como objeto, a luta por igualdade deve ser permanente e necessária. Um claro exemplo é que apenas depois de 1988, com a nova Constituição, nos reconhecemos como um país racista, e apenas neste ano de 2023 temos uma nova legislação com punições mais severas. Enfim, a luta contra o racismo, que estrutura a sociedade brasileira, deve ser uma construção permanente”, sustenta a Dra. Alessandra Ribeiro, gestora cultural da Casa de Cultura Fazenda Roseira e liderança da Comunidade Jongo Dito Ribeiro, referências da comunidade afro-brasileira em Campinas, interior de São Paulo.

A Dra.Alessandra Ribeiro se refere a duas leis, aprovadas após a Constituição de 5 de outubro de 1988, a primeira após a ditadura militar de 1964 a 1984. Em 1989 entrou em vigor a Lei 7.716 (Lei de Crime Racial), que tipificou crimes resultantes de discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional. Por outro lado, somente em 12 de janeiro de 2023 o Diário Oficial da União publicou a Lei 14.532, sancionada pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva e que tipifica como crime de racismo a injúria racial. Com a nova lei, a pena por injúria racial passou de um a três anos para dois a cinco anos. A injúria racional é relacionada ao indivíduo, enquanto o racismo é considerado um crime contra a coletividade.

De fato, todo o elenco de políticas públicas e programas implantado até o momento no país não conseguiu apagar a impressão digital da desigualdade, que tem o racismo como um dos fatores estruturantes. É o que apontam estudos como a tese de Pedro Herculano Guimarães Ferreira de Souza (aqui), para obtenção de título de doutor pela Universidade de Brasília (UnB), mostrando que entre 1926 e 2013 o 1% mais rico da população brasileira somou entre 20% e 25% da renda nacional em média. O estudo revelou que a concentração no topo “teve idas e vindas que, mesmo temporárias, foram significativas, coincidindo com os grandes ciclos políticos do país”. Os períodos de maior concentração de renda pelo 1% mais rico, segundo Pedro Herculano Guimarães Ferreira de Souza, coincidiram com os regimes mais autoritários: o Estado Novo (1937-1945) de Getúlio Vargas e a ditadura militar de 1964-1984. Nos anos de 1942-43, 1988 e 1998 foram registradas as maiores proporções de concentração de renda pelo 1% mais rico: cerca de 30%. Os anos de 1960 e 1962 foram aqueles de menor concentração pelo 1% mais rico: cerca de 18%.

“As pessoas nascem em diferentes contextos, em situações diversas, mas a dignidade humana é inerente à cidadania. Os direitos devem ser iguais para todos, para que todos tenham as mesmas condições para o seu desenvolvimento. Infelizmente não é o que ocorre no Brasil, onde há, por exemplo, milhares de crianças em registro de nascimento e um número ainda maior de crianças sem filiação completa em seus registros”, afirma Vital Didonet, ex-vice-presidente mundial da Organização Mundial para a Educação Pré-Escolar (OMEP) e duas vezes vice-presidente da OMEP para a América Latina. Didonet é uma das principais referências em primeira infância no continente, em uma reafirmação de como o artigo 1 da Declaração Universal dos Direitos Humanos está longe de ser totalmente respeitado no Brasil.

Artigo 2

Todo ser humano tem capacidade para gozar os direitos e as liberdades estabelecidos nesta Declaração, sem distinção de qualquer espécie, seja de raça, cor, sexo, língua, religião, opinião política ou de outra natureza, origem nacional ou social, riqueza, nascimento, ou qualquer outra condição.

Se a desigualdade é uma das características estruturais da sociedade brasileira, de fato a população afrodescendente e parda é a mais desrespeitada em seus direitos no país. “O racismo ainda é um dos maiores obstáculos para o cumprimento da Declaração Universal dos Direitos Humanos no Brasil”, defende Paulo Sergio Pinheiro, da Comissão Arns.

A pesquisa “Desigualdades sociais por cor ou raça no Brasil”, publicada em novembro de 2022 pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), fez um retrato das injustiças cometidas contra a população negra no país.

De acordo com a pesquisa, as desigualdades são evidentes na área da habitação, entre outras. É maior a proporção, por exemplo, de 20,8% e 19,7%, respectivamente, entre as populações parda e preta, de residentes em domicílios sem documentação, em comparação com os 10,1% na população branca.

Além disso, em média, os domicílios próprios habitados por pessoas brancas valem quase o dobro dos habitados por pessoas pretas e pardas, em termos de aluguel mensal, segundo avaliação dos moradores: R$ 998 na população branca, R$ 571 na população preta e R$ 550 na população parda. A avaliação do IBGE é que este resultado reflete a pior localização, com menos acesso a serviços, e menor tamanho médio dos domicílios das pessoas pretas e pardas em comparação com as brancas.

Em termos de acesso a bens duráveis, as desigualdades são enormes, conforme mesma pesquisa. Ela revelou que 61,6% dos domicílios entre os que se declaram brancos tinham automóvel, em comparação com 37,4% na população parda e 34,7% na população preta. Os computadores estavam presentes em 54,7% dos domicílios na população branca, contra 38,9% na população preta e 35,0% na população parda.

São alguns indicadores que ratificam as distâncias entre as populações branca, preta e parda no país. No caso do acesso a computadores, a desigualdade existente foi particularmente cruel com os alunos de domicílios de população preta e parda, que tiveram maiores dificuldades, por exemplo, para acompanhar de forma adequada as aulas remotas durante a pandemia de Covid-19.

Artigo 3

Todo ser humano tem direito à vida, à liberdade e à segurança pessoal.

Entre 2019 e 2022, período do governo de Jair Bolsonaro, ocorreram 1.171 casos de violência contra defensoras e defensores de direitos humanos no Brasil, com 169 assassinatos. O levantamento, indicando um panorama de total contrariedade ao artigo 3 da Declaração Universal dos Direitos Humanos, consta do estudo “Na Linha de Frente: violência contra defensoras e defensores de direitos humanos no Brasil”, produzido pelas organizações Terra de Direitos e Justiça Global.

Segundo o documento, em média, 3 defensoras e defensores foram assassinados por mês no período analisado. Do total de assassinados, 140 defensoras e defensores lutavam pelo direito à terra, ao território e a um meio ambiente ecologicamente equilibrado. “Esse é o tipo de luta de 78,5% dos defensores e defensoras vítimas de qualquer tipo de violência identificada pelo levantamento”, informa o estudo.

Ainda de acordo com o estudo, a Amazônia é a região com maior número de assassinatos de defensoras e defensores de direitos humanos nos últimos anos. Foram 69 assassinatos, número cruel que confirma os desafios em termos da associação da agenda de direitos humanos e proteção ambiental no país.

Marcio Astrini, do Observatório do Clima: muitos desafios na área socioambiental no Brasil (Foto Márcia Alves/Observatório do Clima)

Marcio Astrini, do Observatório do Clima: muitos desafios na área socioambiental no Brasil (Foto Márcia Alves/Observatório do Clima)

“O que temos na Amazônia é que muitas vezes o desmatamento, o trabalho escravo, a grilagem, invasão de áreas protegidas e uso da violência principalmente na tomada de terras dos mais pobres são situações que normalmente coexistem, são situações irmãs que andam de mãos dadas na destruição daquela região”, protesta o secretário-executivo do Observatório do Clima, Márcio Astrini. Fundado em 2002, o Observatório do Clima é a principal rede da sociedade civil brasileira sobre a agenda climática, com mais de 90 organizações integrantes, entre ONGs ambientalistas, institutos de pesquisa e movimentos sociais.

De fato, conforme o estudo de Terra de Direitos e Justiça Global, quase metade (47%) dos casos violência contra defensoras e defensores de direitos humanos foram registrados na Amazônia Legal. No dia 21 de julho de 2023, o governo de Luiz Inácio Lula da Silva anunciou um pacote de medidas para o combate à violência na Amazônia. Foi o Plano Amazônia: Segurança e Soberania (Plano AMAS), envolvendo recursos de R$ 2 bilhões, do orçamento do Ministério da Justiça e Segurança Pública e do BNDES.

Entretanto, a violência que resulta em mortes não ocorre somente na Amazônia. O Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2023, do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, confirmou que o Brasil continua sendo um dos países com maiores números de mortes violentas intencionais do planeta. No ano de 2022 foram 39.519 homicídios dolosos, 1.229 latrocínios e 610 lesões corporais seguidas de morte. O Anuário computou ainda 161 policiais civis e militares vítimas de Crimes Violentos Letais Intencionais e 6.429 mortes decorrentes de intervenções de policiais em serviço ou fora de serviço. No total, 47.398 mortes violentas intencionais no Brasil em 2022. Entre 2011 e 2022 foram mais de 650 mil mortes violentas intencionais no país, números de uma verdadeira guerra civil.

O Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2023 contemplou números que ratificam o grau de violência sofrido pela população negra no país: 83,1% das vítimas fatais de intervenções policiais em 2022 eram negras, contra 16,6% de vítimas da cor branca.

Peça de campanha da OIT contra a escravidão contemporânea

Peça de campanha da OIT contra a escravidão contemporânea

 

 

 

 

 

 

 

 

Artigo 4

Ninguém será mantido em escravidão ou servidão; a escravidão e o tráfico de escravos serão proibidos em todas as suas formas.

Entre 1995 e 2022, foram resgatadas 57.772 pessoas em condição análoga à escravidão no Brasil. Foram resgatados em média 2.063,3 trabalhadores da chamada escravidão contemporânea por ano nesse período. Os dados, que confirmam um total descompasso em relação ao artigo 4 da Declaração Universal dos Direitos Humanos, são do  Observatório da Erradicação do Trabalho Escravo e do Tráfico de Pessoas, fruto de parceria entre a Organização Internacional do Trabalho (OIT), Ministério Público do Trabalho (MPT), Ouvidoria Nacional de Direitos Humanos no Ministério dos Direitos Humanos e Secretaria Especial de Previdência e Trabalho do Ministério da Economia. O Observatório é uma das iniciativas associadas ao enfrentamento da escravidão contemporânea no Brasil, reunindo diversas instâncias.

Uma das principais referências no combate à escravidão contemporânea no país, Ricardo Rezende, professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro, entende que o Brasil, último país das Américas a abolir oficialmente a escravidão, a 13 de maio de 1888, resiste em erradicar o trabalho escravo contemporâneo “por faltarem pressões consistentes e permanentes da sociedade civil sobre o Estado; por faltar disposição dos meios de comunicação sociais em abrir espaços maiores às informações sobre o crime; por ausência de empatia de governantes para com os trabalhadores e trabalhadoras. Resiste porque a desigualdade social é enorme e crescente, aumentam os bolsões de desempregados e de famintos”, acrescenta.

Logotipo de campanha da Anistia Internacional contra a tortura

Logotipo de campanha da Anistia Internacional contra a tortura

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Artigo 5

Ninguém será submetido à tortura, nem a tratamento ou castigo cruel, desumano ou degradante.

Em 2022, as organizações humanitárias Conectas Direitos Humanos e Justiça Global denunciaram em Genebra, na Suíça, o desmonte pelo governo de Jair Bolsonaro do sistema de combate à tortura no Brasil. Foi citado especificamente o decreto do ex-presidente da República, extinguindo os cargos dos peritos do Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura.

Em função das denúncias das organizações humanitárias, em abril de 2023 especialistas do Comitê da ONU contra a Tortura (CAT) visitaram o Brasil para uma revisão das medidas de combate à tortura no país. Em função dessa visita e das denúncias das organizações humanitárias, o ministro dos Direitos Humanos e da Cidadania, Silvio Almeida, que chefia a delegação brasileira junto ao CAT em Genebra, na Suíça, tem reiterado o compromisso do novo governo brasileiro em intensificar o combate à tortura.

Após a visita, os peritos da CAT deram o prazo de até 12 de maio de 2024, para o governo brasileiro apresentar um relatório sobre as sugestões feitas para o combate à tortura no país. Os membros do órgão das Nações Unidas reafirmaram em seu relatório que a tortura continua sendo praticada no Brasil, sobretudo em prisões e áreas periféricas urbanas e rurais, atingindo em particular as pessoas negras, mulheres, indígenas, quilombolas e da população LGBTQI+.

Artigo 6

Todo ser humano tem o direito de ser, em todos os lugares, reconhecido como pessoa perante a lei.

Uma das recomendações dos peritos do Comitê da ONU contra a Tortura (CAT), após sua visita ao Brasil em abril de 2023, foi a intensificação de esforços pelo fim do encarceramento em massa. O documento denunciou a “superlotação nas prisões e a altíssima taxa de encarceramento inclusive em prisão provisória, de jovens afro-brasileiros de ambos os sexos por crimes relacionados a drogas”.

Para o sociólogo Paulo Sergio Pinheiro, a situação nas prisões brasileiras configura “um dos maiores escândalos de desrespeito aos direitos humanos no Brasil”. Ele cita em particular a condição de mais de 200 mil presos sem julgamento. “São em sua maioria negros ou pardos, como mais uma demonstração do racismo persistente em nossa sociedade”, lamenta Pinheiro.

Conforme o Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2023, o Brasil tinha 832.295 pessoas encarceradas em 2022. O número de pessoas no sistema prisional brasileiro é cada vez maior. Na realidade, o número quadruplicou em duas décadas. Em 2000, eram 232.755 pessoas encarceradas. Mais um indicador do racismo estrutural no país é o percentual cada vez maior de pessoas negras na população carcerária. Em 2022, eram 442.033 pessoas negras no sistema prisional, 68,2% do total, enquanto em 2005 eram 91.843 pessoas negras, 58,4% do total.

Artigo 7

Todos são iguais perante a lei e têm direito, sem qualquer distinção, a igual proteção da lei. Todos têm direito a igual proteção contra qualquer discriminação que viole a presente Declaração e contra qualquer incitamento a tal discriminação.

Em maio de 2023, durante a sua visita ao Brasil, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) esteve nas penitenciárias Jorge Santana e Alfredo Tranjan, no Rio de Janeiro, para verificar in loco a situação das pessoas privadas de liberdade. De acordo com comunicado oficial da CIDH, a Comissão “observou os esforços progressivos para reduzir a superlotação na Penitenciária Jorge Santana desde a concessão das medidas cautelares em 2019; no entanto, identificou a persistência de condições de superlotação e insalubridade em ambas as penitenciárias, presença de pragas, falta de colchões e camas. Além disso, recebeu reclamações das pessoas privadas de liberdade sobre a baixa qualidade da alimentação, que às vezes chegaria às penitenciárias em condições inadequadas para consumo”.

Em relação à Penitenciária Alfredo Tranjan, a CIDH observou que “algumas pessoas possuíam bolsas de colostomia e fixadores externos com prazos de remoção vencidos, projéteis alojados no corpo e desconheciam se havia data para a realização de cirurgias e fisioterapia para evitar danos irreparáveis ​​à sua integridade física. Relatos foram recebidos de pessoas que necessitavam de cirurgias e que seriam transferidas para a Unidade de Pronto Atendimento Hamilton Agostinho, mas retornavam sem receber o atendimento médico necessário, quando deveriam ser encaminhadas para hospitais de atenção secundária e terciária à saúde”.

Além disso, segundo o comunicado oficial da CIDH, os beneficiários “informaram que o transporte para atendimento médico pelo Serviço de Operações Especiais era feito de forma inadequada, em veículos superlotados, com as pessoas algemadas, às vezes em posições que causam sofrimento, sem a devida consideração ao seu estado de saúde – muitas vezes com deficiências ou dificuldades de locomoção”.

Diante do observado, a CIDH instou o Estado “a reforçar o cumprimento das medidas cautelares, inclusive reavaliando a compatibilidade com a privação de liberdade na situação individual de risco à vida e à integridade pessoal de beneficiários com deficiência e outros com necessidades de saúde específicas à luz dos padrões internacionais aplicáveis, conforme a Resolução 53/22 (Penitenciária Alfredo Tranjan)”.

O Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2023, do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, revelou números assustadores de várias modalidades de discriminação no país. Foram 11.153 casos de injúria racial registrados em 2022, contra 10.994 em 2021. Também foram registrados oficialmente 4.944 casos de racismo em 2022, contra 3.645 em 2021. O Anuário também computou 503 registros oficiais de homofobia e transfobia, contra 328 em 2021.

Artigo 8

Todo ser humano tem direito a receber dos tribunais nacionais competentes remédio efetivo para os atos que violem os direitos fundamentais que lhe sejam reconhecidos pela constituição ou pela lei.

A equidade na Justiça ainda parece longe de muitas situações de violações aos direitos humanos no Brasil. De acordo com dados da Comissão Pastoral da Terra (CPT), em menos de 10% dos mais de 1500 casos de assassinatos de trabalhadores rurais ocorridos desde 1985 houve julgamento dos acusados e em um número menor ainda houve condenação e prisão dos culpados.

Libertação de UniversindoDíaz e Lilian Celiberti, com Jair Krischke no centro (Foto Arquivo Pessoal Jair Krischke)

Libertação de UniversindoDíaz e Lilian Celiberti, com Jair Krischke no centro (Foto Arquivo Pessoal Jair Krischke)

Artigo 9

Ninguém será arbitrariamente preso, detido ou exilado.

O Movimento de Justiça e Direitos Humanos (MJDH) foi fundado em 25 de março de 1979, embora o registro jurídico tenha sido obtido em 11 de agosto de 1980. Em colaboração com o Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR) e várias outras organizações, e com atuação sobretudo na área do Cone Sul, o MJDH participou de diversos casos, como na denúncia do sequestro dos uruguaios Lilian Celiberti, seus dois filhos menores, e Universindo Díaz, ocorrido em Porto Alegre, no dia 12 de novembro de 1978.

O caso teve repercussão mundial. Depois de cinco anos presos no Uruguai, o casal foi solto com o fim da ditadura em seu país. Em 1980 dois policiais brasileiros que participaram da operação foram condenados pela justiça brasileira – eles tinham sido flagrados, no apartamento onde Lilian era mantida prisioneira, pelos jornalistas da sucursal de “Veja” em Porto Alegre, Luiz Cláudio Cunha e João Baptista Scalco.

O fundador e presidente do MJD, Jair Kritschke, defende a tese de que a Operação Condor, cooperação entre os governos militares na época, foi lançada na prática no Brasil.

“Em 11 de dezembro de 1970, o Brasil deu inicio a esta prática ao atuar em conjunto com o aparelho repressivo da Argentina, no caso do sequestro em Buenos Aires do coronel do exército brasileiro, Jefferson Cardim de Alencar Osorio, seu filho e um sobrinho. Trata-se do primeiro caso fartamente documentado”, comenta.

O “batismo” da Operação Condor aconteceu na reunião ocorrida no Chile, entre os dias 25 de novembro e 01 de dezembro de 1975, com a participação de representantes dos governos militares da região. Krischke observa que os representantes brasileiros não assinaram a data de “fundação” da Operação Condor. “Este elemento levou algumas pessoas a afirmarem que o Brasil não participou da Operação, o que absolutamente não é verdade, como demonstra farta documentação”, completa.

“O que aconteceu no Brasil foram crimes lesa-humanidade e sou daqueles que acreditam que, se um ser humano foi violado em seus direitos, toda humanidade foi”, conclui Jair Krischke, presidente da organização que fundou com outros ativistas pelos direitos humanos e cujo modesto escritório, no centro de Porto Alegre, mantém em destaque na parede um cartaz com o primeiro artigo da Declaração Universal dos Direitos Humanos traduzido em várias línguas. As prisões ilegais, desaparecimentos e mortes no Brasil, durante a ditadura militar de 1964-1984, continuam sem total esclarecimento e punição.

Artigo 10

Todo ser humano tem direito, em plena igualdade, a uma justa e pública audiência por parte de um tribunal independente e imparcial, para decidir seus direitos e deveres ou fundamento de qualquer acusação criminal contra ele.

Para a Anistia Internacional, foi um retrocesso a edição da Lei Federal Nº 13.491/2017, assinada pelo Presidente  Michel Temer em 13 de outubro de 2017, estabelecendo que violações de direitos humanos, inclusive homicídio ou tentativa de homicídio, cometidas por militares contra civis seriam julgadas por tribunais militares. “Esta lei viola o direito a um julgamento justo, uma vez que os tribunais militares no Brasil não oferecem garantia de independência judicial”, acrescenta o relatório da Anistia Internacional de 2017-2018.

Em resposta a essa determinação legal, o PSOL apresentou a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) de número 5901, em tramitação no Supremo Tribunal Federal, questionando a ampliação da competência da Justiça Militar. Com relação a essa ADI, a Conectas Direitos Humanos e a Clínica Internacional de Direitos Humanos Allard K.Lowenstein, ligada à Escola de Direito de Yale, em pedido de amicus curiae, sustentam que a ausência de imparcialidade e independência “impede o acesso à justiça e facilita a impunidade em caso de violações dos direitos humanos”.

Artigo 11

1.Todo ser humano acusado de um ato delituoso tem o direito de ser presumido inocente até que a sua culpabilidade tenha sido provada de acordo com a lei, em julgamento público no qual lhe tenham sido asseguradas todas as garantias necessárias à sua defesa.
2. Ninguém poderá ser culpado por qualquer ação ou omissão que, no momento, não constituíam delito perante o direito nacional ou internacional. Também não será imposta pena mais forte de que aquela que, no momento da prática, era aplicável ao ato delituoso.

A presunção da inocência foi reafirmada pelo Supremo Tribunal Federal (STF), após longo debate, em sentença do dia 7 de novembro de 2019. Conforme comunicado do STF, por maioria o plenário da Corte “decidiu que é constitucional a regra do Código de Processo Penal (CPP) que prevê o esgotamento de todas as possibilidades de recurso (trânsito em julgado da condenação) para o início do cumprimento da pena”.  O Supremo concluiu naquela data o julgamento das Ações Declaratórias de Constitucionalidade (ADC) 43, 44 e 54, que foram julgadas procedentes.

“Para a corrente vencedora, o artigo 283 do Código de Processo Penal (CPP), segundo o qual “ninguém poderá ser preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente, em decorrência de sentença condenatória transitada em julgado ou, no curso da investigação ou do processo, em virtude de prisão temporária ou prisão preventiva”, está de acordo com o princípio da presunção de inocência, garantia prevista no artigo 5º, inciso LVII, da Constituição Federal”, diz o comunicado. O documento do STF ainda assinala que a decisão “não veda a prisão antes do esgotamento dos recursos, mas estabelece a necessidade de que a situação do réu seja individualizada, com a demonstração da existência dos requisitos para a prisão preventiva previstos no artigo 312 do CPP – para a garantia da ordem pública e econômica, por conveniência da instrução criminal ou para assegurar a aplicação da lei penal”.

A presunção da inocência é defendida em várias instâncias internacionais. Casos da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) e Tribunal Penal Internacional.

Artigo 12

Ninguém será sujeito à interferência na sua vida privada, na sua família, no seu lar ou na sua correspondência, nem a ataque à sua honra e reputação. Todo ser humano tem direito à proteção da lei contra tais interferências ou ataques.

Um relatório divulgado em 2018 pela Anistia Internacional, “#Twitter Tóxico: Violência e abuso contra mulheres na internet”, mostrava as vulnerabilidades do mundo digital a manifestações de ódio e misoginia. A Anistia lembrava que em 2017 encomendou uma pesquisa com 4.000 mulheres, em oito países (Dinamarca, Itália, Nova Zelândia, Polônia, Espanha, Suécia, Reino Unido e Estados Unidos), e o trabalho revelou que  mais de três quartos (76%) das mulheres que vivenciaram abuso ou assédio nas redes sociais mudaram a maneira de usá-las, resultando em restrição das postagens: 32% das mulheres pararam de postar suas opiniões sobre certos temas.

De acordo com a pesquisa, em todos os países, pouco menos da metade (46%) das mulheres que responderam às perguntas e que sofreram abuso ou assédio on-line afirmaram ser de natureza misógina ou sexista. “Entre um quinto (19% na Itália) e um quarto das mulheres que sofreram abuso ou assédio disseram ter incluído ameaças de agressão física ou sexual”, afirma a Anistia Internacional.

A organização lembrava ainda que 58% dos participantes da pesquisa em todos os países que sofreram abuso ou assédio disseram ter incluído racismo, sexismo, homofobia ou transfobia. “26% das mulheres que sofreram abuso ou assédio em todos os países pesquisados disseram que detalhes pessoais ou de identificação deles haviam sido compartilhados on-line (também conhecidos como “doxxing”)”, completa a Anistia Internacional.

Pesquisas e fatos recentes mostram que no Brasil os ataques a mulheres pela internet são frequentes. Um estudo da ong Plan International, de 2020, revelou que 8 de 10 jovens brasileiras já haviam sofrido assédio pela internet, com maior incidência de casos entre usuárias de Facebook. Em março de 2023, a Polícia Civil de São Paulo abriu inquérito para investigar os ataques de membro de um grupo misógino contra uma atriz. Em reação às manifestações misóginas nos ambientes virtual e real, já existem iniciativas em curso, como o projeto Memoh.

Neste mês de agosto, a pesquisadora e advogada Mariana Valente, diretora do think thank InternetLab, está lançando o livro “Misoginia na Internet”, pela editora Fósforo. É um relato contundente das múltiplas formas de agressão contra as mulheres pela Internet.

Artigo 13

1. Todo ser humano tem direito à liberdade de locomoção e residência dentro das fronteiras de cada Estado.
2. Todo ser humano tem o direito de deixar qualquer país, inclusive o próprio e a esse regressar.

São várias formas pelas quais o artigo 13 é desrespeitado no Brasil. Durante a Primeira Década de Ação para a Segurança Viária, entre 2011 e 2020, em função de um elenco de ações, executadas pelo poder público, na esfera legislativa e da indústria automobilística, e com decisiva participação da sociedade civil, houve uma queda de mais de 25% no número de mortes por acidentes nas ruas, rodovias e estradas brasileiras, em relação à linha de base de 2011. Lembrando que a frota de automóveis em 2020 era de 107 milhões de veículos, contra 65 milhões ao final de 2010, segundo o Denatran.

“Isso não é nada desprezível e tem que ser reconhecido”, como afirma Victor Pavarino, consultor de segurança no trânsito e mobilidade sustentável da Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS) e da Organização Mundial da Saúde (OMS). Mas, como o próprio Pavarino ressalta, “não podemos esquecer que se os números baixaram de 42 mil para 31 mil mortes por ano, ainda são 31 mil vidas. São 31 mil pessoas mortas por algo cujas causas e prevenção conhecemos. Estatisticamente falando, sabemos quem, quando e onde as pessoas vão morrer. E o que funciona”, diz o consultor da OPAS/OMS,

Assim, durante a primeira Década de Ação para a Segurança Viária foram mais de 350 mil mortes em acidentes de trânsito no Brasil. Uma redução muito mais significativa nos óbitos será tarefa coletiva e urgente para a segunda Década, entre 2021 e 2030, garantindo-se o que está previsto no artigo 13 da Declaração Universal dos Direitos Humanos.

Para Antonio Celso Fonseca de Arruda, professor de Segurança Viária na Faculdade de Engenharia Mecânica da Unicamp, a melhoria da formação dos motoristas é um dos grandes desafios para a conquista da segurança viária. “Os centros de formação de condutores tendem a formar alunos não efetivamente habilitados. Para obter uma habilitação, por exemplo, o candidato não dirige na estrada e em condições adversas, por exemplo em uma rampa de paralelepípedo molhada para estacionar. Na Alemanha, o candidato precisa fazer isso, dirigir à noite e estacionar em rampa inclinada”, explica o docente da Unicamp.

O professor da FEM-Unicamp também entende que “o governo não providenciou estradas mais seguras, exceto naquelas dadas sob concessão”. Ele nota que “pelo memorial de concessão as empresas têm que obedecer metas para termos rodovias mais seguras”.

O docente considera que algumas rodovias brasileiras, sob gestão concessionada, alcançaram “o nível internacional de excelência, enquanto as que não estão sob concessão continuam em estado precário”.

Artigo 14

1. Todo ser humano, vítima de perseguição, tem o direito de procurar e de gozar asilo em outros países.
2. Esse direito não pode ser invocado em caso de perseguição legitimamente motivada por crimes de direito comum ou por atos contrários aos objetivos e princípios das Nações Unidas.

O Brasil é um país tradicionalmente aberto a migrações, mas ainda tem muitos desafios a realizar nesse sentido. Um deles é a ratificação da Convenção Internacional Internacional sobre a Proteção dos Direitos de Todos os Trabalhadores Migrantes e dos Membros das suas Famílias. A demora do Brasil em ratificar o documento representa um claro exemplo de como o país demora em aderir aos tratados internacionais em direitos humanos.

A Convenção Internacional Internacional sobre a Proteção dos Direitos de Todos os Trabalhadores Migrantes e dos Membros das suas Famílias foi adotada em 1990 pela Assembleia Geral das Nações Unidas, mas somente em 2010 o governo brasileiro submeteu o texto de adesão ao Congresso Nacional, através da mensagem de número 696.

Depois de 12 anos de tramitação, o texto da Convenção foi finalmente aprovado, a 12 de dezembro de 2022, pela Comissão Especial formada para analisar a matéria. A Comissão aprovou o parecer do relator, o deputado Orlando Silva (PC do B-SP), e a matéria foi transformada no Projeto de Decreto Legislativo 405/2022, ainda a ser apreciado pelo plenário da Câmara dos Deputados. Faltam ainda, portanto, alguns passos até a ratificação pelo Brasil da Convenção que proíbe a discriminação contra os trabalhadores migrantes e suas famílias. A ratificação da Convenção foi um dos pedidos ao Brasil pela Revisão Periódica Universal, das Nações Unidas. Na América Latina a Convenção já recebeu a ratificação da Argentina, Bolívia, Chile, Colômbia, Equador, El Salvador, Guatemala, Guiana, Honduras, México, Nicarágua, Paraguai e Peru.

Artigo 15

1. Todo ser humano tem direito a uma nacionalidade.
2. Ninguém será arbitrariamente privado de sua nacionalidade, nem do direito de mudar de nacionalidade.

De acordo com o artigo 12, inciso I, da Constituição Federal, com a redação dada pela Emenda Constitucional nº 54/2007, são brasileiros natos: a) os nascidos na República Federativa do Brasil, ainda que de pais estrangeiros, desde que estes não estejam a serviço de seu país; b) os nascidos no estrangeiro, de pai brasileiro ou mãe brasileira, desde que qualquer deles esteja a serviço da República Federativa do Brasil; c) os nascidos no estrangeiro de pai brasileiro ou de mãe brasileira, desde que sejam registrados em repartição brasileira competente ou venham a residir na República Federativa do Brasil e optem, em qualquer tempo, depois de atingida a maioridade, pela nacionalidade brasileira. O Itamaraty afirma que os brasileiros nascidos no exterior devem ser registrados na repartição consular brasileira.

O mesmo artigo 12, inciso II, da Constituição Federal, destaca que são brasileiros naturalizados: a) os que, na forma da lei, adquiram a nacionalidade brasileira, exigidas aos originários de países de língua portuguesa apenas residência por um ano ininterrupto e idoneidade moral; b) os estrangeiros de qualquer nacionalidade, residentes na República Federativa do Brasil há mais de quinze anos ininterruptos e sem condenação penal, desde que requeiram a nacionalidade brasileira. (Redação dada pela Emenda Constitucional de Revisão nº 3, de 1994). O Itamaraty observa que a naturalização brasileira é competência exclusiva do Ministério da Justiça e Segurança Pública.

A perda de nacionalidade, conforme o artigo 12, § 4º, da Constituição Federal, ocorrerá com o brasileiro que: I – tiver cancelada sua naturalização, por sentença judicial, em virtude de atividade nociva ao interesse nacional; II – adquirir outra nacionalidade, salvo no casos: a) de reconhecimento de nacionalidade originária pela lei estrangeira; b) de imposição de naturalização, pela norma estrangeira, ao brasileiro residente em estado estrangeiro, como condição para permanência em seu território ou para o exercício de direitos civis.

Jane Valente é referência nacional e internacional em serviços de acolhimento familiar (Foto Martinho Caires)

Jane Valente é referência nacional e internacional em serviços de acolhimento familiar (Foto Martinho Caires)

Artigo 16

1. Os homens e mulheres de maior idade, sem qualquer restrição de raça, nacionalidade ou religião, têm o direito de contrair matrimônio e fundar uma família. Gozam de iguais direitos em relação ao casamento, sua duração e sua dissolução.
2. O casamento não será válido senão com o livre e pleno consentimento dos nubentes.
3. A família é o núcleo natural e fundamental da sociedade e tem direito à proteção da sociedade e do Estado.

A ausência de uma mais abrangente política pública de acolhimento familiar é um dos entraves ao pleno cumprimento do artigo 16 da Declaração Universal dos Direitos Humanos. Hoje existem cerca de 31 mil crianças e adolescentes acolhidos no Brasil, mas apenas 5% estão em acolhimento familiar, segundo dados do Sistema Nacional de Acolhimento e adoção, o SNA, coordenado pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ).

O acolhimento familiar é uma medida de proteção, temporária e excepcional, garantida em lei pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). Atualmente o acolhimento familiar é reconhecido, por pesquisas e pela prática, como a modalidade de acolhimento mais recomendada para crianças e adolescentes em situação de risco social que foram afastados de suas famílias de origem por decisão judicial. Caracteriza-se pela transferência temporária dos direitos e deveres parentais dos pais biológicos para uma família acolhedora, previamente cadastrada, selecionada e vinculada a um serviço de acolhimento familiar.

Uma das referências no Brasil em acolhimento familiar, a assistente social Jane Valente, ex-secretária municipal de Assistência Social de Campinas, nota que a garantia desse direito depende de uma ação intersetorial e envolvendo Estado, famílias e sociedade civil. “É uma ação de confiança e de corresponsabilidade”, observa Jane Valente, que foi a coordenadora do IV Simpósio Internacional de Acolhimento Familiar (SIMAF), realizado em março de 2023 no Centro de Convenções da Unicamp, em Campinas.

Mesa de abertura do IV SIMAF (Foto José Pedro S.Martins)

Mesa de abertura do IV SIMAF (Foto José Pedro S.Martins)

O IV SIMAF foi uma realização do Observatório da Infância e Adolescência (OiA), do Núcleo de Estudos de Políticas Públicas da UNICAMP (NEPP) e Instituto Geração Amanhã, e contou com patrocínio do Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania, do Governo Estadual de São Paulo, da Prefeitura Municipal de Campinas, do Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente (CMDCA), da Fundação FEAC e da Aldeias Infantis SOS, além de apoio de várias instituições.

Por outro lado, o alto grau de violência doméstica e sexual no Brasil também confirma o desafio gigantesco para o cumprimento do artigo 16 da Declaração Universal dos Direitos Humanos. O Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2023 revelou que foram encaminhadas ao Disque 190, em 2022, nada menos que 899.485 denúncias de violência doméstica, contra 827.278 em 2021. Também em 2022, os Tribunais de Justiça concederam 445.456 medidas protetivas, em relação a 389.798 em 2021. Foram 1.437 casos de feminicídio registrados em 2022, contra 1.347 em 2021, além de 2.563 tentativas de feminicídio em 2022, contra 2.181 em 2021.

O Fórum Brasileiro de Segurança Pública alerta que, na realidade, está ocorrendo uma explosão de violência sexual no Brasil. Outro caso grave é o de estupro de vulneráveis. Em 2011 foram 43.869 casos registrados e a partir daí o número foi crescendo sistematicamente, até chegar aos 74.930 casos em 2022.

De acordo com o Fórum, a situação pode ser ainda pior, como sustenta no Anuário 2023: “Explicar o crescimento da violência sexual no Brasil não é tarefa fácil. Em primeiro lugar, porque a subnotificação é regra nestes casos e está longe de ser uma especificidade do contexto brasileiro, estando presente em levantamentos em todo o mundo (National Sexual Violence Resource Center, 2015; Statistics Canada, 2019; Jones et al, 2009). Estudo recente divulgado por pesquisadores do IPEA indicou que apenas 8,5% dos estupros no Brasil são reportados às polícias e 4,2% pelos sistemas de informação da saúde. Assim, segundo a estimativa produzida pelos autores, o patamar de casos de estupro no Brasil é da ordem de 822 mil casos anuais. Se considerarmos que desde 2019 (ano considerado no estudo) os registros cresceram, a situação pode ser ainda mais grave”.

Crianças e adolescentes são as maiores vítimas de estupros de vulneráveis, complementa o Fórum Brasileiro de Segurança Pública: “As crianças e adolescentes continuam sendo as maiores vítimas da violência sexual: 10,4% das vítimas de estupro eram bebês e crianças com idade entre 0 e 4 anos; 17,7% das vítimas tinham entre 5 e 9 anos e 33,2% entre 10 e 13 anos. Ou seja, 61,4% tinham no máximo 13 anos. Aproximadamente 8 em cada 10 vítimas de violência sexual eram menores de idade”.

Indígenas presentes no I Encontro dos Povos Indígenas do Xingu, em Altamira, em 1989, reproduziram aspectos de seu modo de vida do lado de fora do local onde o evento  estava sendo realizado: a defesa das raízes da cultura brasileira  (Foto José Pedro Soares Martins)

Indígenas presentes no I Encontro dos Povos Indígenas do Xingu, em Altamira, em 1989, reproduziram aspectos
de seu modo de vida do lado de fora do local onde o evento
estava sendo realizado: a defesa das raízes da cultura brasileira (Foto José Pedro Soares Martins)

Artigo 17

1. Todo ser humano tem direito à propriedade, só ou em sociedade com outros.
2. Ninguém será arbitrariamente privado de sua propriedade.

A estadia de representantes da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) no Brasil, em maio de 2023, contemplou uma visita à Terra Indígena Araribóia para dar seguimento à MC 754-20 – Membros dos Povos Indígenas Guajajara e Awá. Os líderes e lideranças Guajajara receberam a Comissão e alertaram sobre o aumento da violência em seu território devido à presença de terceiros não autorizados que ameaçam e assassinam líderes e membros da comunidade. Entre setembro de 2022 e abril de 2023, foram registrados 7 assassinatos.

As pessoas beneficiárias da medida cautelar informaram que a guarda indígena Guajajara realiza suas atividades de proteção e defesa de seu povo, território e indígenas que vivem em isolamento voluntário, como os Awá, sem qualquer acompanhamento das autoridades estatais. Além disso, pessoas do Povo Indígena Guajajara destacaram que as investigações sobre os assassinatos não consideram as causas estruturais da violência e a dimensão coletiva de sua luta pela proteção do território e do meio ambiente. Também alertaram sobre a construção de uma estrada em seu território sem a realização de um processo de consulta prévia, livre e informada. Eles assinalaram, com preocupação, que, nos governos federais anteriores, as políticas públicas de saúde, educação e segurança para os indígenas eram poucas e ineficazes. Da mesma forma, registraram o enfraquecimento institucional dos órgãos responsáveis pela defesa e promoção de seus direitos, como a FUNAI e o IBAMA, nas gestões anteriores.

“Se trata de fatos graves, especialmente considerando seu impacto nos direitos dos povos e comunidades indígenas”, afirmou a Comissária Esmeralda Arosemena de Troitiño, relatora sobre Povos Indígenas, expressando solidariedade aos familiares das pessoas assassinadas e feridas.

A CIDH fez um apelo para que o Estado atenda urgentemente à situação de desproteção enfrentada pelos Guajajaras e Awás, fortalecendo as ações de segurança no território e destacando o papel importante das guardas indígenas na defesa do direito à vida, território e cosmovisão.

A violência sistemática contra os Guajajara e Awá é um exemplo do cenário de desrespeito histórico ao direito dos povos indígenas no Brasil a seus territórios. Das 764 terras indígenas reconhecidas no Brasil, 448 já foram homologadas ou reservadas. A Constituição Federal de 1988, em seu artigo 231, estipula o direito dos povos indígenas brasileiros a seus territórios, que deveriam estar todos demarcados até 1993, o que não aconteceu.

A situação é ainda mais grave, considerando os critérios utilizados pelo Conselho Indigenista Missionário (CIMI), vinculado à Conferência Nacional dos Bispos do Brasil. O CIMI considera a existência de 1.391 terras e demandas territoriais indígenas no país, 62% das quais possuindo alguma pendência administrativa para sua regularização. Dentre as 867 terras indígenas com pendências, segundo o CIMI, pelo menos 588 não tiveram nenhuma providência do Estado para sua demarcação e ainda aguardam a constituição de Grupos Técnicos (GTs) pela Funai, responsável por proceder com a identificação e delimitação destas áreas.

Durante o governo de Jair Bolsonaro, de 2019 a 2022, nenhuma terra indígena foi demarcada. Pelo contrário, nesse período agravaram-se as invasões das áreas indígenas e a violência contra esses povos. De acordo com o CIMI, as invasões de terras indígenas triplicaram no governo Bolsonaro. Foram 1.133 casos de invasões possessórias, exploração ilegal de recursos naturais e danos diversos ao patrimônio nos quatro anos do governo de extrema-direita, de acordo com o relatório Violência Contra os Povos Indígenas do Brasil – dados de 2022, do CIMI.

O CIMI registrou 795 homicídios de indígenas registrados entre 2019 e 2022: foram 208 em Roraima, 163 no Amazonas e 146 no Mato Grosso do Sul, estados que lideram o ranking de assassinatos. Em Roraima vive o povo Yanomami, que teve suas terras constantemente invadidas por garimpeiros e pelo crime organizado no período.

Dentre os casos de assassinatos de indígenas nos últimos quatro anos, o CIMI destaca os das lideranças Guarani e Kaiowá como Marcio Moreira e Vitorino Sanches, nos meses seguintes ao caso conhecido como “massacre do Guapoy”, que vitimou o Kaiowá Vitor Fernandes; e o assassinato de três Guajajara da TI Arariboia – Janildo Oliveira, Jael Carlos Miranda e Antônio Cafeteiro – mortos em setembro de 2022, no espaço de tempo de apenas duas semanas.

O governo de Luiz Inácio Lula da Silva tem representado esperança para os povos povos indígenas. Foi criado o Ministério dos Povos Indígenas, tendo como ministra Sônia Guajajara, uma das mais conhecidas lideranças indígenas do país. A presidência da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) também passou a ser ocupada, pela primeira vez na história, por uma pessoa indígena. No caso, a ex-deputada federal Joenia Wapichana. Logo que tomou posse, o presidente Lula também determinou uma completa operação de retirada de garimpeiros da área Yanomami, na divisa do Brasil com a Venezuela.

“Na questão indígena e em outras áreas o novo governo desperta esperança, pois mostra respeito pela sociedade civil. Mas o desafio do Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania é ciclópico, tamanho o desmonte provocado pelo governo de extrema-direita de Jair Bolsonaro”, reitera Paulo Sergio Pinheiro, da Comissão Arns.

Ele cita o caso da situação da saúde indígena, e sobretudo das crianças indígenas, como um enorme desafio a ser superado nos próximos anos. De acordo com o CIMI, em todo o Brasil, a Secretaria de Saúde Indígena (Sesai), do Ministério da Saúde, registrou um total de 3.552 óbitos de crianças indígenas de 0 a 4 anos de idade entre 2019 e 2022. Considerado o período de quatro anos, três estados concentraram a maioria dos óbitos: foram, no total, 1.014 mortes de crianças menores de cinco anos no Amazonas, 607 em Roraima e 487 em Mato Grosso, segundo dados atualizados pelo CIMI e obtidos junto à Sesai. Também segundo o CIMI, entre 2019 e 2022 foram registradas 535 mortes de indígenas por suicídio.

Comunidades das religiões afro-brasileiras na lavagem das escadarias da Catedral: a forte influência na cultura de Campinas e do Brasil (Foto Martinho Caires)

Comunidades das religiões afro-brasileiras na lavagem das escadarias da Catedral: a forte influência na cultura de Campinas e do Brasil (Foto Martinho Caires)

Artigo 18

Todo ser humano tem direito à liberdade de pensamento, consciência e religião; esse direito inclui a liberdade de mudar de religião ou crença e a liberdade de manifestar essa religião ou crença pelo ensino, pela prática, pelo culto em público ou em particular.

O ritual se repete há 38 anos. Aos poucos, a praça em frente à Catedral Metropolitana de Campinas, dedicada à Nossa Senhora da Conceição, padroeira da cidade, é tomada por uma multidão de pessoas vestindo branco. Mulheres, homens e crianças, de diversas idades, tomando posição para lavar as escadarias da Catedral.

A cerimônia de lavagem da Catedral de Campinas começou em 1985 e é realizada sempre no Sábado de Aleluia, pelas comunidades das religiões afro-brasileiras.

Em quase toda história do Brasil, e até boa parte do século 20, comenta a Dra.Alessandra Ribeiro, líder da comunidade Jongo Dito Ribeiro, liberdade religiosa era sinônimo de liberdade para exercer a fé católica. Entre o final do século 20 e inicio do século 21, houve um expressivo avanço de expressões de fé protestantes, com reflexos inclusive na eleição de grandes bancadas nos Parlamentos, nacional, estaduais e municipais. E, agora, completa, “o próprio tensionamento contribuiu para que o budismo, o terreirismo e outras expressões religiosas deixassem os seus espaços para promover um grande debate, um grande diálogo sobre a verdadeira diversidade religiosa”.

Artigo 19

Todo ser humano tem direito à liberdade de opinião e expressão; esse direito inclui a liberdade de, sem interferência, ter opiniões e de procurar, receber e transmitir informações e idéias por quaisquer meios e independentemente de fronteiras.

“As discussões sobre a centralidade da liberdade de expressão e acesso à informação e conhecimento para a democracia, o desenvolvimento, a proteção e promoção de outros direitos humanos não são nada novas. No entanto, não há dúvida de que o advento das novas tecnologias de comunicação e informação, em particular a expansão da Internet, oferece uma dimensão única e sem precedentes para essas discussões”. Estas palavras estão no texto de apresentação de “Liberdade de Expressão e Internet”, um paper produzido pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco), dentro da coleção Cadernos de Discussão de Comunicação e Informação (aqui).

Organizado por Andrew Puddephatt, o paper é resultado do trabalho de diversos especialistas e tem como propósito “fornecer insumos para que tomadores de decisão e formuladores de políticas públicas possam ter em conta diferentes ângulos das questões que estão na ordem do dia da agenda internacional, sempre tendo como fio condutor os padrões internacionais existentes”.
Os responsáveis notam que o impacto da Internet “sobre o sistema de proteção e promoção dos direitos humanos, a consolidação da democracia, o desenvolvimento, tomada de decisões, políticas públicas e, ao fim do dia, na vida cotidiana de todos os cidadãos não tem precedentes”.
Em destaque o que está previsto no artigo 19 da Declaração Universal dos Direitos Humanos, à luz dos avanços tecnológicos atuais. “Note-se que as mentes por detrás da Declaração não se concentraram nas tecnologias de difusão do conhecimento disponíveis no momento de construção e aprovação deste seminal documento. Deixaram explícito que os princípios ali definidos seguiriam sendo válidos, independentemente das transformações tecnológicas que viessem a ter lugar”.
E foram muitas as transformações, como sabemos. A Declaração Universal foi aprovada pela Assembleia Geral das Nações Unidas no dia 10 de dezembro de 1948. Nos anos seguintes o mundo passou pelas enormes mudanças provocadas pela televisão e outros avanços tecnológicos, até que a Internet introduziu mutações sem precedentes na forma de comunicar e se comunicar. Fundamental, portanto, uma reflexão sobre o que essas mudanças incidem sobre o direito à liberdade de informação e expressão.
Advertem os responsáveis pela publicação da Unesco que a Internet gera muitos novos desafios. “No mundo digital, os conteúdos podem ser controlados e retrabalhados pelas próprias tecnologias que os veiculam, e por isso os defensores da liberdade de expressão precisam entender o potencial que a própria tecnologia tem para censurar o discurso. Muitos Estados buscam censurar conteúdos ou criar uma cultura de autocensura, fazendo um monitoramento técnico da atividade on-line ou valendo-se de um policiamento da internet”, adverte o texto.
E mais: “Como a internet é construída e mantida pelo setor privado, os conteúdos podem ser retirados do ar pelas empresas sem que se possa recorrer à lei, criando assim uma forma de censura privatizada. Existem dois desafios no caminho dos defensores da liberdade de expressão no mundo digital: o desafio jurisdicional e o desafio de políticas públicas”, complementa o artigo, que faz uma série de considerações, portanto, relativas às questões legais e em termos de políticas públicas derivadas do advento e crescimento espetacular da Internet.
“Enquanto a internet era um meio da elite em língua inglesa, utilizado por pequenos grupos de pessoas, ela atraía pouca atenção”, afirma Andrew Puddephatt. “Hoje, ela é um meio de massa com 2,5 bilhões de usuários e tem um histórico contestado no qual se crê que ela foi capaz de auxiliar a minar governos estáveis. A democratização da liberdade de expressão levou muitos governos a tentar exercer controle sobre a internet pela criação de diversos ‘segmentos nacionais de internet’ e políticas visando às práticas de vigilância, censura e controle do acesso e do uso da internet. O compromisso inicial foi, em determinada medida, abalado. Os governos mostraram que com a capacidade técnica necessária, a vontade de empregar as habilidades técnicas, as medidas normativas e legais, e recursos consideráveis, é de fato possível romper com a natureza global e aberta da internet”, avisa o autor.
No momento da publicação, Andrew Puddephatt, que assina o texto, liderava o trabalho da Global Partners Digital sobre direitos humanos, política de comunicação e transparência. Isto inclui o apoio a grupos da sociedade civil na África, na América Latina e no Sul e Sudeste Asiático, e coordena o secretariado da Freedom On Line Coalition. Antes, foi diretor do Artigo 19, uma organização internacional de direitos humanos; presidente do International Media Support na Dinamarca; vice-presidente da Sigrid Rausing Trust; membro do Conselho de Administração do Conselho Europeu de Relações Externas.

Artigo 20

1. Todo ser humano tem direito à liberdade de reunião e associação pacífica.
2. Ninguém pode ser obrigado a fazer parte de uma associação.

Os seguidos ataques aos terreiros de religiões de matriz africana são um claro exemplo de desrespeito ao artigo 20 da Declaração Universal dos Direitos Humanos. Esses ataques são uma das manifestações de intolerância religiosa, que têm crescido muito no Brasil. Foram 583 denúncias de intolerância religiosa feitas ao Disque 100 em 2021 e 1,2 mil denúncias em 2022, um aumento de 106%. O Disque 100 acolhe denúncias de violações aos direitos humanos. A maior parte das denúncias foi a respeito de ataques a religiões de matriz africana, como umbanda e candomblé.

“Algumas religiões não compreendem a diversidade religiosa brasileira e há uma perseguição permanente principalmente à Umbanda e Candomblé”, lamenta a Dra.Alessandra Ribeiro, gestora da Casa de Cultura Fazenda Roseira e do Jongo Dito Ribeiro, em Campinas. Ela também é mãe de santo de um terreiro umbandista na própria Fazenda Roseira.

A Dra.Alessandra Ribeiro defende legislações adequadas para a proteção dos terreiros e da diversidade religiosa em geral. “Isso é fundamental em um país com um Estado que se diz laico”, observa. Ela acredita que o avanço do reconhecimento de terreiros e outros territórios como “espaços de patrimônio imaterial, como territórios de saberes” deve repercutir em mudanças de mentalidade e no enfrentamento ao racismo que ainda marca a relação de parte da sociedade quanto à diversidade religiosa brasileira.

“Uma população destituída de educação, de cultura em sua diversidade, não tem ferramentas para distinguir a verdade da mentira e é mais suscetível a ser enganada e reproduzir equívocos em relação a religiões de matriz africana, que praticam a oralidade e o respeito a uma cosmovisão ambiental, aos elementos da natureza”, completa a Dra.Alessandra Ribeiro. Ela considera que políticas afirmativas e inclusivas contribuíram para um aumento da presença e participação de intelectuais negros “em diversos setores da sociedade, pautando debates, escrevendo história, discutindo conceitos”, mas ressalta que há “um longo caminho a seguir” até o pleno respeito às religiões de matriz africana e outras expressões religiosas.

Toda atenção voltada para as  decisões tomadas em Brasília (Foto Adriano Rosa)

Toda atenção voltada para as decisões tomadas em Brasília (Foto Adriano Rosa)

Artigo 21

1. Todo ser humano tem o direito de tomar parte no governo de seu país diretamente ou por intermédio de representantes livremente escolhidos.
2. Todo ser humano tem igual direito de acesso ao serviço público do seu país.
3. A vontade do povo será a base da autoridade do governo; essa vontade será expressa em eleições periódicas e legítimas, por sufrágio universal, por voto secreto ou processo equivalente que assegure a liberdade de voto.

Em junho de 2013, milhões de brasileiros foram às ruas, em uma gigantesca confluência de reivindicações e demandas. Foi uma das maiores mobilizações na história do país. Em 2016 houve o impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff e, de lá para cá, muitas manifestações terminaram reprimidas pelo aparato policial. Várias universidades públicas também foram palco de repressão à livre expressão de ideias nos últimos  anos.

O relatório de 2017/2018 da Anistia Internacional (aqui) já sinalizava que o direito à liberdade de reunião e associação pacífica continuava sendo violado no Brasil. A organização citava as manifestações ocorridas em várias cidades, em 31 de março de 2017, contrárias às reformas propostas para a legislação trabalhista e as políticas de previdência social.

Durante o governo de Jair Bolsonaro, várias manifestações populares foram reprimidas no Brasil. No dia 29 de maio de 2021, por exemplo, houve repressão de policiais a uma manifestação contra o presidente em Recife (PE).

No período do governo de extrema-direita, foram crescentes os ataques a jornalistas no Brasil. Em 2022, último ano do governo Bolsonaro, foram 557 episódios, de acordo com levantamento da Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (ABRAJI), apresentado no relatório “Monitoramento de ataques a jornalistas no Brasil”.

Segundo o relatório, os ataques contra jornalistas cresceram 23% em 2022. Em 41,6% dos casos, houve ao menos um integrante da família Bolsonaro envolvido. Foram registrados 176 casos de agressões físicas, destruição de equipamentos, hostilizações e ameaças.

Ainda segundo a Abraji, em 2022 foram registrados 145 episódios classificados como ataques de gênero ou contra mulheres jornalistas. O número representa um aumento de 13,1% em relação a 2021, quando foram identificados 119 alertas do tipo.

“Com frequência, pessoas jornalistas foram alvos de violência verbal, principalmente nas redes sociais. Quando havia o fator gênero envolvido, foram vítimas de homofobia, transfobia, agressões ligadas à sexualidade, aparência, orientação sexual e à identidade de gênero de forma ampla. Entre os 145 alertas registrados em 2022, 45 (31%) apresentaram essas e outras formas de violência explícita de gênero”, completa o relatório da Abraji.

Artigo 22

Todo ser humano, como membro da sociedade, tem direito à segurança social, à realização pelo esforço nacional, pela cooperação internacional e de acordo com a organização e recursos de cada Estado, dos direitos econômicos, sociais e culturais indispensáveis à sua dignidade e ao livre desenvolvimento da sua personalidade.

Segurança social é tudo o que a população em situação de rua, de Campinas ou outra grande cidade brasileira, aparentemente não têm. Mas a Constituição Federal, em seu artigo 196, é clara: “A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação”.

Os artigos 194 e 195, por sua vez, se referem à seguridade social. “A seguridade social compreende um conjunto integrado de ações de iniciativa dos Poderes Públicos e da sociedade, destinadas a assegurar os direitos relativos à saúde, à previdência e à assistência social”, diz o artigo 194. “A seguridade social será financiada por toda a sociedade, de forma direta e indireta, nos termos da lei, mediante recursos provenientes dos orçamentos da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, e das contribuições sociais”, estipula o artigo 195.

Todos os cidadãos brasileiros têm, portanto, de acordo com a Constituição, direito à saúde e à seguridade social, refletindo o que a Declaração Universal dos Direitos Humanos prevê. Em Campinas, o Fórum da População em Situação de Rua busca ampliar o debate e dar visibilidade ao tema. Esforços especiais foram feitos ao longo do ano de 2015, quando 15 moradores de rua morreram na cidade, em diferentes circunstâncias.

Grupos diversos, em todo país, tendo como referência a Constituição de 1988, têm-se empenhado pela segurança social para todos os cidadãos brasileiros, inclusive os moradores de rua. É o caso do Ministério Público de Minas Gerais, que lançou a cartilha “Direitos do Morador de Rua – Um guia na luta pela dignidade e cidadania” (aqui).

Na cartilha, o MP-MG lembra, entre outros, que “todo cidadão tem direito à garantia de sua promoção social, e é por meio da Política Nacional de Assistência que você garante o direito de ser atendido por uma rede de acolhida e serviços: abordagem de rua, centros de referência, casas de acolhimento (repúblicas, pensão), encaminhamento para retirada de documentos e projetos de inclusão produtiva”.

Sede da OIT em Genebra, Suíça (Foto Divulgação)

Sede da OIT em Genebra, Suíça (Foto Divulgação)

Artigo 23

1. Todo ser humano tem direito ao trabalho, à livre escolha de emprego, a condições justas e favoráveis de trabalho e à proteção contra o desemprego.
2. Todo ser humano, sem qualquer distinção, tem direito a igual remuneração por igual trabalho.
3. Todo ser humano que trabalha tem direito a uma remuneração justa e satisfatória que lhe assegure, assim como à sua família, uma existência compatível com a dignidade humana e a que se acrescentarão, se necessário, outros meios de proteção social.
4. Todo ser humano tem direito a organizar sindicatos e a neles ingressar para proteção de seus interesses.

O direito ao trabalho não tem sido plenamente observado no país ao longo da história. Afirma o sindicalista José Osmir Bertazzoni, que há anos integra a delegação brasileira junto à Organização Internacional do Trabalho (OIT), em Genebra: “Muitas convenções internacionais em que o Brasil se fez signatário ainda não foram internalizados por legislação específica. Nesse aspecto destaco a Convenção 151 da OIT que regulamenta a convenção coletiva e a greve do serviço público e a Convenção 169 da OIT sobre povos indígenas e tribais, adotada na 76ª Conferência Internacional do Trabalho em 1989. Ela foi ratificada pelo Brasil, porém, as barbáries contra o povo yanomami, vitimado por genocídio, são marca indiscutível dos mecanismos com que o Estado brasileiro tratou esse assunto”.

Outra situação que deixa o Brasil em situação desconfortável perante a comunidade internacional, adverte o sindicalista, é que a Organização Internacional do Trabalho (OIT) decidiu colocar o Brasil na lista dos 24 casos que entende como as principais violações de suas convenções trabalhistas no mundo. Segundo a entidade, a reforma trabalhista viola convenções internacionais. O Brasil é signatário de 80 convenções da OIT.

José Osmir Bertazzoni foi um dos mais de 4.700 participantes da 103ª Conferência Anual da Organização Internacional do Trabalho (OIT), realizada em Genebra, na Suíça, entre 28 de maio e 12 de junho de 2014. Foi nesse evento a aprovação do Protocolo da OIT à Convenção de 1930 sobre o Trabalho Forçado. O Brasil ainda não ratificou esse Protocolo, o que tem impactado no enfrentamento do trabalho análogo à escravidão.

Bertazzoni integrou a delegação brasileira como diretor jurídico da Nova Central Sindical de Trabalhadores (NCST), uma das centrais representadas no evento. A delegação tripartite tinha ainda representantes do governo brasileiro e do setor empresarial. São os três segmentos integrantes da OIT.

O sindicalista lembra que por anos o Brasil está inadimplente com a OIT e isso impacta diretamente na atuação dos representantes dos trabalhadores na organização que é a condutora global da luta contra a escravidão contemporânea. A OIT já considerou o Brasil uma referência em ações contra as situações análogas à escravidão.

Em função da inadimplência, não ocorre por exemplo a tradução simultânea para o português dos debates nas conferências e outros eventos. Essa situação “limita muito a participação de líderes sindicais importantes do nosso país, que possuem dificuldades de acompanhar os debates”, observa Bertazzoni. Ele observa que o governo e o setor empresarial pagam tradutores particulares.

Artigo 24


Todo ser humano tem direito a repouso e lazer, inclusive a limitação razoável das horas de trabalho e a férias remuneradas periódicas -

A reforma trabalhista, nos termos da Lei 13.467/2017, afetou o direito ao repouso e lazer no Brasil, alerta o ex-diretor de Documentação do Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar (DIAP), Antônio Augusto Queiroz. A nova legislação entrou em vigor no dia 11 de novembro de 2017.

O ex-diretor do DIAP cita a cartilha “Reforma trabalhista e seus reflexos sobre os trabalhadores e suas entidades representativas”, produzida pelo DIAP, na página 41: “É assegurado ao trabalhador, em qualquer atividade contínua, cuja duração exceda seis horas, um intervalo para alimentação ou repouso, que poderá ser reduzido. Antes da “reforma”, o intervalo era de, no mínimo, uma hora, e, no máximo, de duas horas diárias, podendo ser superior por acordo entre as partes. Com a nova lei, acordo ou convenção coletiva poderá reduzir esse intervalo para 30 minutos. E nas jornadas situadas entre 4 e 6 horas, é obrigatório um intervalo de 15 minutos. Exceto em situações que não prejudiquem a saúde e que sejam vantajosas para o trabalhador, como nos casos de refeições servidas no local de trabalho ou próximo ao serviço e o empregado puder deduzir esse tempo de sua jornada normal, não se deve aprovar acordo ou convenção coletiva com essa finalidade. Destaque-se que o período de 30 minutos não atende às necessidades físicas de recomposição, trazendo riscos ao trabalhador”.

O direito às férias, da mesma forma, foi afetado. Diz a cartilha, na página 42: “As férias são um direito do trabalhador que devem ser gozadas nos 12 meses subquentes à data em que o direito foi adquirido, e sua remuneração deve ser acrescida de um terço. Como regra são concedidas pelo empregador por um período de 30 dias corridos ou, em caso excepcional, divididas em dois períodos, nenhum dos quais poderá ser inferior a 10 dias corridos. Com a nova lei, desde que haja concordância do empregado, as férias poderão ser usufruídas em até três períodos, sendo que um deles não poderá ser inferior a 14 dias corridos e os demais não poderão ser inferiores a cinco dias corridos, cada um. O empregado, como titular do direito às férias, deve sempre procurar a melhor forma e o melhor período para gozá-las, integral ou parceladamente, mas a sua divisão ou não deve ser uma decisão do trabalhador. Nas atividades em que há férias coletivas, é sempre importante uma cláusula no acordo para preservar o interesse da categoria, em geral, e do trabalhador, em particular”.

Albamaria Abigalil: Convenção representa importante mudança de paradigma (Foto Divulgação)

Albamaria Abigalil: Convenção representa importante mudança de paradigma (Foto Divulgação)

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Artigo 25

1. Todo ser humano tem direito a um padrão de vida capaz de assegurar a si e à sua família saúde, bem-estar, inclusive alimentação, vestuário, habitação, cuidados médicos e os serviços sociais indispensáveis e direito à segurança em caso de desemprego, doença invalidez, viuvez, velhice ou outros casos de perda dos meios de subsistência em circunstâncias fora de seu controle.
2. A maternidade e a infância têm direito a cuidados e assistência especiais. Todas as crianças, nascidas dentro ou fora do matrimônio, gozarão da mesma proteção social.

A população de pessoas idosas brasileiras, cada vez maior, tem sido uma das maiores vítimas do descumprimento do artigo 25 da Declaração Universal dos Direitos Humanos. Vários indicadores confirmam a grave situação social da pessoa idosa no Brasil. Em 2020, 69% da população idosa recebia até dois salários mínimos por mês, contra 59% da população em geral, segundo a Pesquisa Idosos no Brasil, realizada pelo Serviço Social do Comércio (SESC) e Fundação Perseu Abramo.

Segundo a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), cerca de 70% dos óbitos por Covid-19 no Brasil foram de pessoas de 60 anos ou mais. Com mais de 700 mil óbitos, o Brasil teve um dos maiores números de mortes pela pandemia no planeta.

Uma das referências na luta pelos direitos das pessoas idosas no Brasil, a ex-Secretária Nacional da Promoção Social, a assistente social Albamaria Abigalil, defende que para a plena garantia desses direitos são necessárias várias medidas. Uma delas é a ratificação da Convenção Interamericana sobre a Proteção dos Direitos Humanos das Pessoas Idosas.

O Brasil foi um dos países que assinaram a Convenção, no dia 15 de junho de 2015, mas com a não-ratificação ainda não houve a internalização dos princípios previstos no instrumento jurídico. Depois da assinatura, o envio da Convenção, pela Presidência da República do Brasil, para o Congresso Nacional, aconteceu somente no dia 25 de outubro de 2017, através do ministro da Casa Civil, Eliseu Padilha.

A mensagem do Poder Executivo recebeu parecer favorável da Comissão de Relações Exteriores e de Defesa Nacional da Câmara dos Deputados e foi transformada no Projeto de Decreto Legislativo 863/2017. No dia 7 de fevereiro de 2018 foi encerrado o prazo de vistas ao processo.

Posteriormente, o Projeto foi aprovado pela  Comissão de Constituição e Justiça e Cidadania e pela Comissão de Defesa dos Direitos da Pessoa Idosa. Depois de ter a tramitação paralisada por cinco anos, o Projeto de Decreto Legislativo 863/2017 voltou à Ordem do Dia da Câmara dos Deputados no início de agosto de 2023. Albamaria Abigalil defende a ratificação o mais breve possível.

“A Convenção reafirma a mudança de paradigma do processo de envelhecimento, anteriormente concebido na perspectiva biológica, centrada na doença, para a perspectiva da cidadania, do acesso aos direitos e à educação continuada, no curso da vida, na definição clara do papel do Estado, da pessoa idosa, da família, da sociedade, bem como da necessidade de garantir o Sistema de Proteção Social, de Seguridade Social, com políticas de Estado, não de governo, e de caráter universal. Reafirma ainda a dimensão hemisférica de todos os países envolvidos, assegura a plena vigência dos direitos das pessoas idosas, considerando suas necessidades humanas e especificidades, quer sejam de gênero, raça, etnia, classe social ou renda”, diz Albamaria. Ela integrava o Conselho Nacional e Defesa dos Direitos das Pessoas Idosas (CNDI) quando o Brasil teve ativa participação no processo de estruturação e aprovação da Convenção Interamericana sobre a Proteção dos Direitos Humanos das Pessoas Idosas.

Com a entrada em vigor da Convenção, continua Albamaria, os Estados membros “devem adotar medidas para efetivarem os direitos das pessoas idosas, quer no âmbito da legislação, quer na perspectiva da reestruturação de um Sistema de Proteção Social, de uma Rede de Defesa e de Proteção dos Direitos das Pessoas Idosas, com financiamento das políticas sociais na ótica do investimento social, na perspectiva do envelhecimento digno, saudável, ativo e cidadão para esta e para as demais gerações”.

 

Andressa Pellanda, da Campanha Nacional: pelo pleno direito à Educação no Brasil (Foto Divulgação)

Andressa Pellanda, da Campanha Nacional: pelo pleno direito à Educação no Brasil (Foto Divulgação)

Artigo 26

1. Todo ser humano tem direito à instrução. A instrução será gratuita, pelo menos nos graus elementares e fundamentais. A instrução elementar será obrigatória. A instrução técnico-profissional será acessível a todos, bem como a instrução superior, esta baseada no mérito.
2. A instrução será orientada no sentido do pleno desenvolvimento da personalidade humana e do fortalecimento do respeito pelos direitos do ser humano e pelas liberdades fundamentais. A instrução promoverá a compreensão, a tolerância e a amizade entre todas as nações e grupos raciais ou religiosos e coadjuvará as atividades das Nações Unidas em prol da manutenção da paz.
3. Os pais têm prioridade de direito na escolha do gênero de instrução que será ministrada a seus filhos.

O artigo 26 da Declaração Universal dos Direitos Humanos está refletido no artigo 206 da Constituição Federal de 1988, que determina que a educação deve ser voltada para a formação para a cidadania, para o trabalho e para a integralidade dos sujeitos. “Infelizmente, essa completude do direito não tem sido observada para a maioria da população brasileira, que não tem acesso adequado a uma educação de qualidade; maioria essa que é negra, empobrecida, residente em periferias, nos campos, e nas margens, em um dos países mais desiguais do mundo”, adverte Andressa Pellanda, coordenadora  geral da Campanha Nacional pelo Direito à Educação e integrante da Rede de Ativistas pela Educação do Fundo Malala. “O enfrentamento às desigualdades, não somente nas políticas educacionais, mas também nas demais políticas sociais, é crucial para que possamos reverter esse cenário”, destaca Andressa Pellanda, doutoranda em Relações Internacionais (IRI/Universidade de São Paulo-USP), pós-graduada em Ciência Política (FESP/SP) e bacharel em Comunicação Social, com habilitação em Jornalismo (ECA/USP).

A Campanha Nacional pelo Direito à Educação (Campanha) foi criada em 1999, impulsionada por um conjunto de organizações da sociedade civil que participaria da Cúpula Mundial de Educação em Dakar (Senegal), no ano 2000. O propósito era aglutinar diferentes forças políticas, priorizando ações de mobilização, pressão política e comunicação social, em favor da defesa e promoção dos direitos educacionais. Hoje a Campanha é credenciada como a  articulação mais ampla e plural no campo da educação no Brasil, constituindo-se como uma rede que articula centenas de grupos e entidades distribuídas por todo o país.

Com pesquisas regulares sobre sua área de atuação, a Campanha monitora por exemplo a execução do Plano Nacional de Educação (PNE), lançado em 2014 e que estipula uma série de 20 grandes metas para serem alcançadas até 2024. Pois o mais recente estudo a respeito da Campanha, divulgado em junho de 2023,  mostrou que 90% das metas do Plano Nacional de Educação não serão cumpridas.

“O que mais preocupa é que mais da metade do Plano está em retrocesso (13 de 20 metas)”, alerta Andressa Pellanda. “Elas se referem a: universalização do atendimento à Educação Infantil, Ensino Fundamental e Ensino Médio; oferta da Educação em tempo integral na educação básica; erradicação do analfabetismo; valorização dos profissionais do magistério das redes públicas da Educação Básica; acesso ao Ensino Superior; e ampliação do investimento público à educação pública com o equivalente a 10% do PIB (Produto Interno Bruto) do país”, resume a coordenadora da Campanha Nacional pelo Direito à Educação.

Segundo o estudo da Campanha, uma das situações mais preocupantes se refere à Meta 1, prevendo que em 2024 a porcentagem de crianças brasileiras de até 3 anos frequentando escolas ou creches deveria ser igual a 50%. “De 2014 a 2022, essa porcentagem foi de 29,6% para 37,3%, configurando um ritmo de avanço médio insuficiente para atingir esse objetivo dentro do prazo”, afirma o estudo da Campanha. No caso das crianças de 4 e 5 anos, a Meta 1 do Plano Nacional de Educação estipulava que até 2016 haveria universalização do acesso dessas faixas etárias à educação infantil. Em 2022, contudo, a universalização ainda não havia sido alcançada.

Muita preocupação, igualmente, com a Meta 3, prevendo a universalização do acesso de jovens de 15 a 17 anos ao Ensino Médio até 2016. Cinco anos depois do prazo, porém, meio milhão de jovens dessa faixa etária estava fora da escola, conforme o estudo da Campanha Nacional.

Apenas essas duas Metas não cumpridas do PNE confirmam que o direito à educação não é plenamente implementado no Brasil. A Campanha Nacional já está agora se mobilizando para o próximo Plano Nacional de Educação, para o período de 2025-2035. Será um PNE com os imensos desafios derivados da pandemia de Covid-19 e dos impactos do governo Bolsonaro, onde também na Educação houve vários retrocessos.

Para Andressa Pellanda, para que o próximo PNE seja efetivamente implementado, “é preciso, primeiramente, não retroceder no texto da Lei. O PNE não estar sendo cumprido não é por conta da legislação, que pretende ultrapassar o fosso de desigualdade histórica e, portanto, precisa seguir como compromisso. É importante para o novo Plano garantir que ele seja cumprido desde o início, seguindo seu processo progressivo de cumprimento e não ter algumas de suas metas escolhidas aleatoriamente como um cardápio. Ainda, será basilar cumprir com sua meta de financiamento adequado, condição mínima para o cumprimento de todo o PNE. E, por fim, precisaremos que as políticas sociais caminhem de forma intersetorial, garantindo também uma política econômica a serviço delas”, conclui a coordenadora da Campanha Nacional pelo Direito à Educação.

Outros estudos confirmam a evidente desigualdade estrutural na sociedade brasileira, também no âmbito da Educação. Uma análise do movimento Todos pela Educação revelou que entre 2012 e 2022 o percentual de alunos brancos de 15 a 17 anos que concluíram o Ensino Médio cresceu de 73% para 82,1%. Entre alunos negros, a proporção subiu de 52,8% para 72,3%. No caso dos alunos pardos, o percentual avançou de 57,4% para 73,5%. Ou seja, os números de acesso entre alunos negros e pardos eram, em 2022, semelhantes aos dos alunos brancos dez anos antes.

“Apesar dos avanços, a desigualdade étnico-racial ainda permeia todo o nosso sistema educacional no Brasil. Os números revelam o resultado de um ciclo de exclusão de jovens pretos e pardos que, no contexto educacional, também é determinado por décadas de ausência de políticas intencionalmente voltadas à equidade das relações étnico-raciais”, declarou Gabriel Corrêa, diretor de Políticas Públicas do Todos Pela Educação, no momento de lançamento público do estudo.

Artigo 27


1. Todo ser humano tem o direito de participar livremente da vida cultural da comunidade, de fruir as artes e de participar do progresso científico e de seus benefícios.

2. Todo ser humano tem direito à proteção dos interesses morais e materiais decorrentes de qualquer produção científica literária ou artística da qual seja autor.

Universitários dialogando com a cultura griô, orquestra de violinos na favela da Mangueira (RJ), mídia livre, quilombolas trabalhando com cultura digital, pontinhos de cultura para crianças – estes foram alguns ingredientes da teia da Cultura Viva, que passou a ser esvaziada no governo de Michel Temer, após o impeachment da presidente Dilma Rousseff, em 2016. Depois o desmonte da Cultura Viva continuou, no governo de Jair Bolsonaro.

Cultura Viva é o conceito que evoluiu e se tornou política pública em vários países do continente a partir da experiência implementada na gestão de Gilberto Gil no Ministério da Cultura, em grande parte dos primeiros governos de Luiz Inácio Lula da Silva (2003-2008). O apoio e a valorização de projetos e produtos culturais nascidos das comunidades são um dos pilares do Cultura Viva, destaca Marcelo Ricardo Ferreira, o Marcelo das Histórias.

Um dos criadores do Ponto de Cultura Nina e da Rede Usina, ambos de Campinas, Marcelo foi um dos organizadores do III Congresso Latino-Americano de Cultura Viva Comunitária, realizado entre os dias 20 a 26 de novembro de 2017 em Quito, no Equador. Desde então, tem sido um dos principais articuladores da garantia de políticas para a área cultural, inclusive durante a pandemia de Covid-19. Para Marcelo das Histórias, a Cultura Viva Comunitária é uma resposta e um roteiro a seguir, para a superação do paradoxo que marca a riqueza artística e cultural do Brasil.

“O Brasil é um país bem contraditório é explícito na sua vida cultural e científica. Para uma parcela bem pequena da população brasileira que lucra e usufrui da globalização de consumo e comportamento, podemos supor que exerce seus direitos culturais e o acesso aos benefícios científicos. Mas se olharmos com rigor para a história de nossa nação e os seus resultados presentes, veremos que a maioria da nossa população tem seus direitos culturais e científicos suprimidos de forma brutal”, ressalta Marcelo.

Ele enumera as razões pelas quais a democratização dos bens culturais e científicos ainda está distante do conjunto da população. “Isso se dá primeiramente pelas precárias condições materiais de sobrevivência da maioria do população e por interesses econômicos em limitar o povo brasileiro na condição de consumidoras de uma cultura globalizada, que massacra a identidade e ancestralidade brasileira. Existe um rompimento civilizatório com os povos indígenas e afro brasileiros tanto na questão da demarcação de terras quanto preservação de sua culturas”, lamenta um dos fundadores do Ponto de Cultura Nina, exemplo de grupo cultural impulsionado pelo Cultura Viva.

“Isso é feito por um pacto das elites econômicas que fazem que a nossa educação seja eurocêntrica e instrumentalizada para formar mão de obra barata e uma população sem repertório sobre seus direitos sociais e culturais”, lamenta Marcelo das Histórias. “Nesta realidade os órgãos governamentais de cultura e ciência têm orçamentos insignificantes e comprometido com os projetos das elites . Mas esta sucessiva violação de direitos culturais é combatida diariamente pelos povos tradicionais , periféricos e comunitários e hoje tem inúmeras organizações e movimentos sociais que formulam soluções de políticas públicas, enfrentamentos jurídicos e ações independentes nos territórios para desenvolvimento cultural e criativo”, completa..

O Nina é um dos mais de 3.500 pontos de cultura, atingindo mais de 8 milhões de pessoas, que receberam apoio oficial durante a gestão de Célio Turino à frente do Cultura Viva, durante a gestão de Gilberto Gil no Ministério da Cultura. O Nina e muitos outros pontos de cultura continuam atuantes, pela força de seus integrantes e pela sua interação com a vida comunitária.

Artigo 28

Todo ser humano tem direito a uma ordem social e internacional em que os direitos e liberdades estabelecidos na presente Declaração possam ser plenamente realizados.

Para muitos defensores dos direitos humanos, a existência e a permanência de uma ordem internacional marcada pela assimetria no respeito aos direitos básicos de cidadania são uma das causas fundamentais das violações que continuam sendo cometidas em grande parte do planeta.

Para o advogado Paulo Tavares Mariante, que atuou em órgãos como o Conselho Estadual de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana de São Paulo (CONDEPE) e Conselho Nacional dos Direitos Humanos (CNDH), é preciso considerar que a Declaração Universal “encontra limites bastante objetivos em uma ordem econômica injusta, num sistema capitalista concentrador de riqueza e espoliador da classe trabalhadora e da maioria dos povos pelo planeta”.

O advogado nota que, “não bastassem as heranças que temos em nossa história referentes a guerras colonialistas ou imperialistas, inclusive a II Grande Guerra cujo horror e barbárie estimulou o próprio surgimento da Declaração, vemos que a cada crise do sistema capitalista acirram-se sintomas como o apoio a ideias fascistas, xenófobas, racistas, machistas, lgbtifóbicas, dentre outras intolerâncias”.

O pensador indígena Ailton Krenak, por sua vez, diz temer que, em futuro breve, o sentido histórico da Declaração Universal dos Direitos Humanos seja o mesmo daquele apontado por Carlos Drummond de Andrade, em relação à sua cidade natal, a mineira Itabira, no famoso poema “Confidência de um itabirano”. No poema, Drummond afirma, nos dois últimos versos: “Itabira é apenas uma fotografia na parede. Mas como dói!” “A Declaração Universal dos Direitos Humanos também pode terminar como uma fotografia dolorida na parede”, lamenta Ailton Krenak, autor de livros como “Ideias para adiar o fim do mundo” e “Futuro Ancestral”, ambos pela Companhia das Letras.

Artigo 29

1. Todo ser humano tem deveres para com a comunidade, na qual o livre e pleno desenvolvimento de sua personalidade é possível.
2. No exercício de seus direitos e liberdades, todo ser humano estará sujeito apenas às limitações determinadas pela lei, exclusivamente com o fim de assegurar o devido reconhecimento e respeito dos direitos e liberdades de outrem e de satisfazer as justas exigências da moral, da ordem pública e do bem-estar de uma sociedade democrática.
3. Esses direitos e liberdades não podem, em hipótese alguma, ser exercidos contrariamente aos objetivos e princípios das Nações Unidas.

Todos, indivíduos, sociedade e governos, têm o dever de defender os direitos humanos, mas para o fundador e presidente do Movimento de Justiça e Direitos Humanos, Jair Krischke, essa missão enfrenta maiores dificuldades considerando que “no Brasil o maior violador desses direitos é o Estado”.

É o Estado brasileiro, “considerando a União, os governos estaduais e municipais, que viola os direitos humanos básicos porque não cuida das crianças, porque abandona os idosos a sua própria sorte, porque não cuida da educação e nem da saúde”, continua. “Estamos atrasadíssimos nisso e então todos temos o dever de cobrar do Estado, do presidente da República, dos governadores e prefeitos, seja de que partido for, para que os direitos previstos em documentos como a Declaração Universal e na própria Constituição Federal sejam respeitados”, completa Krischke.

 Crianças lendo a Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH), pouco após sua adoção. (Foto: Arquivo da ONU, no site das Nações Unidas)


Crianças lendo a Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH), pouco após sua adoção. (Foto: Arquivo da ONU, no site das Nações Unidas)

Artigo 30

Nenhuma disposição da presente Declaração poder ser interpretada como o reconhecimento a qualquer Estado, grupo ou pessoa, do direito de exercer qualquer atividade ou praticar qualquer ato destinado à destruição de quaisquer dos direitos e liberdades aqui estabelecidos.

Passados 75 anos, acadêmicos e defensores dos direitos humanos consideram que o artigo 30 da Declaração, assim como os outros 29, dependem muito de uma reforma no próprio sistema internacional de proteção aos direitos humanos. Este seria um grande desafio para o século 21.

“Não restam dúvidas de que o descompromisso da maior parte dos estados-membros da ONU – a começar pelo poderoso Estados Unidos da América e sua abjeta política anti-imigração – com a implementação concreta da Declaração Universal dos Direitos Humanos é um permanente desafio às pessoas que lutam pelos direitos humanos por todo o mundo”, assinala o advogado Paulo Tavares Mariante, que integrou a primeira composição da Comissão Nacional da Diversidade Sexual da Ordem dos Advogados do Brasil – Conselho Federal e eleito presidente, em dezembro de 2011, do então recém-instalado Conselho Municipal de Direitos Humanos e Cidadania de Campinas, sendo reeleito em 2013 para a mesma função.

Mariante salienta que “esta reflexão sobre nossas dificuldades não pode ser tomada como sinal de desânimo, já que as barbáries do passado e do presente exigem de todas/os nós a continuidade intransigente da luta pelo respeito dos direitos humanos, e neste sentido a Declaração Universal dos Direitos Humanos segue como uma bandeira viva em nossos corações e mentes”.

O pensador indígena Ailton Krenak é mais cético. “O que nós temos visto não é o respeito à Declaração Universal dos Direitos Humanos ou, no caso brasileiro, à Constituição. Pelo contrário, é por exemplo o avanço do genocídio do povo Kaiowá-Guarani e a continuidade de práticas anti-indígenas, apesar de todos os alertas nas Nações Unidas, que não conseguem fazer nada diante do poder das corporações”, denuncia Krenak.

O presidente do Movimento de Justiça e Direitos Humanos (MJDH), Jair Krischke, entende ser muito saudável, para o presente e futuro da democracia brasileira, o resgate dos conceitos associados a direitos humanos. “Em todos os nossos países vizinhos, como Argentina e Uruguai, há um respeito muito grande com a noção de direitos humanos. No Brasil, não. Aqui direitos humanos ganharam um sentido pejorativo e muito disso se deve à ação de comunicadores de rádio e televisão que há muito tempo vinculam direitos humanos com direitos de bandidos, distorcendo e esvaziando completamente o seu significado”, protesta Krischke.

Para ele, grande parte da tarefa de recuperação da essência dos direitos humanos no Brasil está nas mãos dos profissionais que praticam o jornalismo ao pé da letra, com investigação profunda, espírito crítico e contextualização dos fatos.

Dra. Alessandra Ribeiro, a líder da Comunidade Jongo Dito Ribeiro: é preciso avançar muito para a igualdade de fato (Foto José Pedro S.Martins)

Dra. Alessandra Ribeiro, a líder da Comunidade Jongo Dito Ribeiro: é preciso avançar muito para a igualdade de fato (Foto José Pedro S.Martins)

Um dos motivos do desrespeito aos direitos humanos no Brasil é o desconhecimento em relação à própria Declaração Universal dos Direitos Humanos, promulgada pelas Nações Unidas no dia 10 de dezembro de 1948. “Antes tínhamos iniciativas como a do poeta amazonense Thiago de Mello, para popularizar a Declaração, mas agora, nem isso”, protesta o autor indígena Ailton Krenak.

Após o golpe militar de 31 de março de 1964, e de ter renunciado ao posto de adido cultural no Chile, Thiago de Mello publicou “Os Estatutos do Homem”, poema que foi uma inspiração aos grupos que resistiram à ditadura. Baseado na Declaração Universal dos Direitos Humanos, os Estatutos são uma celebração poética da vida e da liberdade. “Fica decretado que agora vale a verdade/ agora vale a vida,/ e de mãos dadas,/ marcharemos todos pela vida verdadeira”, diz o primeiro dos 14 artigos dos Estatutos (aqui).

Outro grande divulgador da Declaração Universal dos Direitos Humanos foi o ex-cardeal-arcebispo de São Paulo, D.Paulo Evaristo Arns, falecido em 14 de dezembro de 2016, aos 95 anos. Personagem central da oposição ao regime militar, D.Paulo determinou a impressão e distribuição de milhares de exemplares da Declaração, no período mais crítico da ditadura.

O consenso é o de que o documento das Nações Unidas ainda merece ampla divulgação, e sobretudo aplicação por meio de políticas públicas, inclusive porque as conquistas obtidas na Constituição Cidadã de 5 de outubro de 1988, que garantiam muitos direitos previstos na Declaração Universal, vêm sendo bombardeadas e derrubadas em volume e velocidade preocupantes, com maior intensidade no período do governo federal de 2019 a 2022.

“Houve muitos retrocessos nos últimos anos. Em razão de um governo desrespeitoso, negacionista, desumanizado, muitas pessoas perderam a vergonha de serem homofóbicas, racistas, sexistas, e o resultado tem sido o aumento dos feminicídios, dos ataques a terreiros, das agressões aos indígenas, à população LGBTQIA+. Precisamos de um novo letramento político, pela compreensão social, o respeito à diversidade”, afirma a Dra.Alessandra Ribeiro, em uma síntese dos enormes desafios para o Brasil no momento em são lembrados os 75 anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos, referência permanente para os desejados avanços civilizatórios.

 

 

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