“Oi, queridas!” foi o título do segundo encontro realizado na edição de 2018 do projeto “papos de versos”, do poeta Rafa Carvalho, que este ano chega a São Paulo por primeira vez, numa co-curadoria com o Sesc Belenzinho. Reunindo a escritora Ana Maria Gonçalves, autora de “Um defeito de cor” e do texto para teatro “Tchau, querida!”, com as poetas Jô Freitas, Luiza Romão e a sambista Ericah Azeviche, a conversa – de cujo título dialoga diretamente com o texto de Ana Maria, bem como com toda a situação de impeachment da presidenta Dilma Rousseff em 2016 – aconteceu em pleno fervor das discussões sobre colorismo motivadas pela encenação de Dona Ivone Lara no musical que começa a ser produzido sobre a vida da artista.
Mediador dos “papos”, Rafa absteve-se desta vez, ficando a função entregue a Ana Maria Gonçalves, que conduziu toda a conversa com suas mais jovens. Quando perguntado sobre todo este panorama, o poeta diz: (…) Sinto que estamos num momento chave do mundo. De achar o balanço entre o enfrentamento e a resiliência; a colocação de si mesmo na Terra, como voz ativa, mas também como ouvinte; como ser histórico nunca alheio a nada, mas também sem maior destaque, ou seja, tão protagonista quanto todas as demais pessoas, na história corrente de nossa humanidade. Eu sendo homem preciso ouvir o que as mulheres têm a dizer sobre ser e estar mulher hoje. Eu, não sendo um negro retinto, tenho que ouvir o que as pessoas negras retintas têm a dizer, sobre como se sentem diante dos fatos atuais. São propriedades que eu não tenho. Logo, sinto que precisemos tratar menos o mundo como narradores oniscientes em primeira pessoa, sabe? Ao mesmo tempo, quando dizemos, é preciso estarmos atentos à responsabilidade que isto é. Este momento na História nos trouxe um pouco mais a sensação de direito à voz, com as virtualidades todas, as redes e suas conexões. Mas isto nos deu também acesso a uma velocidade inédita: e é muito mais difícil ser sábio, em menos tempo.”
Pedindo que continuasse: “(…) Ouvir é importante. Ana Maria, por exemplo, me atentou ao fato de como chamar às mulheres ‘queridas’, pode ter – e muitas vezes tem – uma forte carga de machismo. Isso me fez olhar para a minha vida, postura e ao próprio título da conversa de outra forma. Por outro lado, acredito que o querer bem faça sim parte de nossa revolução real possível. Deveríamos, numa utopia, ser todas pessoas queridas, umas às outras. E se fosse assim, dizer, não seria mesmo necessário. Todavia, como ainda não chegamos lá, esse ato de dizermos, nos chamarmos, sendo verdadeiro pode querer ressoar dentro da gente; e ser importante por isso. Sente? Há muitas nuances nos assuntos. Precisamos tentar o máximo de integridade nas nossas intenções, coerência nos atos e abertura à mudança. Vamos errar. Vamos errar muito. É improvável não errar, por mais boa vontade e empenho que haja. Pois é certo que ainda carregamos muitas visões imprecisas, muitos arbítrios injustos em nossas estruturas internas. E precisamos transcender a isso o quanto antes.”
Seguimos perguntando como se daria essa transcendência: “(…) Eu não sei! Mas ter calma, apesar da urgência, pode nos ajudar a efetivar os rumos. Sinto que certas disputas são capitalistas e só servem ao Capitalismo. Nós cabemos no mundo. Com consciência, nós cabemos. Com disposição para isto. Há espaço e comida pra todas. Recurso e riqueza pra serem usados com sabedoria. Por todas. Tem que haver lugar pra todo mundo. Não se trata de disputar espaços da pirâmide, mas sim de destruí-la. A Terra é uma roda. Enquanto este for o sistema, é preciso considerá-lo, dialogar com seus contextos sim, mas precisamos lutar para não faltar lugar a ninguém, nem respeito, estima e consideração. Ideias que nos fariam ter de lutar contra toda a dinâmica, que impõe esta ordem vigente. Este deveria, vai ver, ser o foco central de nossa luta, sem distrações. Uma pessoa precisa ter lugar por ser uma pessoa, não por ser ‘a bola da vez’. Às vezes, seguimos sendo apropriados sem sequer notarmos. Com os mesmos de sempre lucrando, sobre fantoches que vão variando. E sem a menor ciência de ainda tratar de fantoches, meramente. É assim que a direita nem transpira, fazendo com que a esquerda se desbanque sozinha. Até que ponto é possível ser tão revolucionário, justo e certo, atuando no Facebook? Pegando Uber? Não importando pra que lado, é como se estivéssemos constantemente assassinando a complexidade humana e terrena. Um epistemicídio recorrente de nossa existência. Assim só é possível avançar pro mesmo buraco de todas vezes. Ana Maria também citou o Millôr em ‘o Brasil tem um grande passado pela frente’. Eu acredito nisto: encontrarmos nossas raízes fundamentais. A epistemologia que reconheço em minha matriz africana, indígena, oriental média, profunda, mediterrânea, ibérica, toda ela, em essência. Como é que a nossa barquinha chega onde se deve? Parando de desviar. É simples assim. Ninguém vai mais inventar a roda: a Terra está aí. E daí, com isto, acredito em mais três coisas: 1- na meninada que veio e vem – mas com raízes; sem elas seria só mais buraco; 2- no amor: por achar que é este o nome da verdadeira consciência; e se a gente for capaz disto, pensaremos se é mesmo necessário atirar pedras e, quando for, ainda assim, é com amor que atiraremos; e 3- na pieguice: porque, vai ver, no final das contas, algumas respostas eram mesmo cafonas, piegas, bem como muita poesia, fazer o quê?”
Nesta terça-feira próxima, dia 12 de junho, o “papos de versos” segue com Rafa recebendo o cantor, compositor e instrumentista Rodrigo Campos, o ator e poeta Emerson Alcalde e o projeto cultural Samba no Asfalto. É onde o encontro aprofunda as ideias sobre Samba e Poesia e entra, seguindo sua linha de curadoria, no contexto específico da região, na capital paulista. Todos os convidados, inclusive o curador radicado em Campinas, são oriundos da zona leste paulistana e, segundo o texto de apresentação da edição em 2018, falar de lá é como falar do mundo. Há também o fato do projeto defender a poesia onde há poesia, como em seu mote principal. E, uma vez acontecendo ali, não seria preciso sair para se chegar ao seu fundamento: essa poética da vida, do mundo e da gente.
Finalizamos pedindo que Rafa Carvalho comentasse um pouco a participação dos convidados desta terça-feira; bem como o “papos de versos” se firmaria em São Paulo, como evento literário, em toda sua abordagem ampla e não especificamente literária; além de haver ou não perspectivas de mais temas polêmicos na edição deste ano, como a própria questão geográfica, periférica, e também em função de outros acontecimentos recentes, feito o que repercutiu consideravelmente, atribuindo a um cantor sertanejo uma fala sobre o Samba ser “coisa de bandido”:
“(…) Bom, sobre os convidados é sempre uma sorte. Rodrigo Campos tem um trabalho que admiro muito, consistente no cenário musical atual e bastante autêntico. Me identifico muito, com muito do que vejo nele. Emerson Alcalde é um grande buscador, a meu ver, nesse meio da poesia, em que o percebo como agente bastante ativo na difusão de acessos, ideias e provocações, além de ser um ótimo declamador; e o Samba no Asfalto é um projeto de que estou me aproximando ainda, mas que parece fazer algo muito semelhante com o que vemos aqui, na zona leste de Campinas, com o Sarau da Dalva e o Samba no Maneco. Vai ser um presente estar junto com eles todos. E sobre o “papos” como projeto literário, pra mim, o que justifica a Literatura é e sempre foi a vida humana. Pela Literatura ser humana, ela se apoia sobre a vida inteira, fatos e símbolos, concretudes e sonhos. E é sempre uma leitura. Ou seja: tudo que fala de tudo, sob qualquer ponto de vista, é possivelmente literário.
Sou um péssimo especialista. Logo, nenhum projeto que passe por mim, deve se especializar demais. Eu duvido um pouco de tudo que não possa ser feito em casa, deva ser muito formal, ou que não tenha hoje em dia um bom bocado de bagunça e kaos – com ‘k’. E duvido de uma Literatura que não seja íntima, como de qualquer coisa que se diga humana. É isso. Não podemos nos enganar. A Literatura ainda é um privilégio. E muitas vezes um objeto, um fetiche no modo desinteressante do termo. A Literatura precisa ser menos boutique e mais botica, mais boteco. Mais batuque. Precisamos humanizar Literatura. Como precisamos fazer como a terra, a renda, a importância e o protagonismo. Mas, como seja, também duvido que as polêmicas cessem, por agora. Estamos no tempo delas. É preciso acreditar que todo esse extravasamento de hoje em dia cumpra uma função, integre um processo maior, de nossas transformações. Temos que tocar nosso barquinho no meio dessas tempestades e, no meu caso, prefiro sempre confiar numa justiça que não a humana. E seguir assim, fazendo como o velho marinheiro do Paulinho da Viola, deixando que as ondas passem, rebotando, fluindo, fazendo o que for da ciência do Mar.
Sobre a fala atribuída, o Brasil é, talvez, o pior país para se determinar o que é e o que não é coisa de bandido. Bem como pra julgar quem sejam nossos bandidos de fato. Para mim, essa via de pensamento é inútil. O que entendemos como ‘bom’ e ‘mau’ está presente e manifesto em tudo. Agora, o Samba é um fundamento imprescindível de toda a existência cultural brasileira. Ponto. Um baluarte da potência de nossa brasilidade inteira, sem dúvidas. Uma magia capaz de motivar os melhores bens comuns ao povo. Máximo respeito, boa fé e interesse por isso. Nestes quesitos, o Samba é inconteste.
E falar de Samba e de Poesia hoje, no Brasil, com essa abordagem de Poesia que procuro, e o Samba sendo o que é, resulta numa longa e larga passarela pra falarmos de política, sociedade, história e tantos outros assuntos. Bem como pra falar de periferia. E sim, estando na zona leste de São Paulo, é importante falar da zona leste de São Paulo. E sim, falar de uma periferia, uma margem, é em algum sentido falar de todas elas. Agora, agradecendo à Dona Ivone Lara pelo que me ensinou, é sempre bom saber chegar. E sempre à licença. Não se pisa em chão nenhum sem isso, nesse mundo. Não sou representante de nada, além da medíocre condição humana. Não sou um cânone, nem um acadêmico das letras. Não sou um bamba do samba. Tem gente que nem me entende poeta, escritor e, pra ser sambista, ainda me falta muito mesmo. Ter feito alguns sambas não diz nada sobre isso. E o “papos de versos” tão pouco é um projeto dessa grandeza tanta. O “papos de versos” – e por isso em minúsculas – é um projeto de miudeza. Dessa miudeza, do afeto, nesse mundo de tanta certeza, verdades e crítica habilitada, de tanto especialista, respaldo, doutor e selo. Nesse mundo de tanto prêmio e ranking, highlights e listas. Enfim, é só um projeto pra atirar pedras com amor, nas nossas redomas.
Amor e sangue nos olhos. Uma combinação pouco creditada, mas que é o meu combustível, minha alquimia. A Luzia Romão falou por ela e por mim – acertadamente – na última terça, quando disse de um não-lugar, nosso. Ela falava ali, especificamente de origem: quando sua pele, sua cara, seu cabelo não é uma coisa nem outra; quando podem te taxar de ser tudo; e também reclamar que não seja nada. Mas isso acontece também quando a pessoa é homem, machista ainda, mas já divergente de muitas máximas masculinas; ou quando a pessoa está em um partido político, mesmo divergindo dele em algumas das suas resoluções; ou quando uma pessoa gay segue sentindo-se cristã; e por aí vai… quando os fatos se chocam com os rótulos, não cabem tanto nas caixas. É preciso que cada um saiba de seus privilégios sim. Precisamos ter isso em conta nas nossas escolhas, ideias e ações. Agora, ficar disputando quem é a mulher mais mulher, o negro mais negro, a comunista mais comunista, o pensador mais pensador, a margem mais marginal, o periférico da mais periferia… tudo isso me parece muito capitalista. Somos seres complexos e nunca vamos ser os mais nem os menos. Não deste modo cartesiano, analítico; e frio. E julgar me parece muito problemático. Não sinto que temos essa capacidade. É só olhar pros nossos excelentíssimos juízes, pro Supremo, pra tudo ao redor e, sobretudo pra nós mesmos. Eu entendo o quanto as tantas opressões instituídas dificultam muito isso à maioria das pessoas. E por isso é preciso considerar e compreender as raivas. As explosões. As flores das peles. Mas, talvez, a nossa real revolução humana terrena seja só, o encontro de nossas revoluções humanas pessoais. Acho que o caminho se faz com pedras – inclusive atiradas. Acho que precisa de sangue nos olhos. Mas sei, que sem afeto, nada muda. É por isso que o “papos de versos” tem essa única pretensão: amar e mudar o que se apresenta a cada verbo, pela Poesia haver onde ela haja. E onde não? É só isso. Só mais um trabalho de resistência, em meio a tantos. E tantos mais de que ainda precisamos. E apesar de tudo, tensões, crises, a conversa terça passada, com Ana Maria, Ericah, Luiza e Jô, fluiu com uma potência violentíssima, uma urgência necessária, mas acolhendo que nem colo. E a esperança é o ‘papos’ passar sempre por onde for preciso, tempestades todas, sem perder esse aconchego de lar. Essa ternura. Ali a gente se familiariza. Teria que haver algo alheio ao afeto e mais forte que ele para realmente comprometer esse trabalho. Enquanto não houver, a gente segue.”