Por Rafa Carvalho
Com violões emprestados, fui tocando pela janta e por cerveja, em bares, cafés. E na rua, por moedas que, de uma em uma, viraram um Takamine, que achei em promoção em Munique, depois de chegar de carona com aquele caminhão de flores holandês. Era o mais barato deles, feito na China. Mas era um Takamine. Desde de que tinha visto Gil de pertinho naquele estúdio da Vila Mariana em 2010, nos preparativos para o “Futurível”, eu sonhava com um Takamine. E bem, é esse violão que me acompanha até hoje. Só me falta aprender a tocá-lo. Pois é: a disciplina.
Mas essa é a segunda parte, de um texto que já ultrapassa uma lauda de Libre Office Document em Liberation Serif espaçamento simples, sem mencionar nada de seu título. É que segundo muitas pessoas, eu sou prolixo. Isso não me incomoda tanto, como me incomodam vaidade e a não-disciplina. Se bem que não dá pra ser prolixo sempre. E para o jornalismo, não dá pra ser prolixo nunca. Porque as pessoas não têm tempo. Porque tempo é dinheiro. Porque jornalismo não é arte. Por sorte há a Agência Social de Notícias, em que vejo outras possibilidades de olhar. E Zé Pedro, querido, que além da gentileza do convite demonstra entender essa minha condição. Podemos apenas fazer com que esses textos longos sejam publicados em sessões, ou capítulos, ele diz. E assim vai ser.
Adilson Nascimento de Jesus, homem negro, pensador e artista, docente da Faculdade de Educação da Unicamp, mestre querido que muito me inspirou, dizia que tenho uma fala, e também uma escrita, mântricas. Que é um jeito bonito pra dizer que falo as mesmas coisas, repetidamente. É como se produzisse um efeito de reza. Uma insistência pela fé, nas coisas essenciais da vida que apesar de tanto, ainda não vemos. Minha utopia é isso: enxergarmos. E a poesia. A poesia também é minha utopia.
Eu não acredito em poesia. Como não acredito em utopia. Não acredito na poesia-palavra, é o que quero dizer. Na poesia escrita, lida, dita. Na verdade, não acredito na palavra. Nas línguas humanas, pronomes, verbos e essas regras que nunca decorei. Objeto direto, essas coisas. Pra mim, a poesia mora mais além da palavra. Não há como. A poesia, com a palavra, é um jogo de sentido onde o poeta perde sempre. Não se alcança. A graça é tão somente: jogar. Chegar o mais perto possível. Mas nunca se toca a poesia. Com uma palavra, um verso, um idioma da gente qualquer.
A poesia, assim, é só um prazer humano, de perder sempre. A graça de uma desgraça. Um prazer possível. Que conversa com nossos sonhos. E com os momentos em que não conseguimos dizer nada, ou sequer respirar. É irônico, eu sei. Ser humano é isto. Irônico. Constantemente contraditório, como garantiu Salvador Dali, que afirmava a nossa necessidade de gerar contradição em tudo. E dúbio. O ser humano é um ser dúbio, anfíbio. Ironia por exemplo sermos tão dependentes de oxigênio para sobreviver e morrermos pela oxidação de nosso corpo. Ironia não vivermos sem ar, e conseguirmos muitas das experiências que nos justificam a vida, justamente nos momentos em que perdemos completamente o fôlego. Viver pelos orgasmos, ou pequenas mortes – à francesa – que podemos ter. Mas viver como quem teme a morte. A morte que podemos chamar de grande, de cujo medo talvez nos tire as possibilidades de vivermos a grande vida. Ironias. Nós as colecionamos.
Quis fazer um texto inicial para esta coluna, que partilhasse um pouco do que esta coluna possa ser. E há algum tempo, vinha pensando em como partilhar num texto, algo sobre mim, e o Facebook. Fim da segunda lauda de Libre Office Document em Liberation Serif espaçamento simples, e vamos lá:
As pessoas começaram a me chamar de poeta, bem antes de eu me ver assim. Eu ouvi de muitas de minhas professoras de língua portuguesa, que eu seria escritor, e tomava isso como ofensa. Uma praga. Provocação. Era difícil pra mim, aceitar o cargo, porque eu não fazia poesia, assim como dizem. E nem sequer acreditava nela. Foi em 2010, na Chapada dos Veadeiros. Mais precisamente na Vila de São Jorge, que entendi o que era a poesia, num sentido que me permitia: ser poeta. Conheci a Dona Luiza, quase oitenta anos. Analfabeta. E das maiores poetas que já conheci. Entendi que a poesia era um jeito. De ver, viver e conviver a vida, o mundo. E que poeta éramos todos. E todas. Potencialmente. E fui poeta no mesmo instante em que qualquer pessoa poderia ser. Logo depois estava cara a cara com Gilberto Gil, que recém deixava a condição Ministro da Cultura do Brasil, num trabalho em São Paulo. E entendi a responsabilidade que ser poeta podia significar, quando se escolhe lutar pelo direito à poesia – e a ser poeta – dos demais.
Eu entendi que a vida me dava essa responsabilidade. Junto com a responsabilidade de contar histórias. Histórias como a de Dona Luiza, que pouquíssima gente no mundo teria a chance e a sorte de conhecer. Ela nunca saiu dali. Da Vila. Só quem fosse e olhe lá. Que a Dona Luiza não era assim figura fácil, folclórica, emblemática de nada. Era uma pessoa qualquer. Comum. Como qualquer poeta deve ser. Reclusa, arisca. Encontrá-la talvez fosse tão provável quanto encontrar Manoel de Barros, lá em Campo Grande. Um lobo-guará ou uma jaguatirica, nos matos.
Mas de alguma forma, depois, Dona Luiza saiu. Foi à Suíça, Alemanha, Dinamarca. Tudo em forma de canção. Viajou como Manoel, em forma de poema. E fez pessoas chorarem por lá. Inspirou desenhos de Emilio Maldomado, grande pintor espanhol, contemporâneo e andaluz, que lá dos oliveirais de Liñares, a ilustrou em sua hortinha, como a imaginava, depois de uma paella que partilhamos. E por aí ia. Eu precisava focar. Precisava cuidar desse caminho. Dessa carreira. E caminhar. Pra seguir sendo poeta. E lutando. Responsavelmente. Fazendo pontes. E conseguir sobreviver de arte, no Brasil. No mundo. Nesse tempo. De internet, de mídias e redes sociais. Etc.
E nisso, eu pensei que precisasse assim, de uma página de Facebook, por exemplo. Na época, na hora de criar a tal página, as opções que eu tinha eram: Escritor; Músico/Banda; Figura Pública; Artista; Pensador. Essas coisas. Eu achava tudo muito fora de lugar. Não me sentia escritor o bastante. Não me sentia músico o bastante. Banda, menos ainda. Não me sentia artista o bastante. Pensador o bastante. Figura Pública, de jeito nenhum. Ao mesmo tempo, não me sentia só uma dessas coisas, potencialmente. Não queria ser demais, nem queria ser restrito. Foi aí que me dei conta, do começo desse texto. Do quanto isso aqui é um espelho. E do quanto esse espelho é editável. De como se pode fazer dois almoços, um ficando ótimo, outro horrível, fotografar o ótimo e deixar todo mundo pensando que toda vez é assim. Ou de como se pode comprar um almoço ótimo e fotografar como sendo um preparo próprio. Seu.
Foi aí que eu defini minha escolha: Personagem Fictício. É isso que eu seria.
(A primeira parte deste relato de Rafa Carvalho pode ser lida em http://agenciasn.com.br/arquivos/13088)