A imponente sede da Unesco em Paris se rendeu ao som do atabaque e berimbau, enquanto alguns dos importantes mestres brasileiros da capoeira – Cobra Mansa, Pirta, Peter, Paulão Kikongo, Sabiá e a Mestra Janja – faziam as suas coreografias. Foi neste cenário, com essa atmosfera de emoção, que nesta semana a Roda de Capoeira foi inscrita na Lista Representativa do Patrimônio Cultural Imaterial da Humanidade da Unesco. Com isto a capoeira passa a figurar na galeria das mais importantes expressões culturais mundiais, e o fato foi muito comemorado pelos mestres de Campinas que, no entanto, pedem ações concretas, políticas públicas eficazes, para dar mais visibilidade e difusão dessa arte esportiva que está na alma nacional.
O anúncio foi feito durante a 9ª. Sessão do Comitê Intergovernamental para a Salvaguarda do Patrimônio Cultural Imaterial, comandado por José Manuel Rodríguez Cuadros (Peru) e que está sendo encerrada nesta sexta-feira, 28 de novembro, na sede da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura na capital francesa. O Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), órgão vinculado ao Ministério da Cultura e responsável pela apresentação da candidatura da Roda de Capoeira junto à Unesco, informou em seu relatório que a prática da capoeira está presente em mais de 150 países, além do Brasil, entre eles Estados Unidos, França e Bélgica.
Para o mestre Tuim, da Coquinho Baiano, de Campinas, é fundamental que haja uma política pública para a capoeira no Brasil. “Um ponto muito importante é reconhecer o mestre de capoeira, como profissão e em vários aspectos. Se a capoeira chegou onde chegou, isto se deve aos mestres”, ele observa. Tuim é defensor de “uma maior união” entre os capoeiristas, como forma de fortalecimento da capoeira. Ele também defende uma sólida formação para os capoeiristas que vão atuar em escolas, como parte da Lei nº 10.639, de 2003. “É preciso uma boa formação, para que o capoeirista leve bons ensinamentos para dentro da escola”, ele assinala.
O reconhecimento como profissão também é um ponto importante para Luciana Pimenta, mestre da Cordão de Ouro, outro grupo de referência em Campinas. Formada pelo mestre Suassuna, ela é a primeira mestre graduada em Minas Gerais, em 2010. “Sou uma mestre nova, mas existem mestres com décadas de profissão. Eles deveriam ter direito a uma aposentadoria, aos direitos trabalhistas”, ela afirma.
Mestre Luciana considerou um salto importante o reconhecimento pela Unesco, mas também acha que falta muito para uma verdadeira valorização da capoeira aqui mesmo no Brasil. Formada em educação física, ela confessa que se apaixonou muito nova pela capoeira, o que inclusive gerou certa resistência de familiares. Ela praticava o voleibol de forma profissional, e para eles deixar esse caminho poderia ser arriscado. Mas ela foi se aprofundando nos fundamentos, até se tornar mestre.
Hoje dá aulas em escolas, e Luciana entende que “ainda há um certo preconceito com a capoeira”, por parte de alguns pais de alunos. “Eles ainda não veem como a capoeira é benéfica para os filhos, para o corpo e a formação em geral”. Ainda falta muito, portanto, para a consolidação da capoeira, ela acredita. Mas os passos estão sendo dados. Para Mestre Luciana, “muito depende da comunidade”.
Gênese da capoeira – Não existe unanimidade estre os especialistas sobre a gênese da capoeira. Há uma controvérsia entre os defensores da ideia de que a capoeira é legitimamente brasileira, e aqueles que entendem que ela evoluiu a partir de lutas-movimentos que já eram praticados originalmente em território africano e que vieram, portanto, a bordo dos navios negreiros. Um dos mais renomados pesquisadores da cultura e do folclore brasileiros, Câmara Cascudo afirmava que as práticas de Bássula e N´golo, comuns em algumas regiões da África no ritual de passagem de meninas para a puberdade, seriam a fonte da capoeira. Eram disputas, marcadas pela melodia de instrumentos antecessores do berimbau (m´blumbumba ou hungu), nas quais o vencedor herdava a prerrogativa de eleger a futura esposa, sem a necessidade do pagamento de dote. (Cascudo, Câmara, “Folclore do Brasil”, Fundo de Cultura, Rio de Janeiro, 1967, páginas 183-186).
Para outros, movimentos semelhantes aos da capoeira já eram executados pelos indígenas brasileiros, conforme registros de padre José de Anchieta e outros. A palavra capoeira, em si, seria derivada do tupi-guarani ko-puera (“terreno onde já houve roça e que foi reconquistado pelo manto”, segundo Antônio G.da Cunha, in “Dicionário histórico das palavras portuguesas de origem tupi”, São Paulo, Brasília, Melhoramentos/UnB, 1998, pag.98).
De qualquer modo, a capoeira tem muito de brasilidade. Ela passou a ser conhecida e disseminada no Brasil, até se tornar presente em todo planeta, com o formato que adquiriu. Luta marcial, mas igualmente dança e ritual, praticados, ou ensaiados, nas noites enluaradas das senzalas, não faltando defensores da tese de que muitos movimentos incorporados ao jogo-luta-dança foram copiados de animais com os quais os escravos conviviam nos matos e na solidão dos canaviais do Nordeste e Sudeste.
Capoeiristas foram muito reprimidos durante todo o período colonial e monárquico. O panorama começou a mudar com a Guerra do Paraguai, nas décadas de 1860 e 1870, quando muitos capoeiristas foram recrutados e lutaram pelo Brasil. Mas mesmo na República a repressão continuava. No século 20, a capoeira sai da “clandestinidade”.
Em 1937, Getúlio Vargas “oficializou” a capoeira. A academia de Mestre Bimba, na Bahia, foi a primeira a receber autorização oficial para ensinar a capoeira, já em 1937. Mestre Bimba foi, de fato, um dos grandes responsáveis pela propagação da capoeira. A Capoeira Regional, que incorporou golpes de outras lutas marciais, como o batuque, é considerada mais sintética, enxuta, do que a Angola. Foi a modalidade que mais se popularizou, a partir da padronização promovida por Mestre Bimba. As graduações, entre calouro, formado e formado especializado, surgiram na academia de Mestre Bimba.
A Capoeira de Angola, por sua vez, deve a sua popularização ao Mestre Pastinha, também de Salvador, Bahia. Em 1941 ele criou o Centro Esportivo de Capoeira Angola no bairro da Liberdade, em Salvador. Em 1949 o Centro mudou para o bairro de Brotas. Em 1955, nova mudança, para o Pelourinho, na rua Gregório de Mattos, homenagem ao grande poeta baiano. A Capoeira Angola é mais próxima da capoeira, ou das múltiplas formas de capoeira, existentes na sua forma original. Uma capoeira com muito de estratégia, de malícia, de encenação. Mestre Bimba e Mestre Pastinha, dois ícones. A partir deles, a capoeira se tornou mania nacional e cada vez mais internacional.
Capoeira em Campinas – Campinas é um dos principais polos de preservação, disseminação e renovação da capoeira no país. Uma das referências para a capoeira local é o Cordão de Ouro, grupo criado em 1967 em São Paulo pelo Mestre Suassuna. Primo do dramaturgo e poeta Ariano Suassuna, o baiano de Itabuna Mestre Suassuna foi responsável por uma grande expansão da capoeira em São Paulo. Mestre Brasília foi seu parceiro na inauguração da Cordão de Ouro. Mestre Cícero é o líder da Cordão de Ouro em Campinas.
Em 1974 o Mestre Tarzan, outro nome importante da capoeira em Campinas, chegou à cidade, por indicação do Mestre Suassuna. Ele deu aulas na academia de dança de Odete Motta Raya. Mestres Godoy e Maia são outros dois nomes fundamentais da capoeira contemporânea em Campinas, tendo atuado na Academia Senhor do Bonfim e sendo fundadores da Academia de Capoeira Coquinho Baiano em 1976. Em 2005 o Grupo de Capoeira Coquinho Baiano passou a ser representado pelos Mestres Coveiro, Paulão e Tozinho e os contramestres Dito, Tuim, Macaco e Marcelo, hoje mestres.
A Universidade também se rendeu à capoeira. Entre os dias 7 e 9 de maio de 2004, Campinas sediou o I Seminário Nacional de Estudos sobre a Capoeira (Seneca), com o tema geral “Capoeira: diálogos entre os seus diferentes saberes”. O Seminário reuniu mais de 300 participantes, representando 64 grupos de capoeira de 32 municípios de vários estados brasileiros, além de participantes de Sidney (Austrália), Nova Iorque (EUA) e Bristol (Inglaterra).
Foram constituídos os Grupos de Trabalho Temáticos: “Capoeira e Educação”, “Capoeira, corpo, cultura e memória”, “Capoeira e políticas públicas” e “Capoeira e esporte”. Do evento resultou a Carta de Campinas, “Manifesto pela Capoeira neste início do século XXI”, com observações de destaque, como esta: “A capoeira tem que estar presente na escola como atividade curricular complementar abarcando uma perspectiva de pesquisa, produção do conhecimento e valorização do saber popular, por ser um elemento importante da identidade brasileira fazendo parte da história de formação do povo brasileiro e assim se constituir um patrimônio da cultura nacional. Seu processo de ensino/aprendizagem deve ser fundamentado com base na inclusão social e liberdade de expressão. Para isto, é necessário que a inserção da capoeira se dê para além dos momentos festivos ou de eventos esporádicos. Neste sentido se propõe a efetiva inclusão da capoeira na escola através de atividades curriculares complementares, ministrada por um docente de capoeira (capoeirista) sendo seu trabalho supervisionado pelo serviço público de ensino”.
O documento citava o fato de que o então Presidente Luis Inácio Lula da Silva tinha sancionadono dia 9 de janeiro de 2003 a Lei nº 10.639, que estabelece a obrigatoriedade do ensino da história e da cultura afro-brasileira nos currículos das escolas públicas e particulares do ensino fundamental e médio. A Carta de Campinas também pedia: “Deve-se exigir do Estado a formulação de Políticas Públicas que atendam aos interesses da comunidade da capoeira, contemplando as três esferas de poder, a saber: municipal, estadual e federal, informações sobre a relação da capoeira e seus orçamentos. Deve-se buscar mecanismos de fortalecimento da cidadania, no sentido de incrementar Políticas Públicas para a Capoeira, através de oficinas, cursos, palestras e publicações, bem como criar mecanismos de fiscalização e da execução dessas políticas sobre o tema através da organização de comissões, ONG`s, grupos cooperativos e outros órgãos”.
Muitas recomendações aprovadas no Seminário continuam válidas. A Lei Lei nº 10.639 de fato representou um marco para a evolução da consciência sobre a importância e o legado da cultura afro-brasileira. A decisão da Unesco é mais um passo importante. Mas, como assinalam os mestres capoeiristas de Campinas, muito ainda há a ser feito. (Por José Pedro Martins)