Por José Carlos da Silva, especial para a ASN
“Andei por andar, andei. E todo caminho deu no Mar.” (Dorival Caymmi)
Essa parece ser também a história de Rafa. Um homem de 33 anos que vai ascendendo a Peixes nos astros. Enquanto na Terra foi andando, cigano, por aí. Chegou cruzar o mundo. O mestre Zen que o abordou num pequeno restaurante em Kushikino; a senhora que o via assistir, a cada dia, o pôr do Sol no Mar da China. De repente esses, já sabiam: algo de inusitado e atrativo há nesse rapaz! Um latino-americano sem dinheiro no bolso, nem parentes importantes, nascido na serra paulista e crescido no interior, que aos 21, já se orientava por lá, conforme os conselhos de Gilberto Gil.
Com 25 exatamente, entre sonhos e sangue, presenciava um encontro com o próprio Gil. Coisas breves, sem importância, que, segundo o poeta, Gil jamais se lembraria. Mas que ele mesmo foi ajuntando, quase como quem junta menos que conchas: grãozinhos de areia. Missionário evangélico, iniciado monge tântrico, ogan de terreiro. Foi passando por tanta diversidade, no que diriam ser tão pouco tempo. Que ainda sobraram anos para discutir poesia com um mestre cervejeiro chileno, amigo de Allende e Violeta, no meio da chapada goiana; pra aprender em Ollantaytambo, com o xamã shipibo e seu cachorro-lobo, alma de puma, alguns mistérios da Amazônia peruana; tomar slivovica aos moradores de rua na estação ilhada com a nevasca em Ružomberok; e pintar os cascos das pequenas embarcações em Fyn, como um serviço temporário.
Ficou sob custódia do exército em Bogotá. Jubilou na universidade, quase atravessou pro Suriname com os hippies numa barra-forte. A editora pirata anarquista em Brasília. Os perigos em Peritoró, Aracaju e na tríplice fronteira. Tantas coisas quase sem testemunhas, como o acontecido no mercado de peixe seco em Benguela, onde só a tia Leocadia, sua Caia querida, pôde ver. Sem falar nos alter egos que criava, como o canário Juan, ao qual viveu suas venturas na Mantiqueira e por todas as Minas num convincente portunhol selvagem.
De fato, foi sempre difícil saber aonde fica a fronteira, entre o que é biográfico e a ficção, com Rafa Carvalho. E ele avisa: a poesia é real. fique são.
O poeta sempre foi um contador de histórias. Era isso que fazia brincando, quando criança. É o que fez no circo, quando sem querer parou ali, nas caravanas. É o que faz na canção, na poesia. E agora na prosa, com seu livro “contas de mar”.
Poeta pelas “desimportâncias”, como bem firma a escritora Letícia Wierzchowski, quando chama Rafa de um “narrador de poesias”, comparando-o, de alguma forma a Manoel de Barros, sem dúvida um de seus grandes mestres. E contador pelos enredos, que ele gosta de enredar. Rafa é um enlaçador de mundos. Isso que faz entre o que entendemos ser real e a quimera. Um não acreditar nas utopias, que aprendeu com Saramago em Porto Alegre. Sua história de vida nos parece incrível, pelos ângulos improváveis que ele escolhe pra vivê-las. O mesmo ângulo que usa pra contá-las. Só isso. E que ele usa abertamente, não pra si, mas para todos.
Quem convive vai sabendo que a causa de Rafa é mesmo o mundo. Os trabalhos lindos que vem fazendo com muitas pessoas, no que hoje é chamada Encruzilhada Estrela Dalva, projeto cultural maravilhoso, multivariado na comunidade onde cresceu. Ao mesmo tempo em que vai ligando pontos no globo: são mais de 20 países por 4 continentes até aqui, com seus trabalhos artísticos e educacionais. Fazendo pontes, tecendo redes. E esses grãozinhos de areia, que junta pra si, ele junta também pra quem seja.
“contas de mar” é isso: histórias de gente que o mundo muitas vezes não vê. De ângulos e possibilidades que o mundo, muitas vezes, não quer enxergar. Um foco nos miúdos que, no final das contas, são o que realmente podem engrandecer o humano. Grãozinhos que vai juntando, pra fazer um castelo. Pedras imensas, que vai desviando do caminho. Contas que contando, uma a uma, formam um colar.
O livro é mais uma obra do poeta, sobre o mar. Aqui, um retorno ao Caymmi da abertura: Rafa conheceu o mar aos sete anos. Viu o mar pouquíssimas vezes até os 19, quando foi morar numa pequena ilha dinamarquesa, com uma bolsa de estudos. Mas à primeira vista entendeu, que o mar era uma forma de destino. Sua grande musa. A mãe, de todas as suas mães e mestras. Desde então, o mar é a cura pra tantas doenças. Foi dali que nasceu “auto-mar”, um livro-delírio de poemas, primeira publicação impressa do artista, que venceu com isso a arrebentação dos “produtos concretos artísticos”, tão necessários nesse mundo.
Digo isso porque Rafa se assemelha muito a Caymmi e a outros baianos, como o próprio Gil, Caetano, Amado, não pela importância da obra – Rafa não tem obra nenhuma, ainda; mas pela baianidade. Diz a lenda, que Caymmi começou a compor “Acalanto” com sua filha Nana ainda bebê, em 41, pela teimosia da menina em não querer pegar no sono. Mas que a canção só foi mesmo terminada em 1957, com a Nana já assim, debutante! Se é verdade mesmo, eu não sei. Mas Caymmi aparenta sim ter esse artesanato tranquilo, balançado na rede, às suas criações.
Rafa Carvalho sempre me pareceu alguém que vai precisar de tempo, para ajeitar todo esse universo. Ele é como um mar que banha muitos países. Suas ondas adentram as terras mais distintas, das artes. E eu sei que até aqui ele priorizou a vida, fora da escrivaninha, fora do violão no colo, apesar de amar esses momentos. Ele preferiu andar, andar. E hoje prefere os abraços, cirandas, a horta com as sabenças herdadas das velhas, o futebol da várzea dos domingos, a luta diária da comunidade. Acho que ele vai ser como Coralina, Cartola, os próprios Manoel e Saramago. Acho que vai demorar. Lento como quem leva o velho na cabeça.
Contudo, vem dando certo. 2018 foi o ano de iniciar, assumidamente, na prosa. E foi finalista no Prêmio Sesc de Literatura, com um livro ainda não publicado. Ao mesmo tempo em que tivemos seu primeiro livro de contos editado, com apoio do Proac, no estado de São Paulo: esse “contas de mar”. São histórias de mar, que Rafa juntou fazendo mergulhos em São Vicente, SP; Serra, ES; e Aracaju, SE. E nisso da biografia misturar à ficção, quando chegou à capital do Sergipe, para terminar seu livro, era um sábado à noite, lua cheia e, ao passar pela praia de Atalaia para uma primeira inspiração marinha, um assaltante chegou a atirar em Rafa. O tiro disparado a um metro e meio de distância não pegou. Seu livro não ficou incompleto, nem póstumo. Tudo isso com ele sabendo da paternidade, mais nova experiência de Rafa.
Desde então este livro, ficou dedicado a seu filho. E ainda ao perdão, como já seria. O título é uma edição do autor, auxiliado por mim em parceria com a Pontes Editores de Campinas. As ações de pré-venda, movimentadas de modo independente, serviram para tentar viabilizar o parto humanizado da criança.
E assim Rafa, agora também pai, segue seu caminho. Andou, andou. E chegou no mar. Além de “auto-mar”, seu livro de poemas, Rafa tem “nau frágil”, projeto musical iniciado em 2014, que traz em si uma série de interfaces com a performance, o teatro e outras linguagens artísticas. Todo nessa abordagem marítima, com pesquisas profundas. E que deve finalmente virar disco em 2019. Teve desenvolvida, nesse tempo, em 2017, a obra de site specific art “Thalassoporos: ou pelos poros do mar”, na ilha de Creta, Grécia, a convite do projeto ResidenceSEA. E ainda segue criando, escrevendo e produzindo muito, sobre o ambiente marinho. Entretanto, o livro de Rafa finalista no Prêmio Sesc em 2018 tem já outros territórios. O que me faz pensar que o poeta falará de muitos outros temas, universal e antropofágico que é. Mas que, sem dúvidas, é um poeta do mar. E que sempre, de um jeito ou de outro, acabará nele.
“contas de mar” é isso. O livro começa com Iohana. Uma caminhoneira, de Minas, que nunca viu o mar e, finalmente, chega. Depois de tanto caminho, tanto caminhão, tanto andar, andar. E assim vai indo, o livro, pelo mar brasileiro. Cidades reais e inventadas. Dá a volta ao mundo com um velho marinheiro sem nome, nem pátria. Fica sentado na areia com a criança autista. Horas e horas catando grãozinhos. Passa pelo Rio Vermelho, a matriarca da vila, menino bom angoleiro e o pescador das histórias. Termina com essa gente toda abraçando a gente, em ciranda. Doendo com o mundo, mas ainda sonhando. Esperança. É um livro que causa na gente o efeito do banho com água salgada. Um mergulho que acolhendo ou dando um caldo, faz a gente ficar bem. Melhor.
A linguagem que Rafa tem usado em sua prosa é arrojada e sublime. O curioso é que Rafa leu muito pouco até hoje. Ele tem isso que o Guimarães falava tanto, de observar as histórias acontecendo, inscritas ali, no dia a dia. Falou certa vez, pro Gonçalo Tavares que lia no ônibus, o ônibus; a praça, na praça; o trem, a feira; e o bar: em seus próprios lugares. Mais que nos livros. Mas ele acaba sendo comparado a referências, como pelo editor José Reinaldo Pontes, de que ele nada, ou muito pouco acessou até hoje, quando começa a se organizar, também, como leitor.
Certamente Rafa Carvalho começa a construir uma história muito específica na literatura, não só do Brasil, mas do mundo. Já avisei que pode demorar! Mas outra coisa bonita de ver, é a variação que ele assume, como o mar às marés, criando formas quase totalmente distintas entre sua escrita, nos diversos gêneros literários, os modos de sua oralidade aplicada em diferentes contextos e lugares. A forma como flutua entre o simples e o sofisticado, tradicional e arrojo, a complexidade sistêmica e o ponto final.
Poeta, parece entender a importância de chegar das maneiras melhores, ao diálogo com cada ilha distinta, específica. Muitos dizem que é falta de foco, objetividade, noção do que se quer na vida. Eu acho que ele tenta imitar o mar, feito o passarinho fracote que vê a mãe voando. E vai voar também. Rafa Carvalho espalha. Espraia. Mas espanta, quando nos seus contos, as frases afiadas como anzóis nos fisgam em puxadas bruscas e firmes. Quando vê, já foi. Mas fica. Ficamos com as marcas na pele, por dentro. É mais ou menos isso que nos conta a Sabrina Sanfelice, no prefácio deste livro. Ficamos pra essa ciranda, ao final, com as almas de todas histórias, com ele e com todos nós. “contas de mar” é isso tudo, uma ciranda do mundo. Que gira.
E é tanto que Rafa, baiano sim, mas de segunda geração e coração inteiro, tem suas raízes na caatinga baiana. Bem mais no seco, na dureza do racho na terra e no pó, que no molhado das praias. Rafa foi o sertão virando mar. E levando a gente junto. Andemos com ele, pra ver no que vai dar.
O Jornalista José Carlos da Silva e Rafa Carvalho são amigos há anos, desde quando José descobriu Rafa com outros jovens no Ajuntaê, extinta casa e coletivo que movimentava a cena cultural alternativa de Campinas, no início dessa década de 10. O espaço, na Ponte Preta, era aberto a cafés com artistas, pessoas interessadas em cultura e foi num cafezinho desses que se conheceram. Eles faziam aquilo que Zé Carlos queria ter feito desde mais cedo. E a parceria de Zé e Rafa conseguiu assim nascer, e perdurar, mesmo com tantas mudanças ocorridas nesse tempo. Foram várias coproduções importantes, em diversos campos artísticos e aqui, especialmente para a ASN, José Carlos, que assina a coordenação editorial executiva no projeto de “contas de mar”, nova publicação de Rafa, contemplada pelo Programa de Ação Cultural da Secretaria de Cultura do Estado de São Paulo, conta um pouco do amigo, sua carreira numa opinião pessoal, da amizade dos dois, o livro e seus processos. Um depoimento leve e descontraído, que não serve como matéria imparcial, mas presta um serviço de opinião sobre esta produção atual campineira, ao mesmo tempo em que celebra a amizade.