Por José Pedro S.Martins
Da indústria bélica interessada no negócio da morte às soluções paliativas dos campos de refugiados, passando pelas tragédias humanitárias do Sudão do Sul, da Síria e do Iraque. Se há alguma jornalista e cineasta que não teme estar no olho do furacão das grandes crises, justamente para tentar decifrá-las e exibi-las, em carne viva, para o perplexo cidadão planetário, esta pessoa é a francesa Anne Poiret. Pois ela está concluindo uma rápida viagem ao Brasil, onde apresenta, a convite das representações nacional e locais da Aliança Francesa, o seu documentário “Welcome to Réfugistan”. Na passagem por Campinas, onde discutiu o filme com alunos e professores da Facamp, foi possível conhecer um pouco de seu processo criativo, que tem ajudado a tantas pessoas a compreender melhor as entranhas e os mecanismos dos podres poderes contemporâneos.
Refugistão é o nome do “país” criado por Anne Poiret, para identificar o conjunto de campos de refugiados que se espalham por diversos continentes. São os territórios planejados e estruturados para abrigar as pessoas obrigadas a cruzar fronteiras, fugindo de guerras civis, da perseguição religiosa ou política ou de grandes catástrofes naturais. 17 milhões, nos dias atuais, uma população equivalente à da Holanda, entre os 67 milhões de migrantes.
O documentário exibido em diversos festivais (como o United Nations Association Film Festival e o International Documentary Festival Amsterdam) é a narrativa, detalhada e impactante, da lógica que domina a multiplicação e perpetuação dos campos (ver a crítica do filme, por Daniela Prandi, aqui).
De soluções temporárias, para receber os fugitivos de seus países, a intrincados dilemas permanentes de governança para organizações como a Agência das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR). “Os campos são soluções técnicas para problemas políticos que os países não resolvem”, afirma o etnólogo Michel Agier, um dos acadêmicos entrevistados por Poiret e que contribuem na explicação sobre esses espaços ondem reinam o “Estado de Exceção”, na expressão de Giorgio Agamben.
Exceção porque, nos campos para onde são designados, os refugiados permanecem confinados, sem poder sair e se integrar à população local. Estão sujeitos às regras próprias estabelecidas para o novo endereço. Apesar dos esforços dos funcionários da ACNUR e outras agências, os refugiados estão sujeitos a doenças, à alimentação limitada e aos recursos escassos que lhes são entregues, geralmente um cobertor e um colchão.
A impossibilidade de locomoção, assegurada pelo artigo 13 da Declaração Universal dos Direitos Humanos, é uma das maiores queixas dos moradores dos campos, como mostra o filme de Anne Poiret. A jornalista visitou vários, como o maior deles, o de Dadaab, no Quênia, uma cidade com 350 mil habitantes, para deixar claro que, na realidade, longe de efetiva solução, se tornaram parte do grande drama geopolítico global. Como pode ser uma solução um campo onde o refugiado passa até 17 anos de sua vida?
No debate com alunos e professores da Facamp, a jornalista francesa observou que alternativas para os campos estão sendo discutidas em diversas instâncias e admitiu que, claro, se trata de uma questão complexa, difícil de ser equacionada a curto prazo. Ela entende que um possível caminho seria a criação e aperfeiçoamento de dispositivos para a integração dos refugiados nos países onde estão abrigados, inclusive em termos de geração de emprego e renda. Mas, de novo, reconhece que são pontos merecedores de muita discussão.
Enquanto isso os campos se reproduzem, chegando ao espaço europeu, alimentando sentimentos de xenofobia e novas forças políticas populistas de direita. A engrenagem não para de rodar, assim como não cessa o interesse de Anne Poiret por dissecá-la.
Questões geopolíticas – A filmografia de Poiret esclarece que, sim, o que existe no mundo hoje é uma gigantesca engrenagem de fazer dinheiro e nutrir o poder, à custa de milhões e milhões de vítimas. É o caso de Mossul, destruída nas batalhas para a sua retomada do Estado Islâmico, tema do doc “Reconstruir Mossul”, a ser exibido em breve pelo canal franco-alemão ARTE, o mesmo que produziu e exibiu “Welcome to Réfugistan”.
Também é o caso do mais novo país, o Sudão do Sul, independente desde 2011 e desde 2013 imerso em mais uma sangrenta guerra civil, que a documentarista francesa abordou em “Sudão do Sul: fábrica de um Estado” (ARTE). Ou da Síria, país da maior crise humanitária atual, enfocada em “Síria: Missão Impossível” (também por ARTE).
Para Poiret, estas e outras calamidades têm múltiplas origens e uma delas esta nos interesses da indústria bélica, que a realizadora não se esquivou de investigar, como em “Meu país fabrica armas”, exibido por France 5. No documentário, mostra como a França, signatária de vários tratados internacionais pelo desarmamento, continua sendo uma das maiores fabricantes de armas, exportando-as para regiões já marcadas por conflitos graves como o Oriente Médio.
A jornalista diz que sua motivação para tratar de assuntos tão espinhosos deriva da própria curiosidade e insatisfação com o estado do mundo. A trajetória acadêmica contribuiu, naturalmente, ela que se licenciou em História na Universidade de Paris Nanterre, pós-graduação em Ciência Política na Sciences Po e master em Jornalismo na Universidade de Nova York.
Os próximos projetos? Anne conta que tem se interessado muito pelos processos de reconstrução dos países atingidos pelas guerras e pela memória, esta dimensão hoje atingida não apenas pelos artefatos bélicos, letais, mas pelas fake news. “Sim, elas proliferam por vários países, inclusive na Europa, e é difícil combatê-las”, lamenta.
O caminho trilhado por Anne Poiret talvez seja o melhor para o enfrentamento e o combate em tempos de pós-verdade ou mentiras mesmo. É o do velho e bom jornalismo, investigativo, curioso. E também o do diálogo, do debate de fatos e ideias, como a diretora da Aliança Francesa de Campinas, Solenne Huteau, reiterou ao final da apresentação de “Welcome to Réfugistan” na Facamp, na manhã de 9 de abril, dois dias depois da lembrança do Dia do Jornalista no Brasil. “Creio muito na inteligência coletiva para discutir e procurar soluções”, sintetizou Solenne, em um tributo à esperança em momentos difíceis.