Por Daniela Prandi
O barulho dos rojões tentava abafar a fala do jornalista Glenn Greenwald, que dispensa apresentações. Convidado de uma das mesas da Flipei, a “Flip pirata”, que reuniu editoras independentes do lado esquerdo do Rio Perequê-Açu, o editor do The Intercept não se intimidou com o protesto que moradores de Paraty promoveram contra sua presença na programação paralela da Flip. Enquanto, de um lado, uma multidão se apertava para ouvir suas considerações sobre jornalismo em tempos de fake news, do outro um pequeno grupo com camisas da seleção aumentava o volume de uma vergonhosa versão remixada do Hino Nacional.
No palco improvisado no barco devidamente decorado com uma bandeira pirata, o jornalista britânico falou verdades enquanto a plateia vivenciava um momento histórico. Pessoas de todas as gerações, sentadas no chão de terra batida, encostadas em coqueiros ou dividindo banquinhos improvisados não se incomodaram com os rojões, os xingamentos e o hino brasileiro em uma batida de gosto duvidoso. Logo os manifestantes cansaram e foram embora, apesar de, no dia seguinte, na grande mídia, o destaque ter sido o pequeno protesto e não o evento em si.
A Flip 2019 teve Euclydes da Cunha como homenageado. Logo na abertura, a especialista no autor e professora da USP Walnice Nogueira Galvão deu o tom do que viria a ser o evento deste ano: “Enquanto o processo de modernização capitalista não terminar e não se passar para outra etapa histórica, “Os Sertões” tem que ser lido todos os dias para se entender o que está acontecendo com os pobres no país. A nação promove uma guerra sem quartel contra os pobres, como o genocídio de jovens negros na periferia de São Paulo, a militarização das favelas no Rio, e os desastres de Mariana e Brumadinho, por exemplo.”
Enquanto os autores convidados da Flip oficial se dividiam no palco central, na programação paralela a resistência enchia os palcos, soprava ideias e ideais, revisitava a história do Brasil e de seus conflitos e espalhava esperança. Esperança de um Brasil melhor, com mais produção local, mais empatia e mais compreensão de que, afinal, o mundo que está aí é para todos, ou deveria ser. Rodrigo Vieira, mais conhecido como MC Marechal, emocionou ao contar sobre o Projeto Livrar, no qual ele distribui livros de jovens autores em suas apresentações. “Muitas vezes são os primeiros livros que um garoto da periferia tem acesso. Dias atrás recebi um livro e na dedicatória o autor escreveu que o primeiro livro que leu ele tinha recebido em um dos meus shows. Agora, estava lançando seu primeiro livro”, disse.
A imensa e intensa fila para ouvir a escritora e filósofa Djamila Ribeiro, um debate sobre a presença de jornalistas e autoras negras nas publicações e redações brasileiras, projetos de bibliotecas comunitárias que mudaram vidas, uma orquestra somente com músicos refugiados, uma banda que reúne europeus, árabes e brasileiros que canta sobre andorinhas que cruzam os oceanos, mas morrem na praia, uma exposição de fotos sobre o sertanejo, “antes de tudo, um forte”, como já dizia Euclydes da Cunha, o primeiro livro de Ayobami Adebayo, uma autora da Nigéria que ficou na lista dos livros mais vendidos durante a Flip, a incrível batalha de poesias que encerrou uma das noites geladas… foram tantas e tão fortes experiências, tantos livros na bagagem de volta, mais jornais e publicações alternativas, tanta gente pensando, falando, escrevendo, espalhando esperança, que o retorno para casa vem acompanhado de uma das citações euclidianas: “Estamos condenados à civilização. Ou progredimos ou desaparecemos”.