Por José Pedro Soares Martins
O número global de novos casos de hanseníase tem diminuído a taxas moderadas e a doença continua provocando dor e desespero. Vários fatores contribuem para essa realidade que ainda afeta milhares de pessoas e entre eles estão a invisibilidade e a negligência institucional. A avaliação, em entrevista exclusiva para a Agência Social de Notícias, é da relatora especial para a Eliminação da Discriminação contra as Pessoas Afetadas pela Hanseníase e seus Familiares, Alice Cruz. Ela faz ressalvas à própria decisão da Organização Mundial da Saúde (OMS), que em 2000 declarou a eliminação global da hanseníase como um problema de saúde pública, e também critica a postura da indústria farmacêutica, de não desenvolver novos produtos voltados para o combate e erradicação da hanseníase, e ainda à Agenda 2030, por não incorporar o combate à doença e proteger os direitos humanos dos atingidos.
A portuguesa Alice Cruz, que mora no Equador, assumiu o mandato no dia 1º de novembro de 2017. A Relatoria Especial foi criada nos termos da Resolução n.º 35/9, do Conselho de Direitos Humanos da ONU, de junho de 2017. A decisão do Conselho resulta da determinação da Assembleia Geral das Nações Unidas que, em 2010, adotou a Resolução 65/215, contemplando princípios e orientações sobre a eliminação da discriminação contra pessoas afetadas pela hanseníase e seus familiares.
Na prática a orientação das Nações Unidas e do seu Conselho de Direitos Humanos é a de que o enfrentamento da discriminação contra pessoas afetadas pela hanseníase e familiares deve ser feito na perspectiva dos direitos humanos e esse tem sido o norte de sua atuação, acentua a relatora especial Alice Cruz.
Depois de dois anos e meio de trabalho, incluindo visitas oficiais a vários países (como o Brasil, segundo maior número de casos novos no mundo) para a verificação in locu da situação da doença e das vítimas, Alice Cruz apresenta em março o seu novo relatório às Nações Unidas. O documento será discutido em junho pelo Conselho de Direitos Humanos, em Genebra, Suíça, quando então será aberto ao público. Sem poder comentar o conteúdo do relatório, a relatora destaca na entrevista abaixo alguns pontos que tem registrado, em seu trabalho de décadas sobre a doença.
Alice Cruz trabalhou como Professora Externa na Faculdade de Direito da Universidade Andina Simón Bolívar – Equador e em várias universidades portuguesas como pesquisadora em saúde e direitos humanos, em particular em hanseníase. Ela participou da elaboração das Diretrizes da OMS para o fortalecimento da participação das pessoas afetadas pela hanseníase nos serviços de hanseníase.
HANSENÍASE E DIREITOS HUMANOS
Após dois anos e meio de mandato, Alice Cruz entende que já existe, por parte dos estados nacionais, um “entendimento mais aprofundado do que seria uma abordagem em direitos humanos do enfrentamento à hanseníase e à discriminação” com relação aos portadores da doença.
A relatora das Nações Unidas observa que a incorporação da perspectiva de direitos humanos demanda transformações conceituais, por exemplo no sentido de que as estratégias de enfrentamento da doença, previstas nos Planos Nacionais de Hanseníase, não deveriam estar somente na esfera dos Ministérios da Saúde. A abordagem deve ser portanto interministerial e interdisciplinar.
A prevenção e o combate à hanseníase e à discriminação, nota Alice Cruz, dependem do contexto de cada país, não existe uma fórmula-padrão para todos. Existem, contudo, semelhanças importantes, com relação à atenção sobre a doença e suas vítimas. “O principal problema é a invisibilidade e a negligência institucional. Às vezes parece que há problemas mais prementes, mais prioritários para se enfrentar, e que estão mais presentes na consciência pública”, comenta a relatora especial das Nações Unidas.
DESIGUALDADE INTERNA E INTERNACIONAL
Os países mais afetados pela hanseníase, assinala Alice Cruz, são aqueles em que existem “uma desigualdade social importante e sérios problemas de infraestrutura”. De fato, os 23 países considerados prioritários pela Organização Mundial da Saúde, para o enfrentamento da hanseníase, apresentam baixos Índices de Desenvolvimento Humano e graves déficits de saneamento: Angola, Bangladesh, Brasil, Camarões, Costa do Marfim, República Democrática do Congo, Egito, Etiópia, Micronésia (Estados Federados da), Índia, Indonésia, Kiribati, Madagascar, Moçambique, Mianmar, Nepal, Nigéria, Filipinas, Sudão do Sul, Sri Lanka, Somália, Sudão e República Unida da Tanzânia.
Para a relatora das Nações Unidas, os países ricos poderiam fazem mais, através de uma efetiva cooperação internacional, para enfrentar os dramas da hanseníase. “É necessário um esforço global, não se pode apenas responsabilizar as situações locais”, ela afirma, lembrando que os recursos para a cooperação internacional têm ficado muito distantes da meta de destinação de 0,7% do Produto Interno Bruto dos países ricos para esse fim (ver box abaixo).
CRISE NA COOPERAÇÃO INTERNACIONAL
O relatório “Concord AidWatch 2019″, da rede europeia de organizações não-governamentais Concord, confirma que a cooperação internacional vem passando por uma séria crise nos últimos anos. Segundo o documento, de novembro de 2019, a União Europeia permaneceu como bloco como o maior doador mundial em 2018, investindo € 71,9 bilhões em Assistência ao Desenvolvimento (APD).
Entretanto, a ajuda da UE diminuiu pelo segundo ano consecutivo, em 5,8%, representando apenas 0,47% do PIB combinado do bloco, bem distante da meta de 0,7% estipulada em acordos internacionais. Se for mantido o ritmo atual, a meta de 0,7% do PIB seria alcançada pela União Europeia somente em 2061 – e não em 2030, como prevê a Agenda dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável.
De acordo com AidWatch, somente Suécia, Luxemburgo, Dinamarca e Reino Unido atingiram ou superaram a meta de 0,7% em 2018. Por outro lado, caiu em 10% a ajuda destinada por Itália, Grécia, Finlândia, Áustria e Lituânia para a cooperação internacional. Outro dado do relatório é que menos de 10% do total de recursos foi destinado aos países menos desenvolvidos. (Link para o relatório https://concordeurope.org/wp-content/uploads/2019/11/CONCORD_AidWatch_Report_2019_web.pdf)
ELIMINAÇÃO GLOBAL DA HANSENÍASE COMO PROBLEMA DE SAÚDE PÚBLICA
Em 2000, a Organização Mundial da Saúde (OMS) declarou a eliminação global da hanseníase como um problema de saúde pública. A decisão foi tomada em função da queda dos números de casos novos e também da prevalência, tendência reiterada no último relatório da OMS sobre o estado mundial da doença (ver box abaixo).
Essa determinação, contudo, é avaliada com ressalvas pela relatora Alice Cruz, na medida em que “pode esconder o fato de que ainda existem países endêmicos, bem como bolsões altamente endêmicos dentro dos países, e que ainda há transmissão em curso”.
Há regiões muito pobres nos países mais afetados, onde estão justamente os maiores focos de transmissão, lembra Alice Cruz. Por isso, e destacando que existe “um grande respeito pelo trabalho dos profissionais de saúde envolvidos”, considera que, na perspectiva dos direitos humanos, a decisão de considerar globalmente a eliminação da hanseníase como problema de saúde pública “gerou problemas”.
“Para a vida das pessoas atingidas pela hanseníase o problema está lá. Ainda há muita dificuldade em alguns países em se lidar com a doença, com o diagnóstico, muitos serviços não estão preparados para a prevenção, muitas vezes a segurança social dos estados nacionais não reconhecem alguns tipos de deficiência provocadas pela hanseníase”, adverte.
O ESTADO GLOBAL DA HANSENÍASE
O último relatório epidemiológico global da hanseníase, da Organização Mundial da Saúde, data de agosto de 2019. O documento mostrou que houve uma modesta queda, de 1,2%, no número de casos novos de hanseníase entre 2017 (211.009 casos) e 2018 (208.619 casos). Do mesmo modo, a prevalência global documentada da doença no final de 2018 diminuiu 8501 casos em relação aos registrados no final de 2017. O documento mostra a queda anual no número de casos novos: 244796 (2009), 228474 (2010), 219075 (2011) 232857 (2012). 215656 (2013), 213067 (2014), 211973 (2015) e 217971 (2016).
Dos 159 países e territórios que forneceram dados para o relatório, 32 relataram 0 casos, 47 relataram 1 a 10 casos, 24 relataram 11 a 100 casos, 41 relataram 101 a 1000 casos e 15 relataram mais de 1000 casos, incluindo Brasil, Índia e Indonésia, que cada um relatou mais de 10000 novos casos. O conjunto de 23 países considerados prioritários somou 199.400 novos casos, representando 96% do total de casos em todo o mundo. (Link para o documento: https://apps.who.int/iris/bitstream/handle/10665/326775/WER9435-36-en-fr.pdf?ua=1
LEIS DISCRIMINATÓRIAS
Um dos fatos que confirmam como a hanseníase continua sendo motivo de preconceito e segregação é que ainda estão em vigor mais de 100 leis, em mais de 20 países, discriminatórias em relação aos portadores. São leis nas áreas de imigração, casamento, voto, transporte público, emprego e habitação, entre outras, que desconsideram e desrespeitam as normas internacionais de direitos humanos, em particular o princípio da não discriminação, conforme estipulado na Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948.
A relatora Alice Cruz salienta que existe dificuldade em mapeamento desse problema, muitas vezes reportado por organizações locais de defesa dos direitos humanos. Ela nota que, considerando a vulnerabilidade típica das pessoas afetadas por hanseníase, elas ficam em desvantagem quando se considera “a lacuna entre a lei como deveria ser e a lei como ela é”.
E ela lembra que não são apenas as pessoas afetadas pela hanseníase que são discriminadas. “As famílias são igualmente impactadas pelo estigma. Em muitos contextos sociais e culturais, famílias inteiras são discriminadas”, completa a relatora das Nações Unidas.
INDÚSTRIA FARMACÊUTICA
A hanseníase é considerada uma doença tropical negligenciada, pelos critérios da Organização Mundial da Saúde. A relatora Alice Cruz considera que vários fatores contribuem para esse cenário. “A invisibilidade e as desigualdades sociais continuam ser chave para a reprodução da hanseníase e dos problemas associados”, ela comenta.
Por outro lado, ela lembra que a indústria farmacêutica, que poderia desenvolver novos produtos para acelerar o combate à hanseníase e suas sequelas, “é uma das mais poderosas do mundo, mas não investe no que não dará lucro”. Dessa forma, ela defende o respeito à responsabilidade social, por parte do setor privado e também dos estados nacionais, para que ocorram novos e mais rápidos avanços científicos no combate à doença que provoca estigma e segregação desde os tempos bíblicos.
OBJETIVOS DE DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL
Alice Cruz tem outra crítica contundente, à mais conhecida agenda internacional concebida para promover o combate à pobreza e o respeito ao meio ambiente, os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS). São os 17 Objetivos aprovados pelas Nações Unidas e que deveriam ser atingidos pelo conjunto de países, entre 2016 e 2030, em substituição aos Objetivos do Milênio, que vigoraram entre 2001 e 2015.
“A hanseníase, e não apenas ela, ficou completamente fora da agenda mundial. Nesse sentido a ambição da agenda, de não deixar ninguém para trás, não está se concretizando. Os mais vulneráveis, os mais marginalizados, estão sendo deixados para trás”, protesta. “2030 está aí, para de fato não se deixar ninguém para trás são necessárias ações concretas, não podemos ficar apenas no plano da retórica e do discurso”, avisa.
VISITAS AOS MAIS AFETADOS
Como parte do seu mandato e do processo de elaboração do relatório que logo será conhecido mundialmente, Alice Cruz fez visitas a alguns dos países mais afetados pela hanseníase. Um deles foi o Brasil, segundo país com maior número de casos novos – foram 28.660 casos em 2018, maior número desde 2014, quando foram registrados 31.064 casos, segundo o boletim epidemiológico mais recente sobre hanseníase, da Organização Mundial da Saúde.
A relatora esteve no Brasil em visita oficial, entre 7 e 14 de maio de 2019. Esteve com organizações de defesa dos portadores, como o Movimento de Reintegração das Pessoas Atingidas pela Hanseníase (Morhan), instituições científicas como a Fiocruz e representantes de governos municipais, estaduais e federal. Mas Alice Cruz esteve principalmente com afetados pela hanseníase, como moradores da ex-colônia de hansenianos de Marituba (PA) e também participou do Encontrão dos filhos separados pela política de isolamento compulsório das ex-Colônias de Marituba e Prata.
Nesses locais, a relatora fazia questão de abraçar pessoalmente a todos os presentes. “Se estamos buscando uma perspectiva de direitos humanos, cada um deve ser visto individualmente, com sua história própria, com suas próprias necessidades. Não se trata de números, de estatísticas, mas de pessoas”, explica Alice.
Mas a relatora não conseguiu viabilizar a visita ao país com maior número de casos, a Índia – foram 120.334 casos novos em 2018, segundo o relatório da OMS. Combinados, Índia, Brasil e Indonésia (com 17.017 casos) foram responsáveis por 79,6% de todos os novos casos detectados globalmente.
Segundo a relatora, houve o convite oficial por parte da Índia, mas as datas não foram definidas. Ela lamenta que não possa ter visitado o país, “um verdadeiro continente”, e onde o alto índice de hanseníase resulta de uma situação complexa, com muitos elementos envolvidos.
Mas o mundo de qualquer forma está à espera, do que dirá o terceiro relatório da Relatoria Especial das Nações Unidas para a Eliminação da Discriminação contra as Pessoas Afetadas pela Hanseníase e seus Familiares. Será mais um passo fundamental para a eliminação do preconceito milenar com relação aos hansenianos, um avanço decisivo para a sua real inclusão em escala global.