Por José Pedro Soares Martins
Especial para Hora Campinas e
Agência Social de Notícias
O nome é caro à alma da cidade – Operação Guarani – remetendo à ópera famosa do compositor e maestro campineiro Antônio Carlos Gomes (1836-1896). Pois foi este nome o escolhido pelo regime militar para uma das mais emblemáticas ações de monitoramento da cidadania em Campinas durante a ditadura, a Operação Guarani, montada por um conjunto de órgãos de repressão e da “comunidade de inteligência” para espionar e, eventualmente, reprimir, a realização na Unicamp, entre 6 e 14 de julho de 1982, da 34a Reunião Anual da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC). De fato, houve uma grande articulação de bastidores na época, envolvendo o reitor da Unicamp, José Aristodemo Pinotti, e o presidente da SBPC, Crodowaldo Pavan.
Todo o desenrolar da Operação Guarani foi objeto de um detalhado relatório do Centro de Informações do Exército (CIE), o Relatório Especial de Informações 07/82. O documento, que pode ser encontrado no site Memórias Reveladas, do Arquivo Nacional, é muito revelador de como agia a “comunidade de inteligência” no regime militar. O envolvimento de um grande número de instituições ligadas à ditadura mostra, por sua vez, a importância que o regime dava para o conjunto da comunidade científica em geral e, em particular, para as Reuniões Anuais da SBPC, que se tornaram um dos principais espaços de crítica aos militares, entre o final da década de 1970 e início da década de 1980.
Modus operandi
Logo no início, o Relatório informa que o documento foi elaborado por um grupo de trabalho formado por agentes do próprio CIE e também do II Exército, IV Comando Aéreo Regional (IV COMAR), DEOPS de São Paulo e 11a Brigada de Infantaria Blindada, sediada em Campinas, no Chapadão. Segundo o Relatório, 27 agentes, no total, fizeram a cobertura de 233 dos 1.116 eventos da programação, entre palestras, debates, simpósios, atividades artísticas e outras, em vários espaços da Unicamp e no Salão Vermelho da Prefeitura de Campinas.
O documento destaca “o perfeito entrosamento verificado” entre os agentes que participaram da Operação Guarani e “a experiência que os agentes adquiriram, na cobertura de um evento complexo”. Lamenta, entretanto, que “a quantidade de agentes mostrou-se insuficiente para um acompanhamento mais amplo (e necessário) dos eventos programados”. Lamenta, igualmente, a “inexistência de elementos infiltrados nas principais organizações (PCB, PC do B, OSI/CS), de modo a facilitar a cobertura das atividades clandestinas”.
Do mesmo modo, o Relatório lamenta, em termos de estrutura, a “falta de telex na Central de Operações (11a Bda Inf Bld), dificultando tráfego de mensagens, que eram feitos através do IV COMAR (Viracopos), 15 km de distância”. E, também, a “ausência de elemento de contra-propaganda e/ou contrainformação”.
Sobre a SBPC
O documento prossegue traçando um perfil da SBPC, instituição criada em 1948. Curiosamente, a primeira Reunião Anual da Sociedade aconteceu em Campinas no ano seguinte, nas instalações do Instituto Agronõmico.
Segundo o documento dos componentes da Operação Guarani, “desvirtuando-se de sua finalidade básica, principalmente a partir de 1974, começou a tornar-se um grande fórum de debates da problemática nacional, principalmente nos campos político, econômico e psicossocial”.
O documento cita então algumas das Reuniões Anuais depois daquela data, como a de 1977, em que, “sob a alegação de que estaria havendo resistência de setores antidemocráticos contra a atuação da SBPC, elegeu-se GALILEU GALILEI, um símbolo da perseguição à liberdade de pensamento, patrono da 29a Reunião Anual da entidade”, realizada em São Paulo, na PUC, em Perdizes.
Ainda segundo o documento, em 1981, na 33a Reunião Anual, em Salvador (BA), “além da discussão de alguns temas científicos e outros de interesse nacional, tivemos a atuação contundente das esquerdas, particularmente o PC do B. A propaganda e a mobilização por eles realizada para a derrubada do regime militar, através da luta armada, foi conduzida com extrema agressividade e arrogância, e de forma inteiramente desinibida”.
O documento assinala que, de forma prévia à 34a Reunião Anual, em Campinas, a direção da SBPC procurou “mostrar interesse por uma nova direção na sua orientação, voltando aos seus postulados básicos e abandonando as questões político-partidárias que nortearam sua atuação nos últimos anos”.
Entretanto, segundo os agentes que redigiram o Relatório, “a presença de conhecidos subversivos” entre a diretoria da SBPC “indicava possíveis desdobramentos políticos do evento”.
Desenrolar da Reunião
Na sequência, o documento dos agentes que integraram a Operação Guarani relata o desenrolar da 34a Reunião Anual, desde a abertura, com a presença do reitor Pinotti e dos professores Carlos Chagas Filho e Márcio d´Olne Campos. De acordo com o Relatório, na sessão de abertura o presidente da SBPC, Crodowaldo Pavan, “colocou-se em posição um pouco diferente da prevista que vinha pregando, abrindo possibilidade de colocações políticas”. O documento cita um “fato notório” no final da sessão de abertura, “quando ao final do discurso do presidente da SBPC, apareceu uma faixa do PC do B em saudação ao evento, tendo o sr.Crodowaldo Pavan se dirigido aos responsáveis, cumprimentando-os um por um, após o que eles se retiraram”.
O Relatório destaca que, na manhã do dia seguinte, na abertura da programação de eventos, o campus da Unicamp estava “como se fosse o palco de uma grande festa”. O documento cita a presença de uma grande bandeira do PC do B e também de “barracas específicas para cada organização subversiva onde era distribuída farta propaganda subversiva, bem como toda espécie de literatura marxista-leninista”.
O documento cita alguns eventos realizados na Reunião Anual da SBPC na Unicamp, como uma palestra com o dirigente comunista João Amazonas e uma palestra com representantes da Organização para a Libertação da Palestina (OLP).
Análise dos agentes
Os agentes da Operação Guarani fizeram depois uma análise sobre a Reunião Anual da SBPC. Segundo o Relatório Especial de Informações, “os reflexos da 34a Reunião no Campo Militar foram notórios, quando observados em seus aspectos globais pois, ao final do evento, a manipulação da imprensa dentro de um plano provavelmente pré-planejado, colocando opinião pública x FFAA (Forças Armadas), visando seu desgaste e comprometimento, como pôde ser observado”.
O documento cita, a seguir, detalhes da ampla cobertura da Reunião Anual da SBPC pela imprensa local, estadual e nacional. Na ótica dos agentes, uma cobertura crítica da atuação dos militares. Entre as manchetes de jornais durante os dias do evento, cita uma do “Correio Popular” (“Rearmamento ameaça recursos à pesquisa”) e uma do “Diário do Povo” (“Fabricando a morte”), ambos de Campinas. Segundo o documento, houve uma forte crítica especialmente a um eventual projeto de construção de bomba atômica no Brasil.
O Relatório também cita alguns ex-cassados políticos que se pronunciaram no evento em Campinas, como Almino Affonso, Márcio Moreira Alves, Fernando Morais, Hélio Bicudo, Fernando Henrique Cardoso, Franco Montoro, Severo Gomes e José Roberto Magalhães Teixeira, na época vice-prefeito de Campinas pelo PMDB e que no final daquele ano seria eleito prefeito.
O documento também elenca uma série de temas e os respectivos debatedores, como os da Reforma Agrária (com Plínio de Arruda Sampaio e José Eli da Veiga, entre outros), Movimentos Sociais e Campesinato, Conflitos Sociais no Campo Brasileiro e outros. “Os temas acima foram abordados, em sua totalidade, dentro do enfoque socialista”, completa o Relatório.
Entre outros participantes da Reunião Anual, o documento cita D.Claudio Hummes, representante da Igreja progressista, o intelectual Octavio Ianni (professor da Unicamp, que falou sobre “Revolução e Contra-Revolução na História da América Central) e José Gregori, presidente da Comissão Justiça e Paz da Arquidiocese de São Paulo, que participou de uma mesa-redonda com a participação, também, de Almino Affonso, Rogê Ferreira, o escritor Fernando Moraes e Jacó Bittar, então presidente do Sindipetro de Paulínia. Cita, ainda, as presenças de Celso Furtado, Darci Ribeiro e o físico Rogério César de Cerqueira Leite, professor da Unicamp, como alguns dos grandes intelectuais brasileiros que participaram do evento em Campinas.
Como conclusão, o documento final da Operação Guarani sustenta que o evento em Campinas “apresentou, na maioria dos temas desenvolvidos, o comprometimento político-subversivo-contestatório” e que “a pregação contestatória foi orquestrada” em alguns aspectos, como “comprometimento das Forças Armadas” e “crítica aos grandes projetos governamentais”. Quanto à SBPC, assinala que a instituição “continuou representando um centro ideológico de foquismo intelectual de esquerda, canalizando a área de educação e cultura para a linha socialista”.
Outros documentos foram produzidos pela “comunidade de informações” sobre a 34a Reunião Anual da SBPC em Campinas. Entre eles, extensas relações de participantes do evento, sobretudo professores e pesquisadores de várias universidades brasileiras.
Ficou evidente, sobretudo pelo Relatório Especial de Informações 07/82, referente à Operação Guarani, como a comunidade científica e, em particular, as Reuniões Anuais da SBPC, foram alvo de amplo monitoramento pela “comunidade de inteligência”, nos momentos finais do regime militar. A Ciência vista como inimiga pela ditadura.
Posição da SBPC
O presidente da SBPC, Renato Janine Ribeiro, comentou a divulgação dos documentos sobre a Operação Guarani:
“A SBPC fica muito grata ao portal por divulgar esse fato tão irritante que mostra um período bem negativo da história do Brasil, a saber a ditadura, com a hostilidade direta à inteligência, ao trabalho científico e intelectual que era sistematicamente considerado como comunista e subversivo, quando não era. Quando é trabalho de conhecimento que sempre agrada a uns e desagrada a outros, e desagradava muito à Ditadura, porque ditaduras crescem e se mantêm, sobretudo, pela negação da verdade, pela mentira, pela violência.
Quanto aos fatos, a atual Diretoria da SBPC não tem nenhuma condição de comentar, de fazer qualquer reparo ou mudança, uma vez que não testemunhou o que aconteceu há tantas décadas e os personagens que desse evento participaram, como o reitor da Unicamp e o presidente da SBPC, já faleceram. Porém, a SBPC manifesta, mais uma vez, seu mais veemente repúdio a esse tipo de acontecimento. A ideia de que repartições de repressão política se ocupem do que deve ou não deve ser autorizado numa reunião científica é absolutamente indigna. Esse tipo de medida é inaceitável e, por isso, nós nos manifestamos claramente contra esse tipo de prática que ocorreu no passado e esperamos que nunca mais volte a ocorrer. Mas para nos livrarmos disso de uma vez com todas, para termos o devido livramento, nós precisamos estar sempre atentos na defesa das causas democráticas”.
Reportagem produzida em parceria entre
Agência Social de Notícias