Os primeiros 100 dias do terceiro mandato de Luis Inácio Lula da Silva na presidência da República trouxeram sinais de esperança na área socioambiental, como o empenho na questão indígena em geral e em particular no território Yanomami. Entretanto, ainda permanecem muitos desafios para a superação do legado de destruição do governo de Jair Bolsonaro. Esta é uma síntese da análise que o Observatório do Clima fez sobre sobre esses 100 dias do governo Lula. O texto segue abaixo, na íntegra:
O início do terceiro mandato de Lula foi um alívio para a agenda socioambiental. Já na campanha, o então candidato assumiu expressamente clima e, de forma mais ampla, meio ambiente, como elementos centrais de seus compromissos políticos. Eleito, indicou a emblemática Marina Silva para o ministério que ganhou a palavra clima em sua denominação, criou uma pasta dos povos indígenas e indicou, pela primeira vez na história do país, duas representantes dos povos originários para postos de comandos no Executivo — Sônia Guajajara, ministra e Joenia Wapichana, presidente da Funai.
O que era inimaginável meses atrás dá a dimensão da mudança radical de perspectiva. “O principal ativo que temos hoje na área ambiental é um presidente da República que se comprometeu publicamente com a pauta”, afirma Marcio Astrini, secretário executivo do Observatório do Clima. Em pouco mais de três meses, o governo coleciona acertos, mas também muitos desafios e alguns pontos de preocupação.
O recomeço partiu do caos, após quatro anos sob um projeto criminoso de desmonte de instituições democráticas e de políticas públicas, de negação da ciência e de grave desrespeito a direitos assegurados pela Constituição. A palavra de ordem era derrubar a floresta, abrir as portas para o garimpo, para a grilagem e para o extermínio indígena.
O legado de horror incluiu o maior aumento de desmatamento na Amazônia em um mandato presidencial desde o início da série histórica (59,5%), a maior alta nas emissões de gases de efeito estufa em 19 anos e a ampliação de 212% nas invasões e de 125% no garimpo nas terras indígenas, entre outras estatísticas e fatos avassaladores. De forma consistente, implementaram-se medidas punitivas a agentes públicos que tentavam cumprir a legislação ambiental no país, ao mesmo tempo em que se presenteavam os criminosos ambientais com incentivos.
Reverter esse cenário tomou boa parte do tempo até agora. Entre as principais ações (e, sem dúvida, as mais emergentes), estão a desintrusão e o socorro humanitário conduzidos na terra indígena Yanomami desde o início de janeiro. Interrompeu-se um genocídio. Agora, é preciso responsabilizar os culpados.
Outras medidas fundamentais começaram a ser efetivadas em seguida à posse: retomada formal do Plano de Ação para Prevenção e Controle do Desmatamento na Amazônia Legal (PPCDAm) e dos planos correspondentes aos demais biomas, assim como do Fundo Amazônia que, além de reativado, foi retirado do teto de gastos do orçamento. Em seguida, vieram as correções de graves retrocessos no processo sancionador ambiental, que levariam a maior parte das multas aplicadas a prescrever, gerando impunidade e esvaziando completamente o poder dissuasório da fiscalização.
Vale destacar a transversalidade no tratamento da questão ambiental, sempre valorizada pela ministra Marina Silva. As referências a meio ambiente constam nas atribuições de 28 dos 37 ministérios; clima aparece expressamente nas competências de dez ministérios, além do MMA. Essa opção estrutural será essencial para o enfrentamento das crises climática, de biodiversidade e de governança. Apesar da sinalização positiva, a transversalidade só funcionará se colocada em prática. Sua eficácia (ou não) será testada frente às contradições de agenda que o governo enfrentará.
Futuro desafiador
Para garantir coerência com os compromissos assumidos desde a campanha, há medidas que urgem ser efetivadas. De imediato, corrigir a pedalada climática de Bolsonaro nos compromissos brasileiros do Acordo de Paris (NDC). Tal ato deve ser seguido da abertura de um processo transparente e participativo de construção de uma nova NDC, bem como da conexão com o Plano Nacional sobre Mudança do Clima e da efetivação de ações de adaptação. Como esperado, os extremos climáticos batem à nossa porta com cada vez mais frequência; não aguardam que se recolham os escombros e corpos da última tragédia, atingindo em cheio as populações mais pobres e em situação de vulnerabilidade social. O enfrentamento ao racismo ambiental no Brasil deve estar no centro das políticas públicas do país.
O Executivo também precisa mostrar mais empenho na articulação política para a agenda ambiental dentro do Congresso Nacional. “No Executivo, saímos de uma situação de desespero para um cenário de esperança. Mas, no Legislativo, reina a pauta da destruição ambiental, uma bomba relógio que o governo tem de ajudar a desarmar”, observa Astrini.
Projetos de lei importantes, como os do chamado “Pacote da Destruição” não podem ser aprovados — o do licenciamento ambiental, o dos agrotóxicos e o da grilagem de terras estão no Senado à espera de votação. A Câmara dos Deputados deu mostra de sua sanha antiambiental, com a aprovação recente de “jabutis” na MP 1.150, destroçando a Lei da Mata Atlântica. Na MP 1.151, por sua vez, é necessário debate e correção dos pontos polêmicos antes de qualquer votação pelo Senado.
A recomposição da capacidade operacional dos órgãos de fiscalização ambiental é outro tema elementar. Assim como é imprescindível que o governo federal e os estados da Amazônia Legal atuem de forma coordenada. Principalmente naquela região, o crime ambiental ganhou espaço, poder e enriqueceu. Já a estrutura para os que fazem valer a lei nessa agenda foi dinamitada. Como consequência, os alertas de desmatamento na Amazônia, entre agosto de 2022 e março de 2023, são os maiores da série histórica e acumulam alta de quase 40% em relação ao período anterior. A sabotagem praticada sob Bolsonaro foi profunda e eficiente. Reconstruir a estrutura de combate ao crime ambiental e reverter a curva do desmatamento é uma tarefa que pode demandar tempo.
As áreas de energia e infraestrutura requerem atenção mais do que especial. As propostas de expansão da exploração de petróleo em novas fronteiras, sobretudo na Margem Equatorial, clamam por coerência com o que o candidato Lula se comprometeu e levou à COP do Clima no Egito já como presidente eleito. Os incentivos ao uso de combustíveis fósseis largamente implementados pela gestão anterior devem ser desfeitos, notadamente os aportes irresponsáveis de dinheiro público para a exploração de gás e os estímulos à geração de energia à base de carvão. A licença prévia para o asfaltamento do trecho do meio da BR 319 precisa ser revista imediatamente, sob pena de perdermos qualquer esperança de controle e redução do desmatamento na Amazônia brasileira.
Retrocessos como esses não podem vingar numa nação que tem todas as condições de se tornar uma potência ambiental. O Observatório do Clima acredita que, entre as grandes economias do mundo, o Brasil é o único país com condições de se tornar carbono negativo até 2045. Fazer isso, aproveitando as oportunidades econômicas e de justiça social que a transição para uma economia limpa oferece, depende das decisões que o atual governo tomará hoje.
Sobre o Observatório do Clima – Fundado em 2002, é a principal rede da sociedade civil brasileira sobre a agenda climática, com mais de 80 organizações integrantes, entre ONGs ambientalistas, institutos de pesquisa e movimentos sociais. Seu objetivo é ajudar a construir um Brasil descarbonizado, igualitário, próspero e sustentável, na luta contra a crise climática. Desde 2013 o OC publica o SEEG, a estimativa anual das emissões de gases de efeito estufa do Brasil.”